Mundo de ficçãoIniciar sessão— Não é nada, só está sendo um dia difícil...
— Não parece difícil, já que ninguém está te mutilando enquanto usa seu corpo como um pedaço de borracha velha.
O silêncio depois do comentário de Adon pareceu maior do que aquele lugar.
Ela sentiu calafrios, como se ele soubesse exatamente o que aconteceria com ela se não tivesse chegado. O blazer pesado sobre os ombros, o rosto manchado de lágrimas e sujeira. O corpo tremia agora de puro cansaço.
Ela respirou fundo, tentando encontrar voz entre soluços.
— Eu só... — começou, a voz falhando. — Só estou agradecida, acho. É por isso que acabei chorando.
Adon a observava em silêncio, os olhos impassíveis, uma das mãos ainda no bolso.
— Porque no final... — ela continuou, engolindo o choro. — Você parece uma pedra, mas sabe ser gentil às vezes.
Um som baixo escapou dele, meio bufo, meio riso sem humor.
— Você parece que não entende nada, não é? — murmurou, sem olhar diretamente para ela.
Selene abaixou a cabeça, apertando o blazer contra o corpo como se ele pudesse protegê-la de tudo. As lágrimas voltaram, silenciosas, molhando o tecido caro.
Adon ficou ali, imóvel, observando-a agarrar o tecido como quem tenta desaparecer dentro dele.
O contraste entre o terno impecável e a fragilidade dela parecia deixá-lo curioso — e talvez, por um segundo, perturbado.— O que eu deveria entender?
— Que eu não faço nada sem um preço. Não te salvei porque sou algum justiceiro ou seu defensor. Muito pelo contrário. Já que eu não me importo com ninguém, você sabe bem por que eu te salvei.
— Porque eu te devo? — ela riu, cética.
Ele confirmou com um movimento de sobrancelha.
— Até parece. Ainda que aqueles homens fizessem algo comigo, eu estaria te devendo? O trato era você não encostar em mim, não outros homens.
— Esperta. Mas ainda assim, eu te tocar seria mais vantagem pra você do que ser tocada por qualquer um desses lixos.
— O que você fez? Os matou?
— Não sei... eles estão no beco. Quer dar uma olhada?
— Quem é você?
— Ninguém... só faço uns bicos por alguns trocados.
— Bem sujo, pelo visto.
— Com certeza. Por isso você nem deveria estar me dirigindo a palavra. O que acontece com você não é da minha conta.
Ela ergueu o rosto, encarando-o. Depois se levantou e caminhou até ele, fixando o olhar no dele enquanto Adon a observava como quem espera uma rendição — ou um recuo de medo.
— Qual a possibilidade... — ela sussurrou, a voz embargada. — De alguém passar por duas situações horríveis no mesmo dia e ainda continuar intacta? Sendo salva pelo mesmo homem duas vezes? Se eu não sou da sua conta, por que se meter?
Ele pigarreou, desviando o olhar ao coçar o nariz.
Ela respirou fundo, tentando se recompor.
— Não se iluda. Nem deveria me dirigir a palavra. Não gosto da sua voz e não tem o que agradecer.
— É óbvio que vou ficar grata. Obrigada e... prometo que vou trabalhar duro pra pagar cada centavo que devo por ter me dado essa chance. E... se precisar de qualquer favor, eu vou tentar ajudar.
Adon revirou os olhos, incrédulo, debochando dela em silêncio. Afinal, para ele, aquela “coisinha” não seria útil para nada que desejasse.
— Pra mim, você seria inútil em qualquer coisa que eu quisesse. Pode ir.
— Estou falando sério. Não sei quem você é, mas... prometo que um dia vou ser útil. Realmente. Estou muito grata e feliz por ter me emprestado seu sobretudo... por ter me protegido.
Axel, encostado em um poste, soltou uma risada curta.
— Nunca vi alguém chorar de gratidão só por vestir algo.
Adon virou o rosto lentamente para ele, o olhar cortante.
— Nunca viu alguém sentir vergonha de viver só porque está usando pouca roupa? — disse sem alterar o tom, mas com um peso que silenciou tudo ao redor.
Selene levantou o olhar, ferida.
— Você não parece ser tão mal assim, senhor Adon — respondeu com a voz trêmula, mas firme.
Adon se aproximou, os passos lentos, medidos. O ar entre eles pareceu se estreitar.
Ele se abaixou, aproximando-se o suficiente para que ela sentisse o calor da respiração dele.
Uma mecha de cabelo escorregou pelo rosto dela, e ele a prendeu atrás da orelha com um gesto calmo demais para o perigo que carregava.— Você acha que me entende... — murmurou, os olhos fixos nos dela. — Mas nem imagina o tipo de inferno que eu sou pra sua vida. Por isso, aproveite a oportunidade que estou te dando.
Um meio sorriso surgiu no canto dos lábios dele.
— Mas, se quiser descobrir, basta não me pagar. Aí você vai entender que eu defendo apenas meus interesses.
Selene o encarou por um instante — medo, raiva e confusão se misturando como um nó apertado na garganta.
— E eu não quero saber — respondeu baixo, recuando um passo.
Então, antes que ele dissesse qualquer coisa, ela saiu correndo, tropeçando no asfalto, os saltos batendo em falso.
O blazer balançava em volta do corpo, grande demais para ela, pequeno demais para esconder o tremor.Axel observou a silhueta dela se afastando e soltou um assobio divertido.
— Cinco meses de salário é o valor daquela peça. Aposto que ela vai vender o blazer.
— Se vender — disse Adon, com a voz fria — ainda vai me dever o troco.
— Vai continuar seguindo ela? Aqui ainda é perigoso e, quem sabe... não seja eu que dê um show. Você nunca me deixa me divertir — Axel provocou, entediado.






