O ateliê cheirava a tinta fresca, papel queimado e café requentado. Havia quadros apoiados nas paredes, outros em processo de secagem, pincéis mergulhados em copos de vidro e pedaços de papel colados por toda parte — cada um com um bilhete escrito à mão.
Leo caminhava em ziguezague pela sala como um crítico de arte numa crise existencial.
— Esse precisa de mais vazio. A arte respira no branco.
— Você diz isso de todos os meus quadros — respondeu Clara, sentada no chão, descascando um adesivo para colar uma nova frase sobre a tela.
— Porque você tem medo do espaço entre as coisas.
Ela parou. Olhou para ele, um sorriso brincando no canto dos lábios.
— E você tem medo do silêncio.
— Por isso eu falo tanto.
Riram.
O clima era leve, mas carregado. A exposição ganhava forma, finalmente. A proposta de Clara — quadros que só revelavam suas frases quando o espectador se aproximava — havia encantado Gus Sterling, e agora ela tinha seis semanas para preencher as paredes da galeria com algo que fosse mais do que belo. Que fosse íntimo. Que fosse… dela.
Leo levantou um dos quadros maiores.
— Esse aqui é o meu favorito. A textura, a sobreposição... e essa frase…
Ele leu em voz alta:
“Você chegou como um eco. Mas ficou como se sempre tivesse sido voz.” — C.
— Isso é sobre ele, né?
Clara assentiu, sem tirar os olhos da tela que pintava.
— Às vezes acho que tudo é.
— Já pensou se você perde isso?
— Como assim?
— Sei lá. O que você tem com ele. E se um dia... sumisse?
Ela ficou em silêncio. A tinta escorria devagar pelo canto do pincel.
— Se eu esquecer, se ele se for… talvez reste isso.
— Isso?— A arte. Os bilhetes. As cores que a gente não explica.
Leo respirou fundo. Ele entendia. Mesmo não sendo Noah, mesmo sentindo um gosto amargo quando ela falava com tanto amor — ele entendia.
E era por isso que ele estava ali.
Pintando, colando, dividindo cafés, e carregando telas por escadas íngremes. Porque o amor também mora no gesto que não se espera nada em troca.Na semana seguinte, Clara visitou a galeria. Era a primeira vez desde a confirmação do projeto.
O prédio ficava numa esquina de Soho, com janelas altas, parede de tijolos aparentes e plantas crescendo como se fossem parte da arquitetura. Gus Sterling estava de pé na porta, usando um chapéu vermelho e uma echarpe lilás. Parecia saído de um filme dos anos 60.
— Você veio! — disse ele, como se Clara tivesse sido convidada para um chá intergaláctico.
— Claro. Disse que queria que eu sentisse o espaço, lembra?
— Não. Mas confio em mim mesmo, então deve ser verdade. Entra, entra!
O interior da galeria era um espaço amplo e quase sagrado. A luz natural entrava como uma bênção. Havia algo silencioso ali — uma espera.
Gus caminhou com ela até a sala principal.
— Esse espaço é seu.
— Isso parece... enorme.
— Porque é. Mas você também é.
Ela riu, tímida.
— Tenho medo de não estar pronta.
— Querida, o medo é o cheiro da coragem. Se não der um pouco de medo, então talvez você esteja fazendo errado.
Ela olhou ao redor. Imaginou os quadros ali. As frases escondidas. As pessoas se aproximando devagar, descobrindo pedaços de sentimentos.
— E se ninguém entender?
Gus sorriu, os olhos brilhando sob as sobrancelhas desgrenhadas.
— O amor nunca foi feito para ser entendido.
Só vivido. E você está prestes a pendurar a vida na parede.Enquanto isso, no hospital, Noah terminava uma microcirurgia em um adolescente com malformação arteriovenosa. Os olhos concentrados sob o microscópio, os dedos firmes como escultores de nervos.
Mas naquela manhã… algo falhou.
Foi pequeno. Um tremor sutil na mão esquerda. Um leve atraso no reflexo.
Quase imperceptível. Mas para ele, um alarme.Disfarçou. Continuou. A cirurgia terminou bem.
Mas o pensamento ficou.
Horas depois, lavando as mãos, ele se olhou no espelho por mais tempo do que o habitual.
O que foi aquilo?
Exaustão?
Estresse?Ou algo mais?
No fim do dia, Clara o esperava em casa com duas taças de vinho e uma ideia maluca:
— Quero que você escreva um bilhete pra mim.
— Agora?
— Sim. Aqui, nesse pedaço de papel.
Ele sorriu, pegando a caneta com dedos ainda marcados pela luva cirúrgica.
Pensou por alguns segundos. Depois escreveu:“Se um dia a memória falhar, me encontra no silêncio entre duas palavras. Eu sempre vou estar ali.” — N.
Ela leu devagar, os olhos se enchendo.
— Isso vai pro quadro central da exposição.
— Achei que não gostasse que eu me envolvesse.
— Agora gosto. Você me pertence.
— Isso é possessivo.— Isso é verdade.
Beijou a bochecha dele e correu de volta pro ateliê, deixando respingos de vinho no chão.
Ele ficou parado por um instante, observando.
Pensando no leve tremor da manhã. Na palavra “falhar”.E desejando com todas as forças que nada — absolutamente nada — roubasse o que estavam construindo.
Nem a vida.
Nem o tempo. Nem a memória.