Capitulo 04

Vittorio Bianchi

Três anos depois...

Não havia um só dia em que Heloisa não invadisse meus pensamentos. Por mais que eu me esforçasse para esquecê-la, as noites tornavam-se refúgios de tentativas vazias — encontros sem sentido, rostos esquecíveis, momentos que não deixavam marcas. Nenhuma delas era ela. Nenhuma apagava o gosto do beijo proibido, nem o peso da culpa que carregava.

Vasculhei redes sociais em vão. Nenhuma pista, nenhuma foto. Era como se tivesse evaporado do mundo digital, tornando-se apenas uma lembrança persistente.

O toque do celular interrompeu minha tormenta. Era Hugo.

— Hugo, isso é uma surpresa — atendi, tentando soar casual. — A que devo a honra?

— Vim te fazer um convite — disse ele, animado. — Hoje é aniversario de 18 anos da sua sobrinha. A Heloisa, se tornou mulher, meu caro. O Augutus Bernard, filho do Arthur, do Casa Blanca, aquela vinícola francesa, tem sido uma boa companhia para ela ultimamente, pensamos em construir algo grande com a futura união deles.

— Eles estão namorando? — a pergunta saiu rasgando o fundo de minha garganta.

O nome dela caiu como um raio no meio da tarde calma. Meu peito apertou, a respiração falhou por um segundo.

— Ainda não, mas acredito que no aniversário dela neste fim de semana irá se concretizar.

— Meus parabéns a ela — respondi, forçando neutralidade. — Mas não poderei ir. A colheita começou, e estamos testando uma nova mistura de espumante. Algo entre uvas verdes e rosê... um sabor único.

— Fico feliz em ver seu entusiasmo com os vinhos. Já sei de onde a Helô herdou a paixão pelos vinhos e misturas de sabores. — brincou.

Engoli seco.

— Não me compare a ela — disse, leve, mas firme. — Essa paixão pode ter vindo de você também. Aliás, não a vejo nas redes sociais há tempos. Está se escondendo?

— Ela tem estado muito reservada. Mergulhou de cabeça nos estudos, só isso. Quer se tornar uma grande sommelier.

Antes que pudesse me impedir, soltei:

— E o namorado, o que acha disso?

O silêncio de Hugo fez meu estômago revirar. Quando respondeu, sua voz veio sem rodeios:

— O Augustus, quando vem a Nova Iorque, tam apoiado bastante a escolha dela.

O mundo pareceu encolher. Um gosto amargo tomou minha boca. Murmurei uma desculpa qualquer e desliguei. Em segundos, eu já estava diante do bar, servindo-me de uma dose generosa de uísque. Um, dois, três copos. Nenhum suficiente.

A imagem de Heloisa nos braços de outro homem era insuportável. Precisava sair dali. Fui até o estábulo. Ébano, meu puro-sangue, esperava inquieto. Era o único que entendia meu silêncio, meu desequilíbrio.

— Como faço para esquecê-la, ébano? — murmurei, passando a mão por sua crina.

Soltei-o da guia, coloquei a sela e montei. Precisava sentir o vento, precisava fugir de mim mesmo.

Tudo aconteceu rápido demais. A velocidade. O descontrole. A queda. E depois... nada.

******

Acordei com uma dor cortante no corpo e a luz branca do hospital me cegando.

Tentei me levantar, mas o lado esquerdo gritava de dor. O som dos aparelhos era constante, irritante. Pisquei devagar, buscando lembrar o que acontecera.

— Que droga... — murmurei.

Uma voz familiar respondeu com ironia:

— Finalmente acordado, cavaleiro?

Hugo. Cruzava os braços, entre preocupado e divertido.

— Isso foi impulsivo até para você, Vittorio. Está tentando se matar? O que aconteceu com a Liliane?

Bufei.

— Não estou com humor para piadas. E a Liliane, faz um ano e meio que ela foi embora, talvez para França. Não tenho paciência para esse negócio de relacionamento.

Ele puxou uma cadeira e se sentou ao meu lado.

— Não vim fazer piada. Só precisava ver com meus próprios olhos que ainda está respirando.

— Meio respirando — corrigi, tentando sorrir.

— O médico disse que você teve sorte. Braço quebrado, costelas fraturadas, um belo corte na testa. Podia ter sido pior.

— E o Ébano? — perguntei, tenso.

— Está bem. Voltou sozinho para o estábulo. Foi assim que souberam da queda.

Assenti. Aliviado.

Hugo me observava, atento. Esperava algo.

— Vittorio... o que está acontecendo com você? Desde que voltou para Itália, tem estado irreconhecível.

Engoli as palavras que queriam sair.

— Só precisava de ar. Me reconectar com o campo.

Ele arqueou a sobrancelha, claramente não acreditando. Mas não insistiu. Levantou-se.

— Precisa descansar. Vai ficar em observação por mais um dia. Você ficou dois dias desacordado.

Fechei os olhos, tentando fugir do nome que martelava minha mente: Heloisa.

— Ah, antes que eu esqueça — disse Hugo, antes de sair — Ava e eu voltamos amanhã para Nova Iorque. Mas a Helô vai ficar.

Abri os olhos, encarando-o.

— Vai ficar?

— Sim. Alguém precisa cuidar da vinícola enquanto você se recupera. E ninguém melhor do que ela para isso. — Ele sorriu de lado e saiu do quarto como se não tivesse acabado de jogar uma bomba.

Meu coração disparou. Ela estava vindo. E dessa vez... não haveria como fugir. 

Heloísa Moura

O cheiro das barricas de carvalho misturado ao frescor das uvas recém-colhidas era quase terapêutico. Mas nem mesmo a rotina da vinícola conseguia acalmar o turbilhão dentro de mim.

Desde que soube do acidente, minha mente não descansava. O telefone de meu pai tocando no meio da noite, a notícia seca — "Vittorio caiu do cavalo, está no hospital" — e, depois, o silêncio angustiante da espera.

Agora ele estava estável. Mas eu não.

Entrei no escritório de Vittorio com passos hesitantes. Era a primeira vez ali desde que ele voltara para a Itália. O lugar ainda tinha o cheiro dele, aquele perfume amadeirado misturado com uísque e couro velho. Passei os dedos pela mesa de madeira maciça, me detendo em uma caneta prateada, a mesma que ele usava para assinar contratos.

Suspirei.

Ele fugiu de mim — de nós — e ainda assim era incapaz de me apagar por completo da vida dele. Se fosse, por que deixaria meu nome nos documentos da vinícola como administradora interina em caso de emergência?

Meu pai me avisou que retornaria a Nova Iorque com a mamãe, e me deixou a responsabilidade de cuidar da vinícola até Vittorio estar fora de perigo. Parte de mim sabia que era o certo. A outra parte? A outra gritava que isso era um jogo perigoso, e eu estava prestes a me machucar de novo. Entretanto, agora eu não era mais uma criança, mas ainda ansiava pelo meu presente e dessa vez, não iria embora sem o reivindicar.

Mas, mesmo assim, eu fui vê-lo.

O corredor do hospital estava silencioso quando entrei. Com passos lentos, hesitantes, fui até o quarto 218. Parei diante da porta fechada, com a mão no trinco, o coração batendo descompassado.

Respirei fundo, três vezes. E entrei.

Ele dormia. O braço engessado repousava ao lado do corpo, e o rosto, normalmente altivo, estava marcado por hematomas e um corte na têmpora, coberto por gaze. Mesmo assim, era bonito. Sempre foi.

Me aproximei devagar, como se temesse acordá-lo apenas com minha presença.

— Sempre tão teimoso — murmurei, sentando-me ao seu lado.

Fiquei ali por um tempo, em silêncio, observando sua respiração. Meu peito apertava com uma mistura de saudade, raiva e... amor. Era isso. Não havia mais como negar.

Passei a mão devagar pelos cabelos dele, como se aquele gesto pudesse transferir um pouco da calma que me faltava. Ele se mexeu levemente, e sua voz saiu rouca, sonolenta:

— Helô?

Meu coração parou por um segundo.

— Estou aqui — sussurrei.

Seus olhos se abriram devagar, pesados. Quando me encarou, havia surpresa, mas também algo que ele não conseguia mais esconder. Saudade. Desejo. Dor.

— Você não devia estar aqui — disse, a voz falha, mas o olhar fixo no meu.

— Mas estou. E vou continuar — retruquei, firme. — A vinícola precisa de mim. E, sinceramente, acho que você também.

Ele desviou o olhar, como sempre fazia quando não queria admitir a verdade.

— Isso não muda nada, Heloísa. Você ainda é uma criança...

— ... Muda tudo — respondi, com suavidade. — Porque você pode tentar fugir para o outro lado do mundo, Vittorio. Pode subir em cavalos selvagens, se encher de uísque, ignorar meus pais, apagar minhas fotos... mas ainda assim, eu estou aqui. — Pausei, respirando fundo. — E você ainda sente. Aquele sentimento que acordou no meu aniversário de 15 anos, ainda vive em você, mesmo depois de 3 anos.

Ele me encarou, e, por um segundo, vi a armadura dele rachar.

— Isso nunca deveria ter acontecido. Você merece alguém da sua idade, o Augustus, por exemplo. Alguém que possa te dar uma vida leve, simples.

Me aproximei mais, pegando sua mão boa com as minhas.

— Vittorio... Eu não quero uma vida simples. Quero uma vida que me faça sentir. E você faz isso. Desde sempre. O Augustus tem os problemas dele e meu pai e o senhor Arthur, vivem essa ilusão.

Ele fechou os olhos, lutando contra tudo o que sentia. Mas naquele momento, a batalha parecia perdida.

— Ficar aqui vai te machucar.

— Ficar longe de você já me machuca ainda mais.

A campainha de um dos aparelhos apitou, quebrando o silêncio. Um enfermeiro entrou para checar os sinais vitais, e fui obrigada a soltar sua mão. Quando me levantei, ele me olhou novamente, os olhos úmidos de tudo o que não podia dizer.

— Eu volto amanhã — disse, antes de sair. — E todos os dias até você sair daqui.

Fechei a porta devagar atrás de mim, com o coração acelerado. Não sabia o que viria depois disso, mas sabia de uma coisa: pela primeira vez, Vittorio não me mandou embora.

E isso, para mim, já era o começo de tudo.


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