A batida suave na porta a despertou.
Melia sentou-se na cama, os olhos ainda inchados e a garganta seca de tanto chorar. A luz do sol atravessava as frestas da cortina, tingindo o quarto com um tom dourado suave, mas nada conseguia aquecer o vazio que ela sentia por dentro. Ainda sentia o cheiro de sua mãe, dormiu abraçada a um vestido dela que encontrou na gaveta.
Levantou-se devagar, sentindo o corpo pesado, os músculos doloridos como se tivesse passado a noite inteira lutando contra algo invisível. Arrastou os pés até a porta, passando os dedos pelos cabelos emaranhados, e girou a maçaneta com um estalo.
— Feliz aniversário! — gritaram em uníssono Juno e Caliu.
Ela piscou, atordoada.
Juno sorria alegremente, segurando um bolinho simples com cobertura de chocolate e duas velas tortas espetadas no topo. Ao lado dela, o irmão mais novo, Caliu, segurava um copo de suco de uva com as duas mãos, sorrindo com os olhos brilhando de empolgação.
Melia levou a mão à boca, engolindo o nó que se formava na garganta. Seus olhos se encheram de lágrimas, mas, dessa vez, não eram de tristeza. Era a primeira vez que alguém lembrava de seu aniversário sem a presença da mãe.
— Vocês são malucos… — sussurrou ela, emocionada, abrindo espaço para que os dois entrassem. — Onde arrumou dinheiro pra comprar isso menina!
— Acha mesmo que eu ia deixar você passar esse dia sozinha? — disse Juno, entrando com o bolo. — Anda, vai, assopra essas velas antes que derretam.
Melia fechou a porta e seguiu os dois até a pequena mesa da cozinha. O apartamento ainda tinha o cheiro suave do perfume da mãe, misturado com o pó acumulado dos dias sem limpeza, mas naquele momento, aquele cheiro parecia abraçá-la com carinho.
Juno colocou o bolo sobre a mesa, ajeitou as velas com um sorriso orgulhoso e deu dois passos para trás.
— Faz um pedido, mas tem que ser com força, ouviu?
Melia respirou fundo, fechando os olhos por um instante. O desejo formou-se sem esforço, depois, inclinou-se e soprou as velas.
— Pronto — murmurou ela. — Agora oficialmente tenho dezenove anos.
— Parabéns, Melia! — disse Caliu, a abraçando com carinho.
Ela riu, se abaixando para abraçá-lo com força. Aquele menino era como um raio de sol num mundo cinzento demais. Seus olhos castanhos refletiam uma inocência rara nos bairros decadentes da cidade. Assim como sua mãe a protegeu daquele mundo, Juno se sacrificava todos os dias para manter o irmão.
Depois de muitos abraços, os três sentaram-se no chão da sala, comendo bolo e bebendo suco como se nada mais importasse. Caliu, animado, começou a contar piadas ruins, fazendo as duas rirem mesmo sem vontade. Era impossível resistir à energia daquele garotinho.
— A gente devia te contratar pra animar velórios — brincou Juno, bagunçando o cabelo do irmão.
— Ei! Eu sou muito engraçado — reclamou ele, fazendo bico.
Melia sorriu, mas depois seu semblante se tornou mais sério. Ela colocou o copo de suco de lado e olhou para Juno com hesitação.
— Eu pensei bastante essa noite… e… acho que vou aceitar sua proposta.
Juno parou de mastigar.
— Tem certeza?
Melia assentiu lentamente.
— Não tenho ninguém, Juno. Não tenho como pagar o aluguel, muito menos colocar comida dentro de casa. Eu sei que minha mãe nunca quis que eu entrasse naquela vida, mas… não posso mais me dar ao luxo de sonhar. Só quero dançar, sem programas, só isso.
— Tudo bem, vou te apresentar pra Corin. Mas vou te lembrar: ela é dura. Vai te olhar da cabeça aos pés como se fosse uma boneca nova. Não se assusta, tá?
— Eu consigo — disse Melia, mais para si mesma do que para a amiga.
Juno sorriu, embora seu olhar demonstrasse preocupação.
— Hoje é seu aniversário, então nada de tristeza. A gente vai dar um jeito em tudo isso, mas agora, você vai se arrumar porque à noite a gente tem compromisso.
— Você vai mesmo me levar hoje?
— Se for deixar pra depois, você desiste. Melhor fazer logo e conhecer como é, vai com calma. E... não se assusta com as meninas. Algumas são turronas, mas é só a carcaça.
Melia olhou para as próprias mãos, os dedos finos tremendo de leve. Respirou fundo e se levantou.
— Tá bem. Vamos fazer isso.
***
A noite caiu sobre Revengard como um manto pesado.
O bairro dos renegados mergulhava na escuridão cedo demais, afinal, não tinha energia eletrica. As ruas eram estreitas, mal iluminadas, e o cheiro de lixo e ferrugem se misturava ao ar seco. Carros antigos passavam devagar, com janelas cobertas, e os sons de gritos e sirenes ao longe eram quase constantes.
Melia deixou Caliu dormindo em seu colchão, coberto com o cobertor que a mãe dela costurou anos atrás. Ele estava enrolado como um casulo, respirando fundo, alheio à tensão no ar. Juno trancou a porta com cuidado e enfiou a chave no sutiã.
— Pronta? — perguntou, segurando uma bolsinha preta com brilho.
— Pronta.
Ela estava usando seu melhor vestido, que não era tão bom assim leve, amarelo meio desbotado com flores brancas, ia até os joelhos, não tinha decote, mas contava com alças finas, era, com certeza inocente demais para onde estava indo.
Do lado de fora, um carro preto esperava encostado na calçada. Era grande e reluzente demais para aquele bairro. A porta se abriu sozinha e as duas entraram no banco de trás. Outras meninas já estavam ali: uma loira de olhos puxados, uma ruiva com olhar melancólico, uma morena com maquiagem borrada. Todas em silêncio.
Quando Melia entrou, alguns olhares se voltaram para ela. Algumas cochicharam, outras apenas abaixaram os olhos. Mas uma coisa era certa: todas sabiam quem ela era. E todas sabiam o quanto Selene lutou para protegê-la daquela realidade.
Uma delas estendeu a mão e disse num tom baixo:
— Meus pêsames, Melia. Sua mãe foi uma das melhores entre nós.
Melia sentiu os olhos marejarem, mas agradeceu com um aceno. Não podia chorar e chegar a Fera Dourada com a cara toda inchada, então apenas engoliu o bolo que se formava na garganta.
O carro atravessou a cidade, deixando para trás os prédios descascados e as ruas cheias de buracos. Conforme se aproximavam do centro, tudo mudava. Os postes eram altos, as calçadas limpas, as vitrines iluminadas com roupas que custavam mais do que um mês de aluguel nos becos de onde vinham.
Finalmente, o carro parou diante do que parecia um castelo moderno.
A boate Fera Dourada era cercada por portões altos e muros com espelhos negros. Do lado de fora, uma fachada iluminada em vermelho vibrante com detalhes dourados chamava a atenção de qualquer um. O símbolo do local era uma garra de lobo atravessando uma rosa preta.
Juno desceu primeiro, puxando Melia pela mão. Elas entraram pelos fundos, passando por um corredor estreito que desembocava num vestiário imenso, com armários espelhados e bancos acolchoados em veludo escarlate.
As meninas começaram a se trocar. Saltos altos, lingeries de luxo, perfumes caros. Algumas riam, outras apenas se olhavam no espelho em silêncio. Melia se sentia como uma intrusa num mundo ao qual não pertencia.
— Vem — disse Juno, puxando-a em direção a uma porta com a inscrição “Administração”.
Melia engoliu em seco.
A porta se abriu antes mesmo que Juno batesse. Do outro lado, uma mulher loira, alta, com saltos enormes e seios exageradamente grandes para ela, observava as duas com olhos que pareciam vidrados de tanto botox. Seus lábios, pintados de vermelho sangue, se curvaram num sorriso predador.
— Essa é a novata?
— É a Melia, filha da Selene — disse Juno com cuidado.
A mulher arqueou as sobrancelhas com surpresa, os olhos cintilando com algo que Melia não soube nomear.
— A filha da Selene, é? Hm… interessante. Entra, querida.
— Eu…
— Entra — repetiu a mulher com um tom de comando.
Corin conhecia bem a mãe dela, já esteve na Fera Dourada algumas vezes mas nunca trabalhou ali, sabia que ela tinha medo de algo ou alguém, mas nunca soube de que, nem se importava.
Melia olhou para Juno, que assentiu, mas com o olhar aflito, então, respirou fundo e entrou. A porta se fechou atrás dela com um estalo seco.
O escritório de Corin era decorado com quadros ousados e móveis que misturavam luxo e sensualidade. Tapetes vermelhos, uma estante com garrafas de uísque e uma poltrona de couro negro.
— Então… Melia. Finalmente decidiu parar de brincar de boneca intocável?