Mundo de ficçãoIniciar sessão— Eu vou calar tua boca, menina intrometida—
— CHEGA! — minha tia gritou, entrando no meio antes que aquilo piorasse. — Pelo amor de Deus, vocês dois! — Depois ela olhou pra mim. — Pra onde diabos você vai?
Eu apertei o garfo e deixei escapar:
— Arrumei um novo emprego e vou precisar morar na casa do meu chefe. E eu quero mais que tudo, sair de perto desse homem.
Minha tia ficou mais confusa ainda.
— Mas você não estava estagiando em uma empresa grande?
— Faz parte — eu respondi, com raiva.
Ela piscou, tentando entender e eu suspirei de novo, decidindo falar tudo de uma vez.
— Vou receber até que bem. E… eu vou mandar dinheiro pra casa, pra ajudar com os seus remédios.
Dei uns passos pra trás, ansiando por sair dali, mas parei e me virei pro meu tio, apontando o dedo pra ele, porque eu precisava deixar claro:
— Mas se eu descobrir que você tá gastando esse dinheiro com cachaça, eu paro de mandar.
Ele levantou de novo, vermelho de raiva.
— Nós cuidamos de você esse tempo todo e agora tu quer negar dinheiro?!
Minha tia empurrou ele de volta pro sofá, gritando.
— Cala a boca, Raimundo! Tu não presta pra mais nada além de beber e feder o dia inteiro! A menina tá certa!
Tive que morder o lábio pra não rir. Minha tia era fogo.
Ela então olhou pra mim.
— Pode mandar o dinheiro na minha conta, Mariana. E obrigada, viu?
— Tudo bem, tia — respondi, já exausta. — Eu vou arrumar minhas coisas.
Saí da sala com o coração acelerado e fui pelo corredor estreito até o meu quarto. Quando fechei a porta atrás de mim, soltei um suspiro que eu parecia guardar há anos.
A verdade é que, apesar de tudo, eles cuidaram de mim quando minha mãe morreu e depois que meu pai foi preso. Mas aquilo ali… aquele ambiente pesado, tóxico, cansativo… era como viver dentro de uma tempestade que nunca parava e a qualquer momento meu tio se transformava e descontava suas frustrações em mim.
E agora, pela primeira vez, eu tinha uma chance real de sair dali. De respirar e ter um lugar que não cheirasse a cachaça e briga.
Comecei a juntar minhas coisas devagar, sentindo um fiozinho de esperança. Mesmo que eu tivesse que morar com uma criança levada e um chefe arrogante e gelado… Pelo menos seria longe daqui.
E isso, sinceramente, já era metade da vitória.
***
Carla desceu do carro com aquele sorriso simpático de sempre e olhou direto para a minha mala, a única. Uma mala média, meio velha, mas firme. Eu dei um sorrisinho sem graça.
— É só isso mesmo? — ela perguntou.
— Não tenho muita coisa — respondi, dando de ombros.
Ela assentiu, sem parecer me julgar, e colocou minha mala no porta-malas com facilidade. Entramos no carro e eu respirei fundo, sentindo aquela mistura de nervosismo e animação. Era oficial. Eu estava indo morar na casa de um homem que eu nunca tinha visto, para cuidar da filha dele, uma menina considerada “levada”, segundo a prima dele. Nada poderia dar tão errado assim… né?
Depois de alguns minutos dirigindo, Carla puxou um envelope pardo e me entregou.
— Aqui está o contrato. Vai lendo, tá? Se tiver qualquer coisa que você não queira, ou que te deixe desconfortável, é só me falar.
— Certo… — murmurei, já abrindo o envelope.
O contrato tinha mais páginas do que a apostila de metodologia científica da faculdade. Só isso já me deu preguiça. Comecei a ler do início, tentando não me perder.
Logo no começo, vinha o cronograma da Laura.
Meu Deus.
Piano às segundas e quartas. Ballet às terças. Canto de manhã na quinta. Inglês sexta à tarde. Etiqueta duas vezes por semana. Reforço escolar todo sábado. Não sei nem o que dizer.
— Fiquei cansada só de ler…
Carla deu uma olhada rápida pra mim e sussurrou, como se fosse um segredo:
— Eu também acho o cronograma dela puxado.
Ri baixinho. Coitada da menina, se eu tivesse esse tanto de coisa quando pequena, teria fugido pela janela.
Continuei lendo, agora entrando na parte das regras da casa.
Eram muitas.
Tipo... muitas mesmo.
A principal: eu estava proibida de entrar no quarto do CEO. Assim, em letras garrafais. Repetido duas vezes. Como se eu fosse sonâmbula e tivesse tendência a invadir quartos de patrões milionários no meio da noite.
Revirei os olhos mentalmente. Mal quero ver esse homem de longe, quem dirá entrar no quarto dele. Só de pensar nele já dava um frio na espinha, e não o frio bom, o frio de medo mesmo.
Aí vinha outra parte: eu faria minhas refeições depois que a Laura terminasse as dela. Nada de comer junto, nada de mesa compartilhada. Tudo muito organizado, muito… rígido. A casa parecia tão silenciosa que provavelmente eu ia ouvir até meus pensamentos ecoando.
Também dizia que eu levaria a Laura para as aulas de inglês e ballet, com o motorista, graças a Deus, porque o resto dos professores ia até a casa. E enquanto ela estivesse na escola de manhã, eu teria tempo livre. Só precisava estar na casa às 15h em ponto para receber a pequena.
Quando cheguei no salário de novo, respirei um pouco mais aliviada. Era dinheiro suficiente pra finalmente viver minha vida. E os domingos eram folga. E se fosse preciso, teria que viajar com eles.. Mas isso não é ruim… nunca saí dessa cidade.
Fechei o contrato devagar e soltei o ar.
— Tudo certo? — Carla perguntou, olhando rapidamente pra mim.
— Tudo certo — respondi, e realmente estava. Pelo menos no papel.
Por dentro, eu só pensava:
De todas as coisas que eu imaginava pra minha vida, ser babá da filha do CEO mais arrogante da cidade não era uma delas. Mas… dinheiro é dinheiro.E agora não tinha mais volta.
Quando o carro finalmente virou a curva e a mansão apareceu entre as árvores, eu literalmente fiquei sem ar.
— Mas… QUE ISSO… — murmurei baixinho, com a testa colada no vidro.
A casa parecia saída de uma revista milionária. Concreto, vidro, linhas retas, tudo enorme… e frio. Sim, frio. Uma beleza congelante, moderna até demais, do tipo que a gente olha e pensa: “Uhum. Combina perfeitamente com o dono.”
Até a mansão tinha a mesma energia dele, ou da fama: bonita, elegante e zero calor humano.
O carro estacionou na entrada e Carla soltou um suspiro.
— A Laura deve estar na escola. Ela chega às quinze horas, ainda são quatorze… então dá tempo de te mostrar tudo.
Eu engoli seco. Tudo parecia coisa demais nesse lugar.
Desci do carro, ainda olhando para cima como se a casa fosse me engolir a qualquer instante. Carla caminhou na frente e eu fui atrás, tentando não parecer uma turista perdida.
Assim que entramos, vi alguns funcionários andando de um lado para o outro. Gente de terno, seguranças parados como estátuas, mulheres da limpeza, alguém organizando flores… Parecia uma mistura de hotel cinco estrelas com bunker.
E por dentro…
Meu Deus.
Era simplesmente deslumbrante. Pé-direito duplo, vidro do chão ao teto, arte moderna que eu fingia entender, escada flutuante, jardim interno, móveis que provavelmente valiam o meu fígado. A cada cômodo eu prendia o ar, e Carla devia estar se divertindo com a minha cara.
— Vem, vou te mostrar o segundo andar — ela disse.
Subimos e ela abriu a porta de um quarto.
O quarto de Laura.
A atmosfera mudou. Saímos do museu minimalista e entramos no universo lilás mais fofo do mundo. Paredes suaves, decoração de bailarina, um mini-closet lotado de vestidos rodados, sapatilhas, pelúcias… e, acima da cama, uma foto grande emoldurada.
Uma família.
Eu me aproximei.
Uma mulher belíssima com um sorriso doce. Um homem alto, incrivelmente bonito e sério até na foto, segurando uma garotinha. E no colo da mulher, outra criança, menorzinha.
Carla ficou em silêncio por alguns segundos antes de falar.
— Essa é Nara, a esposa do Rodrigo… e essa é Estela, a filha mais velha.
Meu coração gelou.
— Não sabia que ele tem duas filhas… — sussurrei.
— Tinha — Carla corrigiu, com um olhar triste. — Elas faleceram num acidente de carro. Rodrigo quem estava dirigindo.
Eu arregalei os olhos, sentindo o estômago afundar.
— Meu Deus…
Carla respirou fundo.
— Meu primo é fechado, sim… mas muita coisa aconteceu. Ele perdeu a esposa e a filha no mesmo dia. E… ele carrega essa culpa. Com a Laura… — ela deu de ombros — ele tenta compensar. Às vezes demais.
Voltei a olhar a foto.
O Rodrigo da foto não parecia o homem frio e arrogante de quem todos falavam. Ele estava sorrindo… e os seus olhos brilhavam. Parecia vivo, feliz.
O contraste doía.
Suspirei sem perceber.
Nem sempre a gente sabe o que existe por trás de alguém… e, às vezes, o que sobra depois que o mundo desaba sobre uma pessoa explica tudo o que ela se torna depois.
Quando Carla me levou para o que seria o meu quarto, já estava esperando algo simples. Tipo… uma cama, talvez um criado-mudo, quem sabe uma cortina torta. Eu sou acostumada com o básico, ou nem isso.
Mas quando ela abriu a segunda porta do corredor, próximo a cozinha, eu simplesmente travei.







