Mundo ficciónIniciar sesión— A Laura é uma criança… hm… levada. A babá dela pediu demissão ontem e disse que não volta nem amarrada. Estamos sem ninguém. O Sr. Ferreira é muito ocupado, viaja muito, e não conseguimos contratar substituta. Todas recusam depois de dois dias.
Ah, maravilha. A criança devia ser um anjinho.
Cocei a sobrancelha, incrédula.
— Carla… eu não tenho experiência nenhuma com criança. Assim… NENHUMA. A única vez que cuidei dos filhos da vizinha eu dormi antes deles. E acordei com eles pintando a parede com hidratante.
Carla riu, cobrindo a boca.
— Eu sei que você não tem experiência. Mas você tem jeito, é espontânea, divertida, sabe lidar com situações caóticas… e acredite, a Laura precisa exatamente disso.
Ela então suspirou.
— Seria só por uns meses. Até encontrarmos outra funcionária. E sua vaga na TI está garantida depois disso. Palavra da diretoria.
Fiquei olhando pra ela, meio atordoada.
Babá.
Eu, Mariana Castro, futura gênio da informática, cuidando de um ser humaninho rico e possivelmente astuto.Mas o salário chamava e a vaga garantida chamava mais ainda.
E minha conta bancária, coitada, já tinha até mandado um “aceita, pelo amor de Deus”.
Respirei fundo, sentindo que minha vida estava prestes a virar do avesso.
— Carla… isso é sério mesmo? — perguntei baixo, como quem pergunta se o mundo acabou e ninguém avisou.
Ela só confirmou com a cabeça, esperançosamente.
E eu… senti que a rasteira do destino tinha acabado de começar.
Fiquei olhando para ela, pensando se aquilo era sério mesmo ou se ela estava fazendo algum teste psicológico comigo. Mas o seu olhar era desesperado demais para ser brincadeira.
Suspirei, afundando na poltrona.
— Tá… — disse, sentindo meu estômago revirar — eu aceito. Relutantemente. MUITO relutantemente. Mas aceito.
Os olhos de Carla brilharam como se eu tivesse acabado de salvar a sua vida.
— Ótimo! — Ela abriu um sorriso enorme e puxou uma pasta. — Então deixa eu te mostrar a proposta financeira.
Eu me inclinei pra frente e aí… meu coração deu um tchan tão forte que quase parei de respirar.
— Isso tudo? — perguntei com a boca aberta.
Carla assentiu, toda orgulhosa.
— Como eu disse, é muito bem remunerado.
Já estava imaginando um apartamento só meu, finalmente liberdade dos meus tios malucos, paz, silêncio, poder andar de toalha pela casa, comprar cortinas bonitas, colocar um tapete peludo que ninguém ia derramar cerveja por cima… ah, o sonho!
Estava sorrindo que nem boba até Carla continuar:
— Claro, você sabe que… nesse período, você teria que morar lá, né?
Meu sorriso morreu na mesma hora.
Caiu. Despencou. E bateu no chão.— O quê? — arregalei os olhos. — Como assim MORAR LÁ?
Ela franziu os lábios, tentando amenizar o impacto.
— Mariana… a Laura só tem seis anos. Ela é muito apegada e o Sr. Ferreira viaja constantemente. A menina praticamente não pode ficar sozinha, entende? Ela precisa de alguém presente no dia a dia.
Fiquei piscando, tentando ver se ouvia direito.
— Morar… na casa do CEO? — falei devagar, como se alguém tivesse mexido no meu processador interno.
— Sim — Carla respondeu baixinho. — É temporário. Alguns meses no máximo e você terá um quarto só seu, totalmente separado, não se preocupe.
Encostei a cabeça na poltrona e soltei o maior suspiro da minha vida.
Morar na casa daquele homem? Do tal Rodrigo Ferreira?
O mito, a lenda, o terror dos funcionários.
Nunca o tinha visto pessoalmente, até porque ele não andava nos andares em que pobres estagiários como eu trabalhavam. Sempre eram os gerentes que subiam até o andar dos deuses, digo, da diretoria.
Mas a fama dele… o homem era mais gelado que ar-condicionado no 16.
Frio, arrogante, sério, o tipo que deve assinar contratos usando sangue de funcionários cansados.Eu respirei fundo.
— Olha… eu não sei se eu quero morar com um cara que parece um iceberg com CPF… — murmurei.
Carla riu, nervosa.
— Ele não é tão assustador assim.
— É o que vocês dizem quando querem enganar alguém — retruquei.
Mas aí, olhei de novo o valor do salário.
E pensei no meu tio berrando bêbado às três da madrugada. Nos pratos sujos que nunca eram meus, nos gritos, no cheiro de cigarro barato, na falta de privacidade. E na vontade de fugir daquele lugar toda vez que chegava em casa.
Suspirei.
— Esse salário… — murmurei — dá pra eu comprar paz. Pelo menos um pouco.
Carla sorriu, como quem diz sabia que você ia ceder.
— Então… aceita mesmo? — ela perguntou, esperançosa.
Assenti devagar.
— Aceito. Mas que fique claro que se essa menina tentar me enforcar com uma boneca ou atear fogo no meu quarto, eu volto pro RH gritando.
Carla gargalhou.
— Tudo bem. Eu aviso o Sr. Ferreira que você começa amanhã.
Engoli seco.
Ótimo. Na casa do homem mais frio da Cidade Solmare. Cuidando de uma criança que expulsou todas as babás anteriores.
***
Na quinta-feira de manhã, eu estava com a cara enfiada no meu caderno, fingindo que estava revisando algo da aula. Na verdade, só estava tentando processar a bomba que aceitei ontem. A sala ainda estava enchendo devagar, o sol atravessando as janelas e me deixando meio sonolenta.
Babá. Da filha do CEO. Morar na casa dele.
Ainda não sabia se ria ou chorava.
Foi então que uma sombra apareceu ao meu lado. Levantei o olhar e lá estava Jaime.
Lindo, fofo, inalcançável.
O namorado-de-alguém.Ele estendeu o caderno pra mim.
— Valeu por ter me emprestado — disse, com aquele sorriso que fazia até meu rim querer doá-lo pra ele.
Peguei o caderno, sorrindo também.
— Não foi nada. Sempre que precisar, é só pedir.
Ele se ajeitou, passando a mão no cabelo, aquele cabelo que parecia ter sido criado por deuses que gostam de provocar mulheres trouxas como eu.
— E aí… como foi na empresa ontem? — perguntou. — Te contrataram?
Meu sorriso veio automático, mas meio torto.
— Mais ou menos. — Dei de ombros. — Vou fazer outro serviço antes, mas a vaga está garantida.
Ele franziu o cenho sem entender nada e eu também não expliquei. Nem eu tinha entendido bem onde fui me enfiar.
— Outro serviço? Como assim?
— Ah… longa história — respondi, enrolando. — Depois te conto.
Ele pareceu ainda mais confuso, mas assentiu, gentil como sempre.
— Entendi… eu acho.
Deu uma risadinha leve, e ai… meu coração derreteu como chocolate esquecido no sol.
Aproveitei a deixa e perguntei:
— E você, ficou na empresa onde estava estagiando? Eles te efetivaram?
Na hora, o seu rosto acendeu e ele abriu um sorriso enorme, e lindo, claro, que iluminou até a alma de quem estava virado pra lousa e nem viu.
— Efetivaram sim! — disse, todo animado. — Amanhã eu já começo na nova função.
Me derreti mais um pouquinho.
— AAAAAH, Jaime! Parabéns! — falei, batendo palmas baixinho. — Sabia que iam te chamar. Você é bom demais pra perder.
Ele ficou meio sem graça, daquele jeito charmoso, sabe?
— Valeu mesmo, Mari.
E então ele se virou para ir sentar no lugar dele.
E eu? fiquei olhando.
Sim. Eu olhei a bunda dele indo embora.
Porque Deus fez para ser admirada, eu apenas cumpro minha função social.Aquela calça jeans abraçava ele como se fosse apaixonada.
Respirei fundo.— Ah, Jaime… você é lindo de matar — murmurei baixinho. — Sorte da sua namorada. Azar do resto do planeta.
A professora entrou, mandando todo mundo se ajeitar. Eu abri meu caderno, mas minha mente estava um caos total.
Quando cheguei da faculdade, já senti o nervoso no peito. Tinha que contar para os meus tios que eu ia embora.
Passei a manhã toda pensando em como falar aquilo sem virar uma guerra, mas… bom, naquela casa nunca tinha como evitar completamente.
Desci para a sala de estar e encontrei o mesmo cenário de sempre, meu tio largado no sofá, com a garrafa quase vazia na mão, a cara amassada e aquele cheiro que já fazia parte da casa.
E minha tia andando de um lado para o outro, enfurecida, reclamando como sempre, dizendo que ele não prestava, que era um inútil, que só sabia beber.
Ele respondia à altura, mandando ela calar a boca, largá-lo, essas coisas que eles dizem há anos mas nunca cumprem. Um amor doentio… ou sei lá que nome dá pra isso.
Me sentei à mesa com meu prato de comida e fiquei um momento observando a cena, tentando achar a coragem que me faltava. Quando senti que ia perder o impulso, respirei fundo.
— Eu preciso falar com vocês — soltei de uma vez.
Os dois pararam e olharam pra mim ao mesmo tempo. Minha tia com o cenho franzido, meu tio com um sorriso torto e debochado.
— Que foi, menina? — ela perguntou.
Respirei fundo e disse de vez.
— Eu vou me mudar.
Meus tios se entreolharam como se eu tivesse dito algo absurdo. Meu tio começou a rir. Rir mesmo, alto.
— Vai se mudar pra onde, menina? Tu não tem onde cair morta. Ou vai pra cadeia, igual teu pai?
Eu congelei. Por um segundo inteiro, meu cérebro simplesmente… desligou. Depois, reacendeu com uma explosão de ódio.
— Lava essa boca imunda pra falar do meu pai — cuspi as palavras como fogo.
O riso dele morreu na mesma hora e ele se levantou devagar, com a garrafa escorregando da mão e batendo no sofá.
— O que você disse? — ele avançou um passo.
Meu estômago gelou, mas não recuei.
— Eu disse pra você lavar essa boca — repeti, com a voz trêmula, mas firme o bastante pra cutucar o ego dele — porque meu pai é inocente. E você nunca vai ser metade do homem que ele é.
Foi aí, que o monstro acordou.
Ele agarrou meu braço com força, tanta que senti os seus dedos afundarem na minha pele.
— Menina insolente… — ele rosnou, puxando meu corpo como se eu fosse uma boneca leve demais.
Antes que eu percebesse, minhas costas bateram na mesa com força. Uns copos caíram e estouraram no chão com um estrondo que ecoou na cozinha inteira.
Meu coração disparou tanto que parecia que ia atravessar meu peito.
— Me larga… — eu forcei o braço pra trás, tentando soltar — Tire suas mãos imundas de mim, seu desgraçado!
Ele não largou, sua respiração vinha quente e fedida, impregnando meu rosto. Minha tia gritava alguma coisa, mas a voz dela parecia distante, abafada.
Apoiei a mão no seu peito e empurrei, desesperada. Mas ele era muito maior e mais pesado.
Meu empurrão só fez ele se irritar mais, então o seu olhar escureceu e ele ergueu a mão.







