Mundo de ficçãoIniciar sessãoO sol nasce pela janela como um convidado indesejado, invadindo meu quarto com tons suaves de laranja e rosa, como se tentasse me convencer, de forma quase ingênua, de que este dia poderia ser diferente. A luz desliza pelas paredes de pedra que carregam séculos de história — memórias que não me pertencem, mas que, mesmo assim, pesam sobre meus ombros como uma herança invisível. A brisa fresca da manhã se infiltra pela fresta das cortinas entreabertas, trazendo consigo o cheiro de terra úmida, o perfume adocicado das flores do jardim e uma promessa que eu não desejo aceitar: a promessa de que o dia está somente começando, e que precisarei enfrentá-lo.
Estou deitada na cama, imóvel, com o corpo coberto até o queixo pela colcha espessa que não me aquece de verdade. Observo o movimento lento das árvores do lado de fora, seus galhos balançando suavemente ao ritmo do vento, como se dançassem uma coreografia antiga e sagrada, conhecida unicamente por elas. As folhas parecem mãos verdes agitadas pela natureza em um balé silencioso, e, por um instante fugidio, tento me deixar levar pela beleza daquela cena. Tento. Mas a paz que habita lá fora não consegue alcançar o silêncio que pesa dentro de mim — um silêncio sufocante, denso, tão espesso que sinto como se estivesse presa dentro dele, afogada em mim mesma.
O castelo desperta lentamente, como uma criatura gigantesca que acorda relutante. Ouço o barulho dos empregados se intensificando a cada minuto: o arrastar pesado de baldes, a água batendo contra a pedra fria, passos apressados ecoando pelos corredores largos, vozes trocando instruções sobre o que precisa ser feito antes que o dia se estabeleça por completo. Tudo isso deveria me trazer um pouco de conforto, uma sensação de normalidade, de vida pulsando ao meu redor. Mas parece distante demais, como se viesse de um mundo que não é mais o meu. Um mundo que perdi no mesmo dia em que perdi a ele.
Um sorriso triste toca meus lábios sem que eu perceba, um reflexo involuntário da dor que me acompanha como uma sombra fiel, inseparável. A manhã tenta me envolver com seu calor gentil, quase maternal, como se quisesse me oferecer um abrigo suave em meio aos meus tormentos. E sou grata, profundamente grata, por esse breve momento de quietude antes que o dia me esmague com suas exigências implacáveis.
Respiro fundo. O ar frio invade meus pulmões e me concede alguns segundos preciosos de lucidez, como se a própria natureza sussurrasse ao meu ouvido com voz antiga e sábia: “Anya, fique tranquila. Desfrute deste instante, pois é precioso e fugaz.”
Fecho os olhos, rendendo-me por um momento à melodia suave dos pássaros, ao farfalhar delicado das folhas, ao murmúrio distante da vida acontecendo lá fora, alheia à minha dor. Tento me permitir acreditar que ainda existe espaço para beleza na minha vida, que ainda há algo além deste vazio que me consome. Mas a sensação dura pouco — tão pouco quanto dura a esperança quando se está afogando em luto.
A lembrança dele retorna como uma onda — inevitável, amarga e avassaladora, arrastando-me para o fundo.
Seu toque.
Seu cheiro.
Sua voz rouca pela manhã.
Tudo o que perdi e nunca mais terei de volta.
E, com isso, a dor se instala novamente, fincando raízes profundas no centro do meu peito, como se pretendesse morar ali para sempre.
Enterro o rosto na colcha e suspiro profundamente, tentando conter as lágrimas teimosas que sempre ameaçam cair pela manhã, quando a solidão é mais cruel. O ar parece mais frio debaixo do tecido grosso, e, por um instante, eu desejaria me esconder ali para sempre, como se aquele pequeno gesto pudesse me proteger de tudo o que me espera lá fora. Os lençóis contra minha pele parecem ainda mais gelados hoje, como se refletissem a solidão que repousa sobre meu corpo desde o dia em que ele se foi e me deixou somente com suas memórias.
O quarto permanece silencioso, apesar do burburinho crescente do castelo que acorda lá fora. A estrutura de pedra ao meu redor parece guardar segredos que não posso ouvir, histórias antigas que não posso compreender, sussurros de outras mulheres que talvez tenham ocupado este mesmo quarto, sentido esta mesma dor. E, no meio disso tudo, meu coração b**e de forma frenética, desgovernado, como se tentasse me alertar sobre algo que eu já sei muito bem: a realidade está à minha espera, cruel e implacável, e não há como escapar dela.
Ouço passos leves se aproximando pelo corredor e já sei quem é antes mesmo que a porta se abra. Minha mãe. Reconheço a cadência suave dos passos dela, o ritmo constante, como se ela não tivesse pressa, mas também não tivesse escolha. Como se cumprir este ritual diário fosse mais uma das muitas obrigações que a vida lhe impôs. Em poucos minutos, ela entrará aqui para me arrancar deste refúgio frágil que construí ao redor de mim.
Refúgio que nunca é suficiente. Que nunca foi.
A porta se abre devagar, quase hesitante.
— Bom dia, dorminhoca! Vamos levantar, que o sol já raiou. — A voz dela é doce, carregada de uma ternura genuína, mas há uma firmeza escondida ali, nas entrelinhas, como sempre há.
Rapidamente limpo as lágrimas que ainda nem caíram, somente ameaçam, e descubro a cabeça. Forço um sorriso, mesmo sabendo que ela percebe a falsidade dele. Mas faço assim mesmo — porque é tudo o que consigo fazer, tudo o que me resta.
— Bom dia, mamãe. — Sento-me na cama, evitando seu olhar penetrante que sempre vê demais.
— Filha… — ouço o som suave de sua roupa enquanto ela se aproxima, e o perfume dela me alcança, familiar e reconfortante. — Olhe para mim, Anya. — Sua mão acaricia meu queixo com delicadeza infinita, obrigando-me a levantar o rosto. Seus olhos estão cheios de preocupação, aquele tipo de preocupação maternal que fere tanto quanto um golpe certeiro, porque carrega amor e impotência na mesma medida.
— Me desculpe, mamãe, eu não… — começo, mas minha voz falha, quebrando-se no meio das palavras.
Ela se senta ao meu lado, o colchão afundando levemente com seu peso, e limpa uma lágrima que escapou sem minha permissão, traindo-me.
— Filha, eu sei que você sente falta dele. Eu sei. — Sua voz é um sussurro carregado de compaixão. — Mas também precisa entender que não temos outra escolha. Nenhuma de nós teve.
As palavras dela cortam mais do que consolam, deixando feridas invisíveis.
— Mas, mãe… faz só um ano. Só um ano, e papai já vem com esse assunto outra vez? — Minha voz sai mais alta do que eu pretendia, carregada de indignação e desespero.
Ela suspira longamente, como se carregasse um peso que não foi ela quem criou, mas que precisa carregar mesmo assim.
— Eu sei… mas precisamos pensar no que é melhor para o povo. Para Elderin.
Meu estômago revira violentamente, e, por um instante, temo que vou vomitar.
— E para mim? — Minha voz treme. — Sou filha dele! Não importa o que eu sinto?
Ela segura minha mão entre as suas, fazendo um carinho lento e triste, daqueles que carregam mais peso do que conforto.
— Filha, você sabe que tem uma obrigação a cumprir. Nasceu princesa. E isso significa…
— Obrigações… sempre elas. — Interrompo, amarga. Engulo minhas lágrimas com esforço, como se fossem pedras presas na garganta. — Entendo. — Minhas palavras saem engasgadas, rasas, vazias.
— Vamos, levante. Seu pai está nos esperando para o café. — Ela se levanta, alisando a saia com as mãos, e eu sei que a conversa acabou.
Sinto como se o chão estivesse preso às minhas pernas quando me levanto, como se cada movimento exigisse um esforço sobre-humano. Samira aparece logo em seguida, fazendo exclusivamente um gesto com a cabeça e indo para o banheiro. Não demora muito e ela volta com um sorriso gentil estampado no rosto, aquele tipo de sorriso que os empregados aprendem a manter mesmo quando sabem que algo está errado.
— Seu banho já está preparado, alteza. — Sua voz é suave, quase maternal.
— Obrigada, Samira. — Caminho entrando no banheiro, deixando que ela me ajude a despir a camisola que usei durante a noite. Quando entro na banheira, a água morna alivia meu corpo cansado, mas não toca a dor que habita dentro dele, enraizada tão profundamente que nenhuma água conseguiria alcançá-la.







