Capítulo 1

“Você sabe o quanto o dinheiro é insignificante quando você passou por pelo menos três dessas situações: Você já teve muito e viu que a felicidade não bateu na sua porta como você esperava ou imaginava. Você mesmo com tanto dinheiro não conseguiu ajudar ou salvar a vida de quem você amava. Você notou que quanto mais trabalhava e mais ganhava, menos vivia. Você ganhava tão rápido quanto perdia. Você destruiu algo ou alguém por causa dele. Você empacou quando a montanha de grana se tornou barreiras no meio do caminho e com isso você se perdeu. Você viu pessoas que te odiavam dizerem te amar quando você sabia que não era verdade... Ou simplesmente percebeu que não importava o quanto tivesse aquela pessoa não te queria em sua vida com ou sem ele. Pobre ou rico, você era você sem tirar nem pôr.”

São Paulo, 21 de Maio de 2018. 14:26hrs

Mermaidy Resorts

Boa tarde, senhor Amorim. Sou Anália Junqueira, diretora comercial da Mermaidy Resorts, a maior rede hoteleira do país atualmente. Tentei encontrar seu CNPJ e entrar em contato por telefone com a companhia Amorim Pescados e não obtive respostas. Gostaria então, de agendar uma reunião de negócios pessoalmente em Alagoas para tratarmos de propostas referentes ao projeto Mermaidy já apoiado pela secretaria de turismo da capital Alagoana há cerca de três meses, documentos esses que não nos foram repassados com as devidas assinaturas. Podemos agendar uma data com o senhor, seus advogados, ou um funcionário responsável?

Aguardo um retorno.

Anália Junqueira

GERENTE COMERCIAL

comercial@mermaidyresorts.com.br

www.mermaidyresorts.com.br

+551199664-5587

Lora lê o e-mail que recebemos há dias atrás e eu não abri, em voz alta e me analisa enquanto eu abria a marmita que me havia trago.

— O quê? — indago ao me jogar pesadamente no pequeno sofá do escritório. Seu olhar para cima de mim era de curiosidade.

— O que eu respondo?

— Manda esse povo pra baixa da égua!

— Você tem que responder alguma coisa, Inácio! Se entrarem com um recurso contra a gente, eles ganham! Eles têm bons advogados, homem! Você precisa pelo menos aceitar a visita, a secretaria de turismo está do lado deles, já faz muito tempo que querem mexer na ilha, lucrar com isso aqui... ignorar os e-mails não vai nos proteger contra eles. A gente precisa pensar no que fazer para nos resguardar, contratar alguém, não sei...

— As cartas estão aí... — eu falo após mastigar e ela pega o punhado de correspondências amassadas. —... leve-as para os moradores. Dona Rute vai amar saber que seus artesanatos serão vendidos aqui mesmo, e não no Porto. — sou irônico e ela revira os olhos. — Basta eles assinarem, e no dia seguinte eles estão aqui com os navios e com todas as suas tralhas para derrubar essas árvores e jogar o entulho no mar, mas o turismo, ó... — beijo a ponta dos dedos. — será um sucesso!!! Sem contar que você ia amar pegar o dinheiro que eles querem nos pagar e dar uma de ‘dondoca nos saltos’lá na capital.

— Ah! Deixe de lezeira homem!

— Apenas não responda, ora essa... o que eu vou dizer!? Nada foi assinado, sem isso eles não podem pisar aqui, te garanto. Nós precisamos concordar para essas obras acontecerem e nós não iremos concordar com isso nunca, visse? O que responder!? Bota uns palavrões aí, e está tudo certo. — falo mastigando para não perder tempo e então esqueço o assunto.

Não era a primeira vez que eu recebia um e-mail como aquele, e sabia que não seria a última. Todos os meus ancestrais povoaram aquela ilha, ali éramos uma família. Eu sabia que existiam leis que nos protegiam, uma lei específica que me dava plenos poderes e era por isso que cada ano que passava mais documentos chegavam para eu assinar. Com meu nome naqueles papéis, seríamos enxotados daqui no dia seguinte e foi por nunca assinar que aquela ilha continuava apenas nosso lar e nada mais.

— Tá no seu pescoço ainda? — Simas joga a cabeça em direção ao escritório assim que eu me aproximo do barco.

Lora parou na porta e ficou me secando... me olhava como se quisesse me devorar.

— Avalie! — resmungo e ele ri. — Tá é carente. Quando Cristiano voltar ela se aquieta. Rapidinho abaixa o fogo.

— Se dependesse da aldeia, o cabra não pisava mais aqui, só permaneceu porque tu deixaste.

— Simas, só com o desprezo que a aldeia toda tem por ele, ele já paga o que fez comigo. Vambora. — digo para encerrar o assunto, subo na Traineira, e ele repete meu gesto assentindo.

— Tarde, Pedro! — cumprimento o fanfarrão que já estava no barco e ele sorri. Pedro era mudo desde que nasceu, — ou desde que eu me lembrava porque afinal, nunca o vi falando. — por isso apenas toca a boca com os dedos fechados e abaixa a mão... me responde ‘boa tarde’ em libras. Devia ter uns vinte e sete anos, era um bom rapaz, boa família, bom amigo e ótimo pescador.

Já Simas tinha seus quarenta e seis anos, dia sim e dia não socava suas rabugices goela á abaixo de qualquer um que o atazanasse, apesar de que de velho ele só tinha a barba que nunca aparava, e assim como eu, havia nascido, crescido, e com certeza morreria naquela ilha.

Dona Neide, a moradora mais velha e nossa “enfermeira” ou “curandeira”, porém mais ‘inteira’ que muitos jovens por aí, me contara uma vez a respeito de meus pais, há muito tempo atrás. Meus velhos se casaram aqui e namoravam desde jovens, a história deles era tão bonita — a versão que ela contava. — que eu achei que teria uma história igual com Lora. Minha mãe morreu de ataque do coração, era o que ela disse uma vez, e meu pai se foi depois, do mesmo modo — só essa história que era bem mal contada, mas eu ouvia sua versão romântica e assentia. Dona Neide gostava de mim como gostava de seus netos, ela só mentia por me amar. — ‘Os dois’ lutaram demais pela ilha e por nossa independência. Graças aos dois nos mantivemos isolados e protegidos do controle da capital por anos, era o que ela dizia, e quando eles se foram, seu Noronha assumiu a liderança, melhor amigo da minha mãe, hoje acamado devido à velhice. Acho que tínhamos uns três anos, por isso eu não me lembrava de nada, mas dona Neide dizia uma idade diferente cada vez que eu pedia pra ela contar nossa história.

Com Simas a história não foi muito diferente, foi pior... perdera os pais ainda muito menino, mas também não tivera somente essa perda na vida. Sua esposa e filha faleceram nesse marzão em uma época em que a aldeia fazia uso de balsa para mandarem os pequenos para a escola em Alagoas. Apesar de que por não encontrarmos o corpo da menina, ele ainda esperava por ela. Estavam todas as crianças maiores da aldeia, e suas mães, para irem para a escola, a mulher de Simas e a pequena que pegaram uma carona para levá-la ao pediatra no centro, inclusive Lora e seus pais que se foram na tragédia também... obviamente eles sabiam nadar, mas ficaram presos de algum modo nos escombros e praticamente amarrados pelas cordas. Morreram afogados.

Desde então conseguimos uma professora para dar aulas aqui, — a última precisou se mudar de Alagoas e nós contratamos outra. — e montamos uma escola para atender a todas as crianças; desse modo muitos adultos que queriam se alfabetizar participavam também. Assim que cada pequenino chegasse à idade de ir pro ensino fundamental, aí liberávamos a escuna para fazer os transportes dos mesmos. Já maiores o perigo era menor, todos eles nadavam bem e ainda assim faziam o trajeto com a devida segurança. Balsa, nunca mais!

Na traineira éramos os três, na lancha de apoio, era Tico e Roger.

— EHHH, FARRAPÃO!!! — Roger grita enquanto navegava ao nosso lado após sair do outro ponto da ilha. Após o almoço, meio-dia, nós saíamos para a segunda rodada umas duas vezes no mês, para a pesca de manjubas. — ‘SENHORITA TRASEIRO’ FICOU TE ESPERANDO ONTEM! — ele fala de uma das professoras dos pequenos, senhorita Cristine Travado. Esse era o nome dela, mas ele passou a chamá-la de “Traseiro” após ver a professora tomando banho de mar com as crianças, num sábado ensolarado.

Nesse dia eu a levei de traineira até o porto, era umas sete e meia da noite, fomos conversando e pelo jeito ela gostou de mim. Mandou recado pelo Roger dizendo que queria almoçar comigo na sua pausa das aulas, no dia seguinte, mas esqueci e só me lembrei agora que ele acabara de gritar.

— EU ESQUECI. VOU FALAR COM ELA. — eu grito de volta e ele ri negando.

— VAI PERDER... — ele volta a gritar e faz gestos obscenos indicando o que eu perdi.

Eu poderia dizer: “fique com ela pra você...”, mas nem poderia. Roger gostava mesmo é de Lora, e todo mundo sabia disso. Ele não tem coragem de dizer por medo de ser rejeitado pela quenga, e também tinha medo de ser zoado e levar gaia por sua fama. Apesar de que todo mundo sabia também que apesar dos sentimentos dos dois, — o dela por mim e o dele por Lora —, Roger e senhorita Travado trepavam sempre após o almoço. Como eram dois adultos que nem se levavam á sério, eu não ligava para o fato.

Assim que atingimos o ponto certo em alto mar, manobro a traineira para meia-volta enquanto Roger e Tico fazem o mesmo.

— UM. — ouço Simas gritar indicando que havia soltado ao mar um metro de rede — traina —, e enquanto fazia isso, da popa, eu podia ver Pedro soltando os pesos para a rede descer, — sem isso o punhado imenso de fios de náilon não atingiria a profundidade correta no tempo esperado. — DOIS. — rapidamente se foram dois metros... mantenho a velocidade, vejo Tico e Roger que seguravam a ponta da rede que Simas jogara ao mar antes de nos separarmos, seguindo o caminho para nos encontrarmos alguns metros mais á frente, e continuo. — VINTE E SETE. — Simas grita minutos depois e eu sei que preciso diminuir a velocidade, e não só por isso, dali já podia ver que estávamos chegando á lancha de Roger, daquele modo fechávamos o cerco das sardinhas em um círculo perfeito, e depois, como a pesca era artesanal, o trabalho era braçal, a puxada era na raça.

Desligo o motor do barco, mas deixo o motor da traina ligado para ir até proa. Nós três puxaríamos dali com a ajuda do motor que mais servia para não deixar a traina acumular no convés do que ajudava na força.

Em uma hora finalizamos todo o protocolo. Braçal do mar até a proa, sardinha nos isopores, traina enrolada, barco manobrado em direção ao cais

e chegando ao destino: isopores pesados nos ombros, e por último, mas não menos importante, a tão esperada venda de sempre. Tínhamos os clientes fixos, e cada barraca que era montada lá, comerciante novo que chegava... a maioria nos procuravam. Nosso respeito á natureza e á qualidade com os serviços eram bem faladas pelo mercadão. As redes das pescas industriais tiravam do mar não só as sardinhas ideais para o consumo, mas também os filhotes, as mais gordas que tinham um índice grande demais de gordura, e sem contar o excesso de pesca que era totalmente prejudicial ao meio-ambiente. Agora, Amorim Pescados era o oposto e nossa traina só tirava do mar os peixes prontos para o ‘abate’.

Houve um tempo, assim que seu Noronha e os pescadores já mais velhos adoeceram, a ilha perdeu alguns barcos por causa da “aposentadoria” dos amigos pescadores, e depois de alguns anos, já amadurecido na idade e na ideia, eu decidi recomeçar o negócio com o dinheiro que minha mãe nos deixou. Na época era uns quarenta mil, na crise que estamos agora não é nada, mas naquela ocasião era mais do que precisávamos, era um bom dinheiro. Chamei meus amigos, meu irmão, o velho Simas, o mais experiente, e juntos voltamos a trazer verba para a ilha. E além de verba, alimento, emprego, remédios específicos e daí por diante.

— Tem uma dondoca lá no seu Tião esperando por você. — a menina Ellen, filha de um comerciante do porto, um cliente fixo, me recebe como sempre recebia os pescadores que ela mais gostava, com uma garrafa de cerveja nas mãos. Quando estava frio, uma xícara de café bem quente ou pinga de cana artesanal era o que ela oferecia.

— É empresária, é!? — abro a garrafinha na mão e ela afirma. — Já pedi que não dissesse nada a nosso respeito... o que ela quer??? O que disse a ela?

— Eu só a mandei esperar, e só fiz isso porque não é a primeira vez que ela está aqui te chamando pelo nome. Essa mulher está hospedada em Alagoas, Nácio, vem aqui todos os dias vai fazer cinco dias. É uma grosseira amostrada. Já disse que não vai parar de vir porque fica “te mandando e-mail e você não responde”. Acho que é melhor ver logo o que ela quer.

— Eu sei o que ela quer. Ela quer tomar a aldeia de Santa Clara para construir um monte de prédio, é isso o que ela quer. Eu vou lá. — eu digo, a pequenina assente, e eu sigo um caminho reto até a cachaçaria um tanto chique de seu Tião.

 O ‘bar’ vendia as melhores pingas nordestinas de todo o tipo do mercadão, e dona Rosália, sua esposa, fazia os melhores quitutes para degustar com as bebidas, e para isso tinha até mesinhas aconchegantes. Como era um estabelecimento confortável e dava direto pra porta da rua, geralmente todo mundo parava lá ao sair ou ao entrar.

A mulher vestia branco, uma saia justa até o joelho e aqueles terninhos de executiva que tem aos montes em filmes pornôs. Tudo tão branco que parecia até médica. Era galega, seus fios dourados eram curtinhos, lisos, e seu nariz bastante proporcional, mas não era feia não, era bonita até. Claro que sua roupa a deixava mais velha do que ela deveria ser, mas era bem bonita...

Me sento ao seu lado no balcão, seu Tião me vê, mas não fala nada, bebo um gole grande da cerveja, e respiro fundo. Era preciso muita coragem e paciência para não m****r aquela mulher pro quinto dos infernos sem nem deixá-la me dar um ‘boa tarde’.

— Me procurando, dona? — eu murmuro e ela pula, quase cai da cadeira. Claro, estava pendurada no celular...

— Meu Deus! — ela coloca a mão no coração, e eu evito revirar os olhos. Eu não era de todo ruim, eu ia dar uma chance de ela me dizer ‘boa tarde’. — De onde você veio?

— Quer falar comigo ou posso zarpar?

— Inácio Amorim? — ela inclina a cabeça branca levemente.

— O próprio.

— Sou Anália Junqueira, te mandei alguns e-mails durante toda a semana, nos últimos seis meses. — ela diz levantando uma sobrancelha.

— E daí?

— O senhor ao menos os leu?

— Obviamente que não, ora essa.

— Acha que pode nos ignorar para sempre???

— Eu vou tentar, isso é certeza.

— Nós temos a lei do nosso lado, senhor Amorim.

— Se tivessem mesmo, não estariam insistindo tanto, já teriam baixado na costa da ilha com seus trambolhos. Minha resposta é ‘não’, senhorita Amélia.

— É Anália. Escuta... — ela murmura quando eu me levanto. — Pode, por favor, me ouvir? Só me ouvir!? Nós da Mermaidy Resorts, temos conhecimento de seu caráter, de seus princípios, principalmente com relação a toda a sua preocupação com o meio-ambiente... e... — a mulher vai falando no aperreio. Enquanto eu andava, ela corria. — é também nossa política mais importante. Nossos Resorts preservam áreas ambientais e... por favor... senhor Amorim...

— Vocês podem ser o que for, dona. Ninguém vai tomar a minha ilha.

— A ilha não é tua...

— E ela com certeza não será de vocês.

— Temos a autorização relacionada a...

— Mas não tem o principal, o meu ‘sim’.

— Como consegue ser tão burro? É sério... já entendi que você tem um apego sentimental aí... — ela diz aquilo com desdém e eu olho ao redor. A mulher que latia como uma cadela brava já chamara a atenção de alguns pescadores e comerciantes próximos á nós. —... mas como não pode sequer pensar no bem que isso pode trazer para a população local!? Estou falando de emprego, ótimos salários, água encanada, saneamento básico, energia, dinheiro circulando nas mãos dos próprios moradores, mesmo porque eu sei que vocês têm artesões magníficos, telefone, internet... vocês vão parar de viver como homens das cavernas, e vão principalmente parar de passar horas carregando sardinha na cabeça, o turismo será a solução...

— Então é isso o que vocês pensam... — eu dou uma risada nervosa e ela gagueja. —... que somos selvagens sem água encanada? Como conseguiu nosso e-mail? Viu que no site da empresa tem e-mail de contato, imaginou que trabalhávamos em alguma Lan House, e não tivéssemos saneamento, ou eletricidade!? A senhorita é uma mula, ou é só preconceituosa? — fico irritado, ela gagueja um pouco mais, os pescadores gritam em zombaria, e eu me seguro, e por me segurar ofereço-lhe as minhas costas.

— Senhor Amorim, por favor, eu não quis ofender... — ela volta a me seguir desesperada.

— Diga para seus superiores que minha resposta é ‘não’, senhorita Amélia.

— É A-ná-lia, e eu vou perder o meu emprego... — ela diz choramingando e eu travo. Nunca gostei de ver mulher chorando podia ser quem fosse. —... vou perder meu emprego se eu chegar lá sem uma resposta positiva, por favor, eu tenho três meninas! Três filhas! Ela vai arrancar minha cabeça fora, senhor Amorim...

— Valeime! Ela quem???

— Minha chefe. Ela está furiosa, disse que eu nem precisava voltar se não conseguisse ao menos conversar com o senhor. Eu estou nesse porto há dias implorando para alguém me dar informações suas...

— Mas a senhorita conseguiu.

— O senhor nem me deixou falar...

— Diga que deixei, escutei pacientemente e a resposta...

—... “é não”, ok, você não cansa? — ela se invoca de novo e eu volto a caminhar em direção á traineira branca. — Ela tem uma ‘carta na manga’ senhor Amorim, enquanto o senhor não respondia, ela consultava os melhores advogados que podia, e ainda está fazendo isso. É melhor pro senhor além não de bater de frente, ficar aberto á negociações. Pode tirar um bom dinheiro disso, uma casa maravilhosa para morar na ilha ou em qualquer lugar do país, aumentar a frota de seus barcos... o senhor pode ficar rico! — ela diz aquilo praticamente gritando e eu lamento muito. O ar chegou a ficar rarefeito quando ela disse a palavra ‘rico’, todo mundo ouviu. O que tinha de pescador se equilibrando em corda-bamba todo mês não era brincadeira não, obviamente aquela palavra chamaria a atenção de quem quer que ouvisse...

— Agora pronto! A senhorita Amélia parou de chorar rapidinho, hein...!? — eu me aproximo e ela dá um passo para trás. — Faz um favor? Diga pra essa sua chefe, qual é o nome dela!?

— Júlia.

— Júlia, isso... diga pra ela continuar... o que ela faz mesmo?

— Senhor Amorim...

— Diga pra ela continuar brincando de casinha, cuidando de hotel de luxo lá na baixa da égua e que esqueça Santa Clara. Se ela tiver cacife pra parar de m****r e-mail e vir me peitar, melhor ainda, lhe darei uma pisa que ela vai sair daqui com “um quente e dois fervendo”! Que é o que eu vou fazer contigo se tu não correr em dois tempos!

— Grosseirão ignorante! — ela rosna raivosa.

— Tu não viste nada ainda, dona Amélia!

— É A-NÁ-LIA! Ogro!

— Quem é a doutora? — Simas permanece fitando a dondoca que se abraçava estressada e me fuzilava com os olhos, assim que pulei pro barco. Estava ventando muito, ali ventava mesmo... era melhor ela entrar para o mercadão para não se resfriar, mas eu não ia dizer isso a ela.

— É mais uma diaba querendo colocar as garras em Santa Clara.

— Ela tem para onde ir?

— Óbvio que tem, a boçal. Ellen descobriu que está hospedada em Alagoas faz dias, só conseguiu falar comigo hoje.

— Ela parece tão frágil... não me parece muito velha, é uma menina! — ele diz pensativo, Pedro bate na popa para nos chamar atenção e dizer que concordava com aquilo, e eu resolvo não dizer mais nada. Fazia anos que eu não via Simas olhar assim para mulher nenhuma, seria bom se ele encontrasse alguém. Nem que fosse aquela dona ambiciosa ou sua chefe aparentemente endiabrada.

O amor muda as coisas/pessoas não muda!? Era o que diziam, vai saber... eu não acreditava, mas não custava ter esperanças. E se Simas passasse a ter esperanças, eu já ficaria feliz.

(...)

— Pedro disse que uma ‘dona vestida de branco’ foi no Porto te procurar... — Lora me trás um prato de comida e se senta ao meu lado na mesa em frente à cabana de dona Silvéria. A fogueira já estava crepitando e Roger, junto com outros moradores músicos, já tocava seu violão como de costume, acompanhando a cantoria.

A traíra estava com seu colo bronzeado livre, decorado com alguns colares de madeira que dona Rute produzia, o decote chamativo demais em uma blusinha florida que caía nos ombros e deixava o umbigo á mostra, e suas familiares saias até o pé.

Não me lembro de quantas vezes já ergui aquelas saias para amá-la com força encostados a alguma árvore, ou em nossa cama mesmo. A ‘bicha’ era bonita demais, uma pena que não prestava. Pelo menos não como parceira.

— Não dá pra acreditar que o cara mais fofoqueiro desse lugar é mudo, não faz o menor sentido. — eu murmuro e ela ri.

— Quem era?

— A dona daquele e-mail que tu leste pra mim hoje mais cedo.

— Sabia que ela viria. Deu algo pra tu assinar?

— Nem tentou, a louca só latiu. — eu digo e volto a comer o Sururu dos deuses que só dona Silvéria fazia.

— Inácio... — ela baixa o tom de voz pra falar e eu sei que quer falar sobre “algo delicado” demais.

— Vê se me deixe comer, vou nem te ouvir agora, visse!

— Cristiano está voltando. Não deu certo lá em São Paulo, ele quer voltar pra ilha.

— Ora essa, ele que volte. Quem está impedindo?

— Ele teme a forma como será recebido por esse povo.

— Vai ser recebido como merece. Tua sorte é que eu não disse a verdade pra ninguém, senão seriam os dois desprezados pela comunidade. Está livre agora, é isso o que te preocupa? — eu falo e mastigo. — Tu podes casar com ele e viver feliz para sempre, não vou empatar vocês dois não.

— Já te pedi perdão por isso, por causa daquela noite eu te aguento falando assim comigo e aguento os olhares tortos de todo mundo aqui. Sabe que não é isso que eu quero, eu não o amo.

— Pensasse nisso antes de fazer o que fez.

— Nunca vai me perdoar, Inácio?

— Já perdoei, já perdoei os dois. Ele por me trair e me passar a perna e você por me chifrar. Basta não ficar de papinho mole no meu ouvido. Se falar disso, vai ouvir, dou-lhe uns catiripapo bem agora! Já te avisei, você fez uma escolha, colha o que plantou. — eu murmuro, ela assente e logo em seguida se retira.

Quando acho que vou conseguir comer tranquilamente, a professora se aproxima e se senta no lugar em que ela estava antes. E eu nem sabia que ela ainda estava lá. Era praticamente novata no lugar, então perdoei o fato que havia “esquecido” que nenhum funcionário de fora da ilha poderia ficar lá até depois do horário. Minha casa não era bagunça.

— Quarenta minutos, comi a comida do prato sozinha...

— Desculpe-me professora. — eu digo após engolir a comida. — Eu estava com a cabeça cheia, nem me lembrei... sinto muito! O que ainda faz aqui?

— Estava esperando pra conversar contigo e pegar uma carona de traineira. Me ofereceram o favor, mas eu disse que te esperaria. Imagino que quando volta no fim do dia, a última coisa que quer é voltar pro mar e sim descansar, mas achei que por causa da mancada, tu faria isso por mim para se desculpar.

— É espertinha... pelo jeito acho que já estou nas suas mãos... — eu sorrio e ela nega com a cabeça.

— Não está ainda, mas um dia quero que isso mude. — meu Deus, o que está acontecendo com essas mulheres?

— O que queria falar comigo?

— Nada, quer dizer... só queria conversar um pouco, não sei...

— Um encontro. Um encontro romântico na hora do almoço...

— Claro que não... — ela ri sem jeito.

— É sim... — eu murmuro rindo e a professora de cabelos dourados fica com a maçã do rosto avermelhada. — Vou te levar até o cais, deixa eu só comer mais um pouco, estou faminto. — eu ameaço me levantar, mas ela não deixa.

— Deixe que eu pego pra você...

— Eu... como bastante...

— Já notei isso! — ela diz rindo, e segue caminho até a mesa central de dona Silvéria. Tomo um gole grande de cerveja para empurrar o Sururu com o olhar zombeteiro de Roger em cima de mim e ela retorna. — Aqui. — ela me oferece o prato cheio. — Está bom?

— Está ótimo. — minto e ela sorri se sentando à mesa só que agora de frente, e não com os pés pra fora como estava antes.

Imediatamente sua coxa esquerda tocou a minha e eu não “entendi” muito bem. A mesa tinha uns três metros de extensão, era comunitária, ela podia muito bem se afastar um pouquinho só para que eu pudesse comer com mais espaço e tranquilidade...

— Quer se sentar no meu colo, professora? — deixo escapar.

— Claro. Agora? — ela murmura, me olha com bom humor, e se afasta um pouco pedindo desculpa. — Quer que... eu... peça para alguém me levar? Pra você poder comer tranquilamente? — ela pergunta e eu dou risada.

— Esperou por mim até agora e já desistiu? — olho em seus olhos e ela desvia os dela, ainda sorria sem jeito.

— Não quero ser inconveniente.

— Fique tranquila, está muito tensa. Gosto da tua companhia!

— Gosta?

— Sim! Mas me conta, como estão nossas crianças?

— Estão bem, graças a Deus.

— Elas gostam muito de você...

— E de você também. Todos eles querem ser como o “tio Inácio”. O melhor pescador de Santa Clara.

— Ah! Que legal! Elas dizem isso?

— Sim! — ela diz e eu sorrio feliz.

— Bom, fico feliz... mas eu não sou o melhor pescador não. Simas quem é.

— Eles não acham isso.

— É porque não navegam conosco. — dou risada e ela ri junto. — Se eu contar isso pra ele, o cabra dará uma gargalhada gigante bem na minha cara.

— Entendo! — ela ri comigo e depois suspira.

Termino a refeição, dou um beijo em dona Silvéria para agradecer, acompanho a professora até a sala de aula vazia para pegar sua bolsa, e depois até a praia.

— Posso te fazer uma pergunta pessoal? — ela indaga quando eu ofereço meu braço para que ela segure.

— Bom... pode.

— Já tem um tempo que eu estou aqui e não vi você se relacionando com ninguém... Não sei o que houve entre você e a Lora... saiu do relacionamento muito machucado a ponto de não dar espaço para ninguém mais? — ela pergunta e eu nego rindo.

— Quando disse “pergunta pessoal” não achei que seria tão pessoal assim.

— Desculpe, não precisa responder obviamente...

— Só o que vou te responder é: não me relacionei com mulher nenhuma porque não tenho tempo pra isso. Desde que terminei com Lora foquei muito em meu trabalho, quero trazer algumas melhorias pra ilha, acho que dona Neide não viverá para sempre, infelizmente, então, quero um ambulatório aqui pra gente não precisar ir até centro para consultar um médico. Acho que meus planos são outros e eu não daria conta de ter um relacionamento legal agora. Pelo menos eu não seria um namorado/marido cem por cento, entende? Prefiro assim do que cagar-o-pau e magoar alguém legal!

— Entendo, claro, faz todo sentido.

— Pois então. Acho que agora não é o momento, mas com certeza ele vai chegar um dia, afinal, não quero morrer sozinho e um homem não é nada sem uma linda mulher ao seu lado.

— Isso faz mais sentido ainda! — ela garante e ri junto comigo.

— Mas e você? Nós sabemos tão pouco a teu respeito. Me fale de você.

Eu digo enquanto caminho ao seu lado. Cinco minutos é nosso trajeto da aldeia até a praia. A minha cabana ficava em uma borda isolada, amava ter o mar como vista particular de manhã e no fim de tarde, mas antes de construir, minha casa também ficava onde está localizada a aldeia, um pouco mais para dentro da ilha. Quando tudo entre Lora e eu acabou, a deixei lá e me afastei.

— Bom, eu sou mãe...

— Mentira! — eu a interrompo e ela ri afirmando.

— Juro.

— Qual nome? Menino ou menina?

— Menina. Isadora! Ela é linda, tenho uma foto aqui, quer ver?

— Claro! Me mostre! Por que nunca trouxe a menina???

— É muito burocrático. Não se pode trazer ninguém aqui... esqueceu?

— Ué, mas ela é uma criança, não!? E você é muito bem-vinda. Claro que não pode abusar e trazer a família inteira, tudo o que não queremos é chamar a atenção, mesmo porque nem temos condições de ficar fazendo o transporte da população e tudo o mais, mas uma menina que mal faria!? — eu digo e ela me passa a foto. A menina era linda, a fuça todinha da professora.

— Já tentei, ela é louca pra conhecer, tem sete anos... fala muito de vir aqui, mas... Lora não me autorizou.

— Pois traga, eu deixo, vou amar conhecê-la, adoro criança. — eu afirmo e ela fica feliz. — E o pai dela...!?

— Bom, ele mora fora, cuido dela sozinha.

— Um patife, então! Não sabe o que está perdendo.

— Está perdendo uma menina doce, porém bastante teimosa. — ela sorri.

— Crianças são assim mesmo. Houve um tempo que eu quis muito ter um moleque pra chamar de meu. Cuidar, ensinar a pescar, a nadar... ainda bem que tenho Panqueca, sabe? O menino de Tico! — eu digo e ela e balança a cabeça concordando. — diga, por que aceitou vir para esse fim de mundo?

— Gosto daqui, gostei da proposta...

— É um paraíso, não é!? Também amo muito esse lugar.

— Não pensa em um dia partir?

— Jamais. Nasci, cresci e vou morrer aqui. — eu digo e ela sorri em compreensão. — Quer que eu te leve no colo para não molhar os pés???

Pergunto assim que colocamos os pés na areia e ela ri com gosto.

— Não vou dizer que eu não amaria se fizesse isso, mas estou de vestido, posso subir um pouco e molharei só as pernas. Está tudo certo, não posso ter medo de me molhar, trabalho em uma ilha. — ela diz rindo, tira as botas, ergue um pouco do vestido e me acompanha.

 Ergo seu corpo da água que já batia em seus joelhos, coloco-a no barco, tiro a corda do peso, o empurro para mar adentro, e subo logo em seguida.

Entro na cabine, coloco o barco em movimento, e ela se achega do meu lado.

— Me conta uma história de pescador. — ela pede de repente e eu sorrio.

— A minha preferida é a de quando me encontrei com uma sereia. Quer ouvir?

— Ah! Pensei que me contaria sobre quando pescou uma sardinha maior que o próprio barco... — ela zomba de mim. — sereias não existem, isso não vai me distrair durante o nosso percurso.

— Já pesquei sardinhas gigantes, e também não é nenhuma invenção, assim como existem alguns seres humanos que crescem demais, há animais com essa particularidade. Agora, de tudo o que já vi e vivi nesse mar que nos cerca, a história que mais impressionou foi a de quando vi uma sereia. Quer ouvir ou não? Eu adoro contar essa história... — eu adorava mesmo.

— Quero, me conte. — ela ri de novo e eu pigarreio limpando a garganta, adorava um suspense, era pescador, ou seja, amava contar histórias.

— Então... isso que aconteceu foi há mais ou menos um ano atrás. Acordei como sempre às cinco da manhã, fiz toda a minha rotina, enfim, fui tomar o café de dona Silvéria, me encontrei com os cabras lá, e como terminei primeiro, vim na frente ligar o barco. Naquele dia alguma coisa aconteceu e a lancha do Tico, mais aquela traineira negra que usávamos como reserva havia amanhecido sem combustível e os galões que a gente guardava no galpão da aldeia também estavam vazios, menos o meu barco. Nisso, eu deixei todos eles aqui para procurarem saber o que tinha acontecido e parti para o porto sozinho, atrás de combustível. Estava muito brabo, afinal perdemos um bom dinheiro em gasolina, eram muitos litros estocados. Nós achamos que alguém poderia ter feito aquilo na maldade, por isso fiquei muito fodido de raiva, mandei que resolvessem e encontrasse o disgramento até eu voltar e disse que quando eu voltasse, o cabra seria expulso, e eu estava decidido. Só não fiz o que tinha planejado porque algo muito estranho aconteceu. Eu tinha uns três dias de pescaria traquilamente, e por estar tão enfezado, não notei na hora e nem estava aqui quando meus amigos encontraram um pequeno furo na mangueira. Quando eu atingi acho que metade do caminho, o motor pifou. Eu não estava exatamente sem combustível, mas houve algum problema, alguma faísca sabe!? E não tive tempo de investigar, pois assim que eu saí da cabine, me senti estranho...

— Estranho como? — ela pergunta curiosa. Não estava acreditando em mim, mas estava gostando da história.

— Um pouco tonto eu acho, um pouco grogue. O dia ainda não tinha clareado, a marina estava densa demais... comecei a ouvir o canto dela logo de início e depois eu a vi. Estava parada só com os olhos pra fora da água, mas depois deixou aparecer o pescoço e depois o busto quando nadou para a lateral do barco. Eu me ajoelhei com medo, estava quase me cagando inteiro... — eu falo e ela ri. — e então, ao me aproximar meio que sem querer realmente, sem controlar meu próprio corpo, e poder vê-la com mais clareza, o medo se foi. Ela era linda demais, muito linda.

— Usava concha nos seios? — ela pergunta rindo.

— Não. Não mesmo, ela não usava nada para tapar os seios, era linda, nem precisava, mas... ela brilhava cintilante, a pele, sabe!? Tinha um brilho como têm as pérolas, era um brilho perolado mesmo, com uma tonalidade cintilante. Tinha os olhos castanhos, lábios cheios e avermelhados, os cabelos estavam para trás, mas depois que ela me puxou para a água pude ver que eram enormes e negros...

— Ela te puxou pra água???

— Sim! Puxou, sim. Eu estava ouvindo aquela cantoria, era... perfeito, era uma música linda, e ela era tão magnífica que... eu me aproximei e me deixei levar. Ela tinha um charme como dizem as lendas, seus seios para fora da água me deixaram maluco, eu queria tê-la para mim, senti um desejo fodido e fora do comum. Só sei que quando eu ameacei tocar na pele dela, ela segurou meus ombros e me puxou pra água, mas não foi com brutalidade não, foi com calma, e eu queria ir, queria que ela me levasse e não queria mais voltar. — enquanto falava me lembrava daquele dia. Daquele sonho que nunca mais se repetiu. — No resumo ela foi me puxando e puxando e puxando, continuei encarando sua face que brilhava embaixo daquela aguaceira turva, e me lembro dela olhando pra cima, em direção ao barco, e quando eu repeti seu gesto, sei lá, imaginando que ela via algo, ou alguém, vi a bola de fogo...

— O barco explodiu. Ela te salvou...

— Sim! Ela me salvou. O que a lenda diz é que elas nos seduzem para matar, não é!? Pois não foi o que ela fez. Ela me levou até o fundo, o máximo que pôde, e quando o barco explodiu, assim que voltei a fitá-la embasbacado, ela beijou minha boca, eu tentei corresponder claro, porque não sou bobo nem nada, só que aí acho que abri a boca demais, engoli água, me afoguei e ela desapareceu, por isso subi á superfície e comecei a tossir, engoli muita água.

— Final nada romântico. — ela zomba.

— Não acredita, não é!?

— Cadê esse barco?

— Só sobrou isso aqui dele. — bato no velho leme da traineira e ela sorri descrente. — Não acredita em mim, eu compreendo. Essa história é inacreditável mesmo.

— Ela não abriu a boca pra falar uma palavra pra você? Nem ao menos disse seu nome? Você viu a cauda dela?

— Disse nada, a mulher era muda. E vi a cauda sim, era azulada e brilhante como a pele. Ela era a mulher ou “mulher metade peixe” mais linda que já vi na vida.

— Acho que foi mais um sonho ou uma visão por causa do trauma.

— Talvez, mas foi a visão mais linda que eu podia ter tido.

— Você a viu novamente depois disso?

— Não. Nunca mais, infelizmente. Mas depois do que aconteceu eu voltei pra cá, pro ponto onde tudo aconteceu, todos os dias durante uns quatro meses. A aldeia inteira queria me internar em uma clínica em Alagoas, ficaram bastante preocupados.

— Estranho os próprios pescadores não acreditarem em você. — ela diz e eu concordo. — Eu acredito.

— Jura? — eu a encaro e ela afirma com convicção. — Eu brinco assim, e quis zombar um pouquinho de você, mas eu acho que tem muita coisa por aí nesse mundão que a gente desconhece.

— Tem mesmo, eu sou a prova viva de que tem.

— Mas afinal, o que houve com os barcos? Descobriram?

— Bom, fizeram um trabalho de mestre nas mangueiras e provocaram um vazamento horroroso. De início eu pensava que a bendita havia feito aquilo de “forma mágica”, ou sei lá, para que pudesse me pescar e me arrastar pro fundo do mar, e o Simas por um momento quase que acreditou na minha história, afinal, ele sempre disse que Linda, a esposa falecida dele, veio do mar também, ele dizia isso, dizia que era um “pescador pescado por uma sereia”, então rapidinho acreditou em mim. Mas aí os meus amigos e ele decidiram vir dar uma olhada nos destroços do naufrágio, logo não foi difícil encontrar uma bomba caseira bem da vagabunda, fato que deixou bem claro para mim que ela não havia feito aquilo, ela só me salvou mesmo.

— Minha nossa! Tentaram matar você! Chamou a polícia???

— Não. Sei quem foi. Quer dizer, não sei exatamente quem foi, mas imagino. Naquela época eu estava em guerra com o Cristiano, já ouviu falar no meu irmão, certo!? — pergunto e ela faz uma cara de espanto.

— Seu irmão fez isso contigo???

— É, então... na época em que tudo aconteceu, eu estava em guerra com ele porque como sempre, nós recebemos mais uma proposta de uma empreiteira nojenta para “comprar” um pedaço da ilha e construir aqui acho que um hotel ou algo do tipo. Eu disse que não, meu irmão quis aceitar a proposta, dizia que faria bem á comunidade, e como eu já era o líder dos pescadores e da comunidade, ele teve que aceitar que eu jamais faria aquilo. Só que no dia anterior ele deu o número do escritório para os caras, e um deles me ligou. Primeiro quis tentar me ganhar na conversa, com dinheiro, mas depois se enfezou e me ameaçou. Eu já esperava que um dia topasse com gente perigosa e gananciosa, só não achei que seria tanto a ponto de ameaçar a minha vida, né!? Afinal, comigo morto, rapidinho eles se apossariam desse lugar, assim que eu batesse as botas Cristiano assumiria e aquele cara é fissurado em verdinhas... e por isso ele foi expulso, depois de ter negado de pé junto que não tinha envolvimento com nada daquilo, quase acreditei, mas aí peguei ele e Lora juntos e obviamente no momento da briga, ele jogou na minha cara que fez aquilo mesmo, que autorizou a entrada dos caras e deu o nosso número, mas claro, disse que não tinha nada a ver com a bomba. Juntei tudo e o obriguei a partir, disse que iria pra me dar um tempo, mas que voltaria porque a ilha afinal, também era dele, ele tinha direitos...

— Nossa, e nem a polícia vocês chamaram?

— Assim como não quero gente de fora metida nessa ilha, também não quero a polícia e nem autoridade nenhuma, professora. A ganância desse povo pode destruir uma das últimas ilhas preservadas de Alagoas. Já foram quase todas pro saco, a Patacho é um exemplo disso.

— Por que a prefeitura não pode fazer com Santa Clara o que fez com todas elas? Tipo, autorizar a venda de alguns hectares para investir no turismo??? — ela pergunta, me analisa e eu sorrio.

— O papo não era sobre a história de pescador que eu tinha pra contar?

— Não confia em mim, é!?

— Eu confio, mas estamos fugindo do assunto principal e... chegamos. Você está entregue. — sorrio ao atracar o barco e ela suspira.

— No fim nem conversamos sobre o que eu queria. — a professora charmosa balança o corpo ‘como se rodasse uma saia’ e passa a mão nos cabelos escorridos.

— E sobre o que queria falar? — eu pergunto, ela invade meu espaço pessoal, e eu me afasto involuntariamente. — Não dá. A mulher que estou esperando chegar, não é você. — falo de uma vez deixando escapar e me sinto mal.

— Desculpe.

— Eu que peço desculpas. Você é um mulherão, é linda, mas não é você, sinto muito.

— Não sinta. Sei levar foras muito bem, estou bem acostumada.

— Ah! Que grande bobagem! Se estiver levando tantos foras assim, com certeza só está se interessando pelos errados, como agora, por mim.

— Bom, pois é o que parece. Preciso rever meus conceitos.

— Precisa é abrir esses olhões azuis. Desde o dia que colocou esse traseiro lindo pra jogo, arrebatou todos os corações solitários da ilha, Roger quem o diga, sei que vocês se divertem de vez em quando e ele gosta bastante da senhorita, principalmente de seus predicados. — eu digo e ela sorri negando. — Você é linda, inteligente, maravilhosa, merece e precisa ser amada e correspondida, portanto não perca tempo comigo, professora. Te garanto que se eu não tivesse iludido com a minha vida amorosa, te pegava e não soltava nunca mais, encheria você de filhos, e viveríamos naquela ilha como Richard e Emmeline... — eu falo e ela ri com gosto. Podia apostar que eu nunca tivesse assistido ‘A lagoa azul’, mas sim, acreditem, eu tinha uma TV naquele ‘mundo selvagem’. Uma TV, um DVD, um rádio... sorrio com o pensamento.

— Então se não estivesse nessa fase chata, ficaria comigo... me acha bonita...!?

— Eu te acho a mulher mais linda daquela ilha.

— Pensei que Lora fosse a mais linda.

— A beleza não vem só de fora, muito pelo contrário, tem que ter um equilíbrio senão, não adianta. Tu és mil vezes mais bonita que ela tanto por fora quanto por dentro, de verdade, e esqueça aquela mulher porque eu já esqueci tem muito tempo visse!

— Obrigada, pescador. — ela sorri passando a mão em minha face. Meu Deus, eu precisava fazer a barba. — Pelo cuidado comigo, por ser gentil, por ter me trago, contado sua história... acho que pelo menos espaço para uma amiga na tua vida, você tem, certo!? — ela diz com simpatia, mas ainda estava triste.

— Para ser amiga, eu tenho um espaço exclusivo pra você! Te trago pra casa, te busco, te conto histórias até o dia nascer, ensino Isadora a nadar, e qualquer coisa que precise... não sendo alguma parte de meu corpo sarado, e queimado de sol, estarei aqui. — eu murmuro, ela sorri, ganho um abraço carinhoso, e quando ela se vai, me sinto estranho.

Eu era um cara solteiro, modéstia à parte bonito, chamava atenção da mulherada, e bom, eu ainda era jovem... podia ter aproveitado a oportunidade e traçado a professora ali mesmo. Éramos dois adultos, sozinhos, com certeza carentes, por que eu não beijei a professora?

Bom, de certo não era ela.

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