Dois

Quando um órfão era aceito por um tutor, este assinava um termo de responsabilidade, prometendo cuidar, e lhe ensinar o oficio para que pudesse trabalhar quando chegasse a hora certa. Houve outra discussão durante a assinatura do contrato, a mãe matriarca se negou a deixar o lampião assinar a principio, foi preciso que o barão intervisse. O lampião não se deixou abalar, resolveu tudo com um sorriso no rosto, o que começou a incomodar Ana, mas não o suficiente para cogitar desistir. E olha que muitas mães tentaram persuadi-la a mudar de ideia, mas Ana era obstinada, e não lhes deu ouvidos.

                Na maioria das vezes o órfão tinha um dia para se despedir, mas Alexandre não deu essa oportunidade para Ana, partindo uma hora depois de ter assinado o termo.

                 – Vamos embora – ele havia dito – quero evitar mais problemas.

                 – Posso pegar minhas coisas? – Ana lhe perguntou.

                 –Não vai mais precisar de nada daquilo – Alexandre lhe dissera. – Tudo novo para uma vida nova.

                Ana conseguiu se despedir de Maria e David que estavam no corredor que dava para a saída.

                 – Diga a todos que disse adeus – ela havia dito para os amigos que não acreditavam no que estava acontecendo.

                Agora Ana tentava acompanhar o lampião enquanto eles avançavam pela multidão de Ponta Branca. Era a quarta vez que a menina andava pela cidade durante o dia, nas três ocasiões foi ajudar uma das mães com as compras. Outras vezes, foi quando havia fugido do templo durante a noite com seus amigos. Geralmente para beber vinho escondida.

                Era a primeira vez que via um lampião de perto. Viu o famoso Cortez 36, o único revolver do mundo que disparava chumbos: o enorme revolver estava na parte da frente da cintura do homem, bem na frente da coxa esquerda, com a coronha virada para direita. O outro revolver o lampião carregava no quadril direito. As duas armas, como Ana sabia que eram, se posicionavam de modo que ambos pudessem ser acessados com a mão direita, não que o Cortez não pudesse ser sacado com a mão esquerda, como Ana já havia visto um lampião fazer. Ela também pode ver de perto o famoso sobretudo vermelho vivo, que também era marca registrada de um lampião.

                Alexandre andava pelas ruas movimentadas sem o menor esforço. As pessoas pareciam desviar dele à medida que ele avançava, evitando-o como se ele fosse um animal selvagem. Caminharam até um estabulo.

                 – Oi garota – o lampião acariciava uma égua de raça pura de pelos castanhos avermelhados, em seguida se virou para a Ana. – Não vai dizer “oi”? – ele indagou.

                 – Pra a égua? – Ana franziu a testa.

                 – O nome dela é Tempestade – o lampião retrucou parecendo ofendido. – E sim, não vai dizer “oi” para ela?

                 – Ah – Ana se apressou. – Oi Tempestade.

                 – Bem melhor – Alexandre sorriu.

                Depois de toda aquela confusão, a saída inesperada e às pressas, Ana começou a discernir os traços do lampião. Ele tinha o sorriso bonito – e a menina apostava que seria bem mais se não usasse aquela barba  –. Um sorriso que adorava usar. Tinha cabelos longos, ate mais longos do que os dela. E embora sua babar fosse espessa, era bem aparada, um ótimo sinal de vaidade ao ver de Ana.

                 – Bom –ele disse enquanto o cocheiro começava a selar Tempestade, aproximando-se da menina. – Antes de sairmos vamos às regras: Não mexa nas minhas coisas, respeite a Tempestade. Hum... e se você não gosta do meu cabelo, guarde sua opinião para você, mas se gostar elogie-me constantemente. Alias, vai ganhar pontos se me elogiar constantemente – ele sorriu para si mesmo, parecendo aprovar a própria ideia.

                Ana franziu a testa. Não acreditava no que tinha acabado de escutar.

                 –Isso é serio? – ela indagou incrédula.

                 – Eu pareço esta brincando?

                Ana hesitou por um momento:

                 – Não – ela disse. – E...eu gosto do seu cabelo.

                 – Gostei dessa garota –Alexandre disse para Tempestade enquanto aceitava as rédeas que o cavalariço lhe entregava.

                O lampião enfiou uma mão sob o casaco e puxou algumas moedas que entregou ao cavalariço.

                Agora caminhavam pelas ruas movimentadas de Ponta Branca, Alexandre, Ana e tempestade. Cada novo detalhe da cidade era impressionante para Ana. Sob a luz do dia, Ponta Branca tinha aspecto diferente. As casas de pedra branca eram mais comuns do que ela se lembrava, e as ruas bem mais movimentadas.

                 – Ali está – o lampião apontou para uma loja chique. Ana lembrava que passava horas olhando pela vitrine quando fugia a noite, a única coisa que sabia, além de terem roupas lindas, é que era uma loja muito cara.

                O lampião se dirigiu para loja a passos largos. Deixou Tempestade próxima ao poste, mas não amarrou o animal.

                A loja era bem mais elegante dentro do que fora, Ana percebeu, o cheiro era bem mais agradável também. Logo que entraram o dono da loja foi ao encontro do lampião.

                 –Boa tarde, lampião – ele cumprimentou com um largo sorriso. – Em quem posso ajuda-lo?

                 –Couro – Alexandre respondeu e apontou para Ana. – Quero uma calça de couro, e uma de qualquer tecido . Camisas de seda, e mais alguns itens que ela quiser.

                Ana não acreditou no que acabara de ouvir. Nunca tinha colocado as mãos em couro legitimo, muito menos em seda. Será que é alguma piada? Ela pensou.

                 – É pra já!

                Ana passou a hora seguinte sendo tratada como uma princesa. O dono da loja estava empolgado com a grande venda que aquela garota lhe renderia. Fez a menina experimentar as mais diversas roupas. Ana parecia estar em um sonho, nunca teve mais do que duas mudas de roupas, e agora tinha mais de dez peças de roupas diferentes, além de três pares de botas. Alexandre parecia se divertir escolhendo roupas para menina, que a essa altura se sentia uma boneca.

                Todas as compras custaram ao lampião dez moedas de ouro, uma pequena fortuna jamais vista por Ana. Ela agora estava vestida com uma calça de couro preto e uma camisa de seda enfiada dentro da calça. Queria ter comprado um colete, mas Alexandre não permitiu.

                 –Pelo menos não está parecendo uma mendiga – Alexandre comentou.

                Ana nunca se sentiu tão feliz em toda sua vida. Naquele dia comprara a camisa que sempre via quando olhava pela vitrine. Ela fez de tudo para esconder as lagrimas de felicidades que ameaçavam sair, mas se manteve firme.

                Ao saírem da loja, seguiram para a sede dos lampiões de Ponta Branca. Era um prédio vermelho, quase na saída da cidade. Enquanto caminhavam, Ana recebera os primeiros olhares de garotos da sua vida, o que lhe deixou eufórica. Sempre disse não ligar para garotos, mas a verdade é que era que nunca tinha chamado a atenção de nenhum garoto, e por isso dizia não se importava. Descobriu que gostava da sensação.

                O prédio tinha dois andares, e mais parecia uma hospedaria. Um homem gordo, de sorriso gentil os encontrou na porta.

                 – O que temos esse ano? –ele disse e olhou para Ana. – Uma garota? É a primeira, não?

                 –Acredito que sim, Bob – Alexandre respondeu.

                Ana esperava o mesmo preconceito dos demais, mas tudo que o homem fez foi dar de ombros.

                 – Vamos ter que se preocupar um pouco mais com os seios – Bob disse, o que deixou Ana extremamente constrangida. Homens falarem tão abertamente de seios de uma garota era tão... tão.. tão errado.

                 –Pensei o mesmo – Alexandre concordou.

                Era perturbador como eles tratavam o assunto com tanta naturalidade. Se qualquer homem da igreja escutasse isso, traria problemas para ambos, sendo lampiões ou não.

                 –Vamos lá.

                Bob os conduziu para a parte de trás do prédio. Ana estava atenta a todos os detalhes, não era qualquer um que entrava na sede dos lampiões. Bob os levou ate uma escada, que para surpresa da menina dava para um terceiro andar no subsolo. O terceiro andar oculto era protegido por uma grande porta de aço idêntica a de um cofre, era necessário até mesmo uma combinação para entrar.

                Esse terceiro andar mais parecia uma caverna com muitos equipamentos de armeiros. Em um dos cantos haviam muitas prateleiras com vários com conteúdos dos mais diversos. Em outra parede havia vários revólveres de todos os modelos. Os olhos de Ana brilhavam.

                Havia vários homens trabalhando ali, todos armeiros, Ana deduziu.  Bob foi ate uma prateleira e trouxe um colete para Ana.

                 – Experimente garota – disse entregando-lhe a peça de roupa.

                Assim que a menina segurou o colete, percebeu que era muito mais pesado. Olhou na parte de dentro e viu o que parecia ser vario fios de aço trançados.

                 – O que isso? – ela quis saber.

                 – Cota de malha – Bob respondeu. – Os cavaleiros dos tempos antigos, usavam isso sobre a armadura. Nós descobrimos que poderia servir também para balas, se usado o aço correto.

                 –Isso protege de balas?

                 – Sim, mas dói muito, então não é bom ficar pegando tiro pra testar – Bob advertiu.

                O colete serviu como uma luva. E não era tão desconfortável como Ana achou que seria, na verdade se sentia segura com ele.

               

                 – Foi sorte ter o colete do tamanho dela – Bob disse  –, não tive a mesma sorte com o sobretudo.

                 – Pode preparar um essa noite?

                 – Claro. Mas já pode levar os revolveres.

                Alexandre assentiu.

                Mais uma vez Ana se maravilhava com o que via. Eram tantos modelos de revolves.

                 – De projetil pode escolher qualquer modelo – Bob disse lhe entregando um Cortez 36. – Só esse é modelo padrão para um lampião.

                 – Posso escolher qualquer um? – Ana perguntou e Bob assentiu. – Quero uma 45 cano longo.

                 – Talvez quando for mais velha – Alexandre disse. – Traga para ela modelos 38.

                 – Trinta e oito são fracos – ela protestou. – Não tem força.

                Alexandre se limitou a afastar seu sobretudo para trás, e revelou seu revolver no quadril direito. Era um trinta e oito.

                Bob trouxe vários modelos de revolves. Mas quando Ana viu um executor 38, cor de ferrugem avermelhado se apaixonou. Pegou a arma como se fosse uma relíquia, contemplando cada detalhe com cuidado. A coronha era de madeira lisa, o cano era longo. Ela ejetou o cilindro perfeitamente redondo com seis câmaras.

                 – Eu quero esse – ela disse sem tirar os olhos do revolver.

                 – Ótima escolha – Bob disse. – Vai querer alguma gravura?

                 – Gravura?

                 – Sim. Desenhos entalhados – ele disse e sacou o próprio revolver para dar um exemplo.

O 45 que ele carregava era entalhado com três veleiros diferentes entorno do cilindro. Quando Ana entendeu, só lhe veio uma coisa à mente.

 – Pode ser rosas? – Ana perguntou hesitante e se arrependeu no mesmo instante, mas Bob estava sorrindo.

 – Até que fim algo diferente para entalhar – ele disse. –Até que fim você teve uma boa ideia, companheiro. – Bob sorriu.

 –Espero que sim – Alexandre disse olhando para Ana.

 –Agora minha parte favorita – Bob disse. –Vamos às facas.

 – Facas? – Ana franziu a testa. – Porque eu iria querer uma faca se tenho um revolver.

 – Porque os revolveres acabam as balas, e as facas não precisam de balas.—Bob respondeu indignado – E fazem parte do equipamento padrão de um lampião.

Ela não ficou tão empolgada em escolher uma faca, embora tivesse bem mais modelos do que os revólveres. Escolheu uma com lamina bifurcada e reta, gostou dela por parecer que tinha duas lâminas.

 –Vamos descansar no treze – Alexandre informou – ,quando o sobretudo estiver pronto, avise.

 –Quer que eu consiga um cavalo para ela, pelo menos um provisório ate ir buscar ir lá no Elias?

 – Seria ótimo – Alexandre sorriu.

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