Três

Partiram ao raiar do dia.

                Mal tinham deixado cidade de Ponta Branca, e o lampião puxou uma gaita e começou a tocar, ritmos sempre alegres. Entre uma nota e outra cantava alguma coisa, musicas que Ana não conhecia, e depois de tempo percebeu que Alexandre inventava as melodias que cantava. Canções – se podia chamar assim –, que sempre envolviam Tempestade, e o quanto ele era belo, e o quanto a vida era bela. Outras vezes as “canções” agradeciam a tudo. Ate mesmo o sol escaldante que os fritavam.

                 – Gostou dessa, garota? – ele perguntava. A principio Ana pensou que as perguntas eram dirigidas à ela, mas descobriu que era para Tempestade.

                Além de intediante, a viagem estava sendo extremamente dolorida para Ana. Era a primeira vez que andava a cavalo, e para piorar a situação, teve que levar todos suas compras e armas. “Tempestade não é um burro de cargas” Alexandre tinha dito. “Você e seu pangaré levam suas coisas”. Com várias sacolas como carga, era difícil achar até mesmo onde sentar-se.

                Seguiram horas à borda da floresta de chumbo. Era por volta das onze quando tomaram uma trilha para dentro da floresta. Ana já esperava por isso; era do conhecimento de todos que os lampiões escolhiam viver afastados das grandes cidades, e a maioria, se não todos, viviam nas profundezas da floresta de chumbo. Um arrepio subiu pela nunca da menina ao se lembrar das historias sobre aquele lugar. Foram por aquela região que o povo bárbaro tentou invadir os cinco reinos. Ouve uma guerra intensa que durou um mês, um mês de balas trocadas. A lenda dizia que foram tantas balas, que cem anos após a guerra, as arvores ainda tinham balas gravadas em seus troncos, mesmo aquelas que cresceram depois da guerra. Diziam que os fantasmas dos mortos continuavam a guerra no mundo dos espíritos, não entendendo que estavam mortos.  Amaldiçoados para sempre numa guerra sem fim, pelo próprio Deus, descontente pelas vidas perdidas ali.

                A floresta era escura e fria, mesmo à luz do meio dia. Ana podia escutar animais ao redor, mas não conseguia ver nenhum, nem mesmo pássaros que cantavam ali perto. Cogitou que fosse a cantoria de Alexandre que espantava os animais.  Fechou o botão da parte de cima do colete revestido de conta de malha, que tinha soltado devido ao calor, depois achou o ato idiota, nem o colete e nem o sobretudo poderiam proteger de fantasmas.

                Alexandre aparentava não se preocupar com nada, continuando a cantar, o que deixava Ana um pouco mais tranquila. Mais fundo na floresta, as árvores se tornaram mais antigas, e viu as marcas da guerra, e de fato algumas ainda tinha buracos de balas.

               

                 –Vamos ter companhia – Alexandre disse de repente.

                 – Companhia? – Ana franziu a testa.

                 – Foi o que eu disse  –  o lampião respondeu guardando sua gaita.

                Por alguns instantes Ana temeu que ele estivesse falando dos fantasmas que poderiam aparecer a qualquer instante. Olhou para um lado e outro, então escutou cavalos se aproximando rápidos. O lampião continuou no mesmo trote vagaroso.

                 –Ei, lampião – um homem gritou.

                Ana olhou para trás e viu dez mantos brancos se aproximando rapidamente. Cada um carregava um rifle de ferrolho.

                 – Apenas eu falo – Alexandre disse para Ana, e puxou as rédeas de tempestade suavemente.

                Os mantos brancos eram homens que serviam aos interesses da igreja; cobravam os dízimos, matavam, extorquiam... Qualquer coisa que o grande filho – líder da santa igreja – ordenasse.

                Os dez homens cercaram o lampião e a menina.

                 – O que significa isso, lampião? – o líder do bando disse. Todos usavam capas brancas que cobriam todo o corpo, mas o líder tinha a borda da capa dourada, o identificando como um bispo.

                 – Tarde senhores – o lampião sorriu. – Em que posso lhes ajudar?

                 – Para onde está levando essa menina? – o bispo inquiriu olhando para Ana.

                 – Para minha casa – Alexandre respondeu simplesmente.

                O bispo apertou com mais forca o rifle que carregava.

                 – E por quê? – interrogou tentando controlar sua montaria. Os animais dos mantos brancos pareciam estar tão nervosos quanto os próprios homens.

                 – Ora, ela vai ser minha aprendiz – o lampião disse com orgulho exagerado.

                 – Então que ela aprenda o ofício sem usar uma arma – o bispo disse. – A santa igreja proibiu mulheres de usarem armas.

                O lampião não desfez o sorriso nem por um instante, mas o coração de Ana se afundou num mar de incerteza. Ninguém poderia ir contra a ordem da igreja, nem mesmo um lampião.

                 –Meus amigos – o lampião sorriu ajeitando o chapéu. – Aceitei essa jovem como minha aprendiz, apenas como um modo de ajudar a santa igreja. Estou lhes prestando um favor – piscou. – A igreja está enfrentando problemas com as mulheres, não é verdade?

                O lampião se referia a movimentos que surgiam nas grandes cidades, mulheres lutavam por mais direitos. Na verdade queriam os mesmos direitos dos homens, o que era uma heresia de acordo com a igreja. A igreja tentou acabar com o movimento com força, e muitas mulheres morreram. Agora alguns barões estavam descontentes com a igreja, e ouvia-se falar de revolta. Não tinha nem dez anos que houve uma guerra civil de barões contra a igreja que terminou com a igreja vitoriosa, mas com os cofres do santo tesouro quase vazios. O grande filho não arriscaria uma guerra naquele momento.

                 – Tenho certeza que as mulheres vão adorar saber que uma garota foi aceita por um lampião – Alexandre continuou. – Ou seja, vamos acalmar os ânimos dos barões e das mulheres. Eu estou fazendo isso a serviço da igreja. Tenho certeza que o grande filho não acharia isso ruim... Agora se você tentarem impedir meu bom gesto para igreja... – o sorriso de Alexandre se transformou em um sorriso maníaco, tão assustado quanto uma onça mostrando as presas. – Duvidarei que vocês de fato estejam aqui a serviço da igreja – seus olhos se estreitaram. – E não vou permitir que um homem, mesmo se for um bispo, me atrapalhe a servir a igreja.

                Ana viu quando os mantos brancos se engoliram em seco. Ela também sentiu o ar ficar pesado, mais quente. Agora os homens olhavam freneticamente para as mãos do lampião que continuavam preguiçosamente pousadas na parte da frente da sela de Tempestade.

                 – Vou apresentar suas boas intenções à igreja – o bispo disse tentando, sem sucesso esconder o nervosismo.

                 – Faça isso – Alexandre voltou ao sorriso costumeiro.

                Os mantos brancos se foram, pelo mesmo caminho que haviam vindo.

                 Ana conhecia as historias dos incríveis feitos dos lampiões, alguns do próprio Alexandre – o temido Arauto da Aflição – , porém o sorriso fácil, o jeito descontraído haviam feito a menina duvidar que o lampião pudesse fazer pelo menos parte do que a lendas contavam. Imaginou que um lampião teria um aspecto sombrio, mas tudo que viu desde que conheceu Alexandre foram sorrisos e cantos. Por isso duvidou que o lampião pudesse lutar contra dez mantos brancos, mas aqueles homens se foram acreditando que Alexandre poderia de fato fazer isso, o que fez Ana perceber que não poderia se deixar levar pela aparência, o homem que seguia era mais perigoso do que aparentava.  E além do mais, aquele sorriso foi mais amedrontador do que um revolver com o cão puxado apontado para sua cabeça.

                Seguiram por mais uma hora pela trilha fechada, até chegarem a uma clareira onde pararam para descansar, para o alivio de Ana. O lampião fez uma fogueira para esquentar carne seca que carregava consigo, enquanto a menina tirava as selas dos cavalos. O seu era um pangaré, que trotava tão duramente que fazia todo o corpo doer. Depois que fez o fogo, o lampião se sentou de costas para uma arvore, colocou o chapéu sobre os olhos e dormiu.

                 – O que lhe incomoda, garota? – ele disse assustando a menina, que estava sentada no tronco de uma arvore olhando para ele. Ele ajeitou o chapéu na cabeça. –Vamos, pode dizer.

                A menina hesitou, mas aquilo de fato estava lhe incomodando, e precisava saber. Só não entendia como ele sabia que algo a incomodava.

                 –Sobre o que você disse para os mantos brancos – ela hesitou mais uma vez, mas o sorriso de Alexandre a deixou mais segura. – Só me trouxe para aliviar a tensão entre os barões, e a igreja?

                Ele se aproximou da fogueira que agora era só brasa.

                 – É claro que não – ele disse sentando-se de frente para a menina. – Nós já estávamos de olho em você há muito tempo.

                 – De olho em mim? – a menina se impressionou.

                O lampião levantou uma sobrancelha.

                 – Sempre faz perguntas das quais acabou de saber a resposta?! – ele lançou a retorica. – Nova regra: não se repita, e não faça eu se repetir. Sim, estávamos de olho em você a muito tempo. Foi-nos informado seu potencial. Sabemos que foge do templo desde os onze para atirar com um revólver velho durante a noite. Sei que para fazer isso precisa roubar balas do quartel, o que nos chamou muita atenção.

                Ana arregalou os olhos, e boca se entreabriu.

                 –E-eu...

                 – O que?  –  o lampião sorriu. – Não está pensando em se explicar, né? Porque se tiver, eu te levo agora mesmo.

                A menina se calou, não entendendo muito bem a situação.

                 –Ótimo –Alexandre se levantou. – Tudo esclarecido... Vamos continuar.

                **

                Era noite quando chegaram à casa de Alexandre.

                Tiraram as selas dos cavalos, e foram direto para cama. Mesmo com toda a euforia do que tinha acontecido naquele dia, o cansaço a arrebatou para o sono em questão de segundos.

                Foi o canto dos pássaros que a fez acordar. O quarto onde estava era de madeira, tinha apenas uma cama de solteiro e um criado-mudo ao lado, o quarto não tinha porta. Saiu do quarto ainda bêbada de sono, não encontrou Alexandre na casa. Ele estava na frente da casa sobre um tapete vermelho, numa posição que Ana nunca viu antes; corpo totalmente ereto, sentado sobre as pernas, às mãos pousadas sobre as coxas, olhos fechados, em perfeita concentração. Estava nu da cintura para cima,  exibindo um peito forte com pelos curtos. Ana ficou horrorizada pelas varias cicatrizes no corpo, uma em especial que ficava no meio do peito, sem duvidas havia atingido o coração. Nem todas eram marcas de balas, haviam cortes também.

                 – Você começa seu treinamento hoje – ele disse sem abrir os olhos –, em um ano você terá que estar num nível maior do que qualquer pistoleiro, em dois terá que estava apta a vencer combates armados mesmo com desvantagens numéricas, em três já estará investigando casos sozinha. Em quatro você já terá que ter um codinome baseados em sua habilidades únicas, em cinco recebera o broxe de um lampião. Tenha em mente que para isso, terá que treinar mais do que qualquer uma. – Ele abriu os olhos e sorriu. – Por sorte eu sou bem divertido, e uma boa companhia.  Mas primeiro vamos comer.

                O desjejum foi constituído de frutas, castanhas, pães e suco de manga. Após estarem satisfeitos, Alexandre a levou para conhecer os arredores da casa. A parte da frente tinha uma varada que dava uma ótima vista para uma clareira com um belo jardim que Alexandre mesmo cuidava, a parte de trás havia um rio calmo, mas que escondia um perigo mortal. Foi só quando Alexandre jogou algumas galinhas de sua criação na água foi que Ana viu os vários jacarés  que rapidamente deram fim às galinhas.

                 –Sempre dê alguns tiros para cima quando for nadar – ele comentou, porém Ana nem por um instante cogitou a hipótese de nadar naquele córrego que se perdia floresta adentro.

                Depois do pequeno tour, e dos avisos de perigo, Alexandre pegou um machado e pediu ajuda da menina para pegar algumas madeiras na floresta. Foi trabalho árduo, mas gratificante para Ana. Era a primeira vez que o homem não a tratava como uma pessoa frágil apenas por ser mulher, como a maioria dos homens fazia parecer. Gostou de se sentir necessária.

                Madeiras retiradas, ele as usou para construir duas portas.

                 – Para evitar constrangimentos –ele comentou enquanto martelava.

                Foi necessário o resto da manhã para colocá-las no lugar. E na porta dela foi colocado um ferrolho para tranca-la por dentro, privacidade que Ana nunca teve antes.

                O almoço não foi muito diferente do café da manhã, pelo que pareceu as refeições de Alexandre se baseavam em frutas, o que não foi ruim para Ana, ela adorava. Mais uma vez satisfeitos, o lampião a levou para uma clareira um pouco mais distante da casa. Ele levou o revólver que ela havia escolhido, e fez o pangaré que havia comprado para Ana carregar uma caixa muito grande. A caixa estava repleta de munição de 38. Ana nunca tinha visto tantas balas juntas. Alexandre carregou o revolver com seis balas.

                Ele apontou e atirou em uma árvore morta.

                 –Agora você – ele disse e entregou o revolver para menina.

                Ela colocou uma bala a centímetros da dele.

                 – Muito bom – ele sorriu. – Agora com a mão esquerda.

                 – Eu não sou muito boa com...

                 – Então vai passar a ser – ele afirmou categoricamente.

                Ele segurou a mão esquerda da menina e amarrou uma pequena fita dourada.

                 –Não deixe essa fita quebrar – ele ordenou. – Você com esse revolver vai partir aquela árvore ao meio. Eu volto amanhã para ver seu progresso.

                 – O que? – ela protestou. – Isso é impossível!

                 – Se ficar pensando assim, será mesmo – ele disse e montou no cavalo. – Se aparecer em casa antes de derrubar essa arvore, meto uma bala no seu braço – ele piscou para ela.

                Ele incitou o cavalo para longe, deixando para trás uma Ana descrente. Talvez fosse um teste, ela pensou, mas temeu que não. Ainda sem acreditar no que acabara de ouvir, enviou a primeira bala que errou o alvo e assoviou para longe. Tentou mais uma vez, dessa vez passou mais perto...

                A noite chegou, trazendo para o som de feras que a cercavam. Cada som recebia a ameaça do cano de seu 38, porem duvidou que um 38 pudesse derrubar uma onça que sabia que habitavam ali.

                 – Ei! – ela escutou alguém na floresta gritando.

                Ela se deixou tomar pelo pavor e correu para casa de Alexandre. Viu a pequena casa ao longe iluminada pela lua e no estante seguinte uma bala rasgou seu ombro direito.

                 –Droga – ela escutou a voz de Alexandre vindo das trevas  –, errei. Mas garanto que o próximo eu acerto.

                Ele não estava brincando quando ameaçou em atirar nela, soube disso naquele momento.

**

               

                Eram nove da manhã quando o lampião apareceu.

                 – Bom dia, gatinha – ele disse alegremente de cima de tempestade. – Eu trouxe seu café da manhã. – ele jogou uma trouxa de pano para ela.

                O dedão esquerdo que estava usando para engatilhar o revolver estava doendo. Mal conseguia levantar o braço esquerdo. A palma da sua mão sangrava, pois depois que o dedão não se movia, passou a usar a mão direita para engatilhar.

                 – Eu não vou conseguir – ela gemeu.

                O lampião desceu de Tempestade, sacou seu revólver e o segurou com as duas mãos, algo que Ana nunca viu nenhum pistoleiro, jamais fazer.

                 – Se eu seguro com a mão direita, eu engatilho com a mão esquerda – ele disse e engatilhou seu puma. – Mas no seu caso, está segurando com a mão esquerda, então engatilhe com o dedão direito. Tente!

                 – Eu não consigo – ela disse deixando a dor dizer mais alto.

               

                O lampião se aproximou como um vulto, e envolveu o pescoço de Ana em um aperto de ferro.

                 – Nunca diga que não é capaz de fazer algo! – ele disse perigosamente baixo. – Nunca determine seu fracasso, ou sua alma vai acreditar e por consequência seu corpo. Diga Ana: eu sou capaz! Diga! – ele soltou a menina que caiu sentada no chão.

                 – Eu sou capaz – ela conseguiu dizer.

                 – Me faça acreditar nessa verdade – ele exigiu.

                 – Eu sou capaz – ela disse com mais convicção.

                 – Então me mostre!

                Ela se levantou, tirando forças Deus sabe de onde, segurou o revólver com as duas mãos, conforme a instrução do lampião e atirou. Um tiro perfeito.

                 – Determine mentalmente aonde a próxima bala deve ir, e atire de novo.

                Ela assim o fez, e a segunda bala acertou exatamente aonde a primeira atingira. Os olhos da menina se arregalaram.

                 –Nova regra – ele disse enquanto subia em tempestade. – Nunca faça afirmações negativas.

                E mais uma vez a deixou sozinha, porém, dessa vez com a certeza cega de que conseguiria derrubar aquela árvore.

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