Mundo ficciónIniciar sesiónO sol ainda subia por entre os montes quando Camila chegou ao laboratório naquela manhã. A Hacienda já estava desperta, e o cheiro de agave cozido se espalhava pelo ar quente. Trabalhadores cruzavam o pátio com pressa, empurrando carrinhos, carregando caixas, cumprindo ordens invisíveis. A rotina ali dentro funcionava como um organismo vivo. Um organismo treinado para obedecer.
Ela entrou no laboratório com passos controlados, mas a mente inquieta. Dormira mal depois do que descobrira nos arquivos. O bloco de notas do pai pesava no bolso interno da mochila como se tivesse vida própria. Cada linha escrita ali queimava uma parte dela. O homem que criara a fórmula mais valiosa da Hacienda tinha sido descartado como um ladrão. E ela agora precisava caminhar entre os ladrões sem deixar que percebessem.
Pegou uma prancheta, revisou os tanques, fez anotações. Tentava agir como todos os outros, mas seu corpo estava tenso demais. O ambiente seguia seu ritmo comum até que uma mudança súbita percorreu o ar, como uma onda silenciosa. Funcionários se endireitaram. Conversas cessaram. A temperatura parecia subir.
Rafael entrou.
Ele surgiu pela porta como se sempre pertencesse ao centro do ambiente. Não precisou anunciar a presença. Não precisou dizer nada. Era o tipo de homem que arrastava o espaço com ele, obrigando tudo e todos a se ajustarem. A camisa escura de mangas dobradas marcava o peito e os ombros com perfeição quase irritante. As veias dos antebraços desenhavam linhas firmes enquanto ele segurava uma pasta. Havia uma tatuagem discreta, antiga, perto do pulso, um símbolo que parecia carregar uma história que ele nunca contaria.
O cabelo estava levemente desalinhado, como se tivesse acordado cedo demais ou trabalhado antes de descer ao laboratório. Ainda assim, aquele desalinho só servia para reforçar a aura crua que ele carregava. A barba curta sombreava o rosto, destacando o maxilar forte. E os olhos escuros permaneciam alerta, como se enxergassem muito além do que estava na frente.
Rafael não era bonito de forma dócil.
Era uma beleza afiada.
Uma beleza que impunha respeito antes de qualquer pensamento mais suave.
Ele caminhou pelo laboratório observando cada estação de trabalho. Os passos eram lentos e precisos. Nada nele era desperdiçado. Não havia gestos supérfluos. Não havia hesitações. Funcionários evitavam olhar diretamente para ele, como se o contato visual fosse um risco desnecessário.
Camila acompanhou tudo com o canto dos olhos, cuidando para não parecer envolvida demais, mesmo que seu corpo parecesse atento demais, sensível demais. Ele se aproximou da mesa principal e começou a revisar gráficos. Os dedos percorreram a tela com calma, revelando mãos grandes, firmes, marcadas por cicatrizes discretas. Cicatrizes que não tinham vindo da vida confortável de um CEO, mas do mundo anterior a isso. O mundo militar.
Era impossível ignorar esse detalhe.
Era impossível não imaginar que aquelas mãos já seguraram armas.
Já quebraram ossos.
Já salvaram vidas.
Já tiraram vidas.
Camila desviou o olhar antes que a mente fosse longe demais.
Rafael levantou a cabeça e a viu.
Os olhos dele encontraram os dela como se já soubessem onde procurar. Não foi um olhar rápido. Não foi casual. Ele estudou o rosto dela por longos segundos, como se estivesse tentando encaixar algo que ainda não fazia sentido. A intensidade daquele olhar fez a pele dela reagir, e ela odiou isso.
Ele caminhou até ela.
Os passos se aproximaram devagar, mas cada um parecia marcar o chão. Quando parou ao lado da mesa, a presença dele preencheu o espaço inteiro. O corpo dele era como uma parede quente, firme, sólida, que trazia uma chama silenciosa.
— Está revisando os relatórios do lote 12 — ele disse, olhando a prancheta.
Camila entregou o documento sem tremer.
— Houve queda no rendimento. Estou verificando se foi uma variação natural ou uma falha.
Rafael analisou a anotação. O silêncio dele era tão pesado quanto a voz. Quando finalmente falou, a voz veio baixa, grave, quase rouca.
— Você tem método.
Ela manteve a postura.
— Tento ser precisa.
— Precisão é o que separa lucro de desastre — ele disse.
Ele inclinou o corpo levemente para conferir outra linha do relatório. O movimento foi simples, mas trouxe o rosto dele mais perto do dela. O perfume dele chegou antes do calor do corpo. Uma mistura seca de madeira, couro e terra quente. Um cheiro que prendia, que marcava, que ficava.
Camila engoliu devagar.
Ele percebeu.
— O que acha que causou a variação? — perguntou, sem afastar completamente o corpo.
— Pode ter sido oscilação nos sensores ou queda de temperatura no início da fermentação — ela respondeu.
Ele assentiu uma vez.
— Bom. Continue monitorando.
Rafael finalmente recuou um passo, mas não se afastou totalmente.
— Você não é como os outros — afirmou.
Camila sentiu o ar ficar mais pesado.
— Não entendi.
— Entende sim — ele disse. — Observa mais do que fala. Faz perguntas certas. E tem uma precisão que não aprendi a confiar ainda.
O coração dela bateu forte, mas o rosto permaneceu neutro.
— Se não confia, por que me contratou?
Ele deu um meio sorriso sem leveza.
— Porque eu quero saber por que não confio.
A frase atravessou Camila como uma lâmina fina.
Ele estava farejando.
Ele estava sentindo.
Ele estava observando ela de um jeito que nenhum outro funcionário ali arriscaria.
Rafael deu mais alguns passos pelo laboratório, mas não desviou o olhar dela por muito tempo. Cada vez que se virava, observava. Cada vez que ela se movia, ele acompanhava com a atenção de um predador silencioso.
Ele não era o homem que dirigia um império de tequila.
Era o homem que o respirava.
Que o mantinha vivo.
Que destruía qualquer um que ameaçasse.
E, de alguma forma, ele começava a sentir que Camila era uma ameaça.
Ao terminar a inspeção, Rafael caminhou até a porta.
— Vou passar aqui novamente antes do fim do turno — ele disse, sem olhar para trás.
Ele saiu.
O laboratório voltou a respirar.
Camila encostou na mesa e deixou o fôlego escapar devagar.
Ela não tinha tido tempo de se preparar para o impacto que Rafael causava. Não apenas pelo corpo, pelo rosto ou pelo cheiro. Mas pelo conjunto. Pela aura. Pela maneira como dominava tudo ao redor sem levantar a voz.
Ele era um homem treinado para comando.
E ela era uma mulher treinada para derrubá-lo.
Mas o corpo dela sabia algo que a mente não queria admitir:
Rafael não era apenas o inimigo.
Era uma força atrativa.
Uma presença que queimava devagar.
Uma ameaça que tinha forma, voz e calor.
E ela precisaria ser duas vezes mais forte para não ser engolida por ele.







