Mundo de ficçãoIniciar sessão
O sol de Jalisco descia pesado sobre o vale quando Camila Ríos estacionou o carro no acostamento e abriu a porta para sentir o ar seco que vinha das plantações. O cheiro do agave aquecido pela tarde avançada trouxe lembranças que ela tentou esquecer durante anos, mas que agora voltavam com força demais. Os campos se estendiam em ondas azuladas, marcando o território que, um dia, pertenceu ao legado do pai. Agora tudo estava nas mãos dos Villalba.
A Hacienda surgia ao longe. Branca, imponente, cercada por muros antigos e colunas esculpidas com o orgulho de quem nunca temeu nada. Camila observou o conjunto de prédios por alguns segundos, tentando controlar a irritação que crescia dentro dela. A humilhação do pai, a demissão injusta, o escândalo que os arrastou para a miséria, as dívidas que surgiram após acusações falsas. Tudo começava e terminava ali.
Ela respirou fundo antes de seguir viagem. Não tinha voltado para visitar. Não tinha voltado para fazer as pazes com o passado. Voltou porque queria destruir quem destruiu seu pai, e faria isso de dentro para fora.
O portão principal da Hacienda se abriu devagar, como se estivesse vivo e julgando quem entrava. O vigilante pediu documento, fez perguntas protocolares e devolveu tudo com uma educação treinada. Camila manteve o rosto neutro. A identidade falsa já tinha passado por diversas checagens e estava perfeita. Mesmo assim, sentiu a adrenalina subir enquanto avançava pelo caminho interno ladeado de palmeiras.
Os prédios administrativos ficavam perto da destilaria antiga, e a recepção era ampla, com chão de pedra polida e cheiro de madeira recém-encerada. Retratos da família Villalba estavam espalhados pelas paredes, todos exibindo homens com mandíbulas duras e olhos frios, como se cada geração tivesse cultivado a mesma expressão de poder.
Camila desviou o olhar e caminhou até o balcão. Informou seu nome falso com naturalidade. A recepcionista lhe entregou um crachá temporário e indicou a sala onde aconteceria a entrevista técnica.
Não havia tempo para hesitar. Ela se mirou rapidamente no vidro de uma porta, ajeitou o cabelo castanho escuro preso em um rabo de cavalo e esticou a camisa branca. Parecia uma profissional comum, mas não era. Era uma bomba colocada com cuidado no coração do império Villalba.
Entrou na sala. O avaliador, um engenheiro grisalho, levantou a cabeça e sorriu com simpatia. Ela retribuiu de maneira discreta. Respondeu a perguntas sobre fermentação, controle de temperatura, extração aromática e curvas de rendimento alcoólico. Cálculos, padrões, metodologias. Tudo fluía com facilidade, porque aquele era o mundo dela desde criança.
Quando terminou, o homem pareceu satisfeito demais. Isso a assustou um pouco. Mas não poderia recuar. A destruição dos Villalba começaria pelo laboratório.
Camila saiu da entrevista e seguiu pelo corredor em direção à recepção quando virou uma esquina de maneira abrupta. O corpo dela colidiu em cheio com o de alguém muito mais sólido. Ela engasgou com o impacto e deu um passo para trás, tentando se recompor. Não foi imediato. O homem à sua frente era grande demais para ser ignorado.
O terno preto caía perfeitamente sobre ombros largos e uma postura que lembrava treinamento militar. O rosto tinha um traço severo que parecia esculpido para intimidar. As sobrancelhas escuras estavam contraídas em surpresa leve. Os olhos, quase negros, analisavam cada detalhe dela como se ele tivesse o direito de atravessar a carne e chegar ao que estava por baixo.
Ele segurou o braço dela para que não caísse. O toque foi firme, quente, intenso demais para um gesto tão breve.
Ela forçou a respiração a voltar ao ritmo normal.
— Desculpe — ela disse, com a voz controlada.
— Não estava olhando por onde andava — ele respondeu, sem tirar os olhos dela.
A voz dele era profunda, cortante, como se medisse a força das palavras antes de pronunciá-las. Ele não parecia irritado. Parecia… curioso. O que era um problema.
Ela se desvencilhou com cuidado.
— Já está tudo bem.
Ele continuou observando, como se estivesse tentando memorizar o rosto dela. Aquilo fez a nuca de Camila formigar. Não poderia chamar atenção, não naquele momento.
Quando ela se virou para ir embora, ele deu um passo, mas não disse nada. Apenas acompanhou com o olhar até que ela sumisse em outra curva do corredor. Mesmo sem vê-lo, Camila sentiu a presença dele atrás, pesada, firme, desconfiada.
Saiu do prédio em direção ao estacionamento sentindo o coração bater acelerado. O encontro rápido tinha arrancado dela mais do que paciência. Aquele homem era Rafael Villalba. O herdeiro. O ex-militar. O homem que administrava o império com eficiência cruel.
Ela prometeu a si mesma que nunca deixaria aquele olhar a afetar. Não depois de tudo que os Villalba fizeram com sua família. Não depois de ver seu pai perder tudo. Não depois de anos de vergonha, luta e reconstrução. Mas, de algum modo irritante, aquele único instante tinha perfurado sua defesa com mais força do que ela queria admitir.
Camila entrou no carro e fechou a porta com rapidez. A entrevista tinha ido bem. O encontro inesperado com Rafael poderia atrapalhar, mas ela precisava acreditar que ainda estava invisível para ele. Ninguém ali sabia quem ela era de verdade. Ainda.
Ela ligou o motor e saiu devagar, passando novamente diante da Hacienda. O sol tocava os telhados de maneira quase dourada, criando um contraste absurdo entre a beleza do lugar e a crueldade que ele escondia. Aquele império tinha sido construído com trabalho, sangue, segredos e mentiras. E ela agora estava dentro da toca do lobo, pronta para destruir cada peça.
O vale parecia observar enquanto ela se afastava. Os campos de agave estavam alinhados como soldados. O vento atravessava as plantas e trazia o som distante de máquinas trabalhando sem descanso.
Camila apertou o volante com força.
Ela tinha voltado para acertar contas.
E nada, nem Rafael Villalba, nem seu olhar afiado, iriam impedi-la.
Não desta vez.







