Dezoito anos. Não parecia real.
Ainda não me acostumei com a ideia de que deixo de ser, oficialmente, “a menininha do papai” ou “a garotinha da mamãe”. A verdade é que, junto com a idade nova, vinham responsabilidades pesadas: faculdade, noivado, contas, planos de casa, filhos — a vida adulta se aproximando como uma maré inevitável.
Olhei em volta da boate. A luz piscava freneticamente, colorindo rostos, corpos e sorrisos. A música alta vibrava dentro de mim, mas meus olhos estavam fixos nele: meu pai. Encostado no balcão, com os braços cruzados, observava tudo em silêncio. Seus cabelos começavam a ganhar fios grisalhos, contrastando com a blusa branca social que realçava sua postura firme, ainda atlética. Seu olhar encontrou o meu por um instante — carregava ternura, mas também um peso que eu não conseguia nomear.
Ele tirou o celular do bolso, mostrou-o para mim e apontou para os fundos da boate. Assenti com a cabeça, pedindo em silêncio que não fosse uma daquelas ligações que duram uma eternidade. Era o meu aniversário. A minha noite.
Ainda assim, compreendi. Seu trabalho exigia isso. Mas mesmo com essa aceitação racional, algo em mim doía.
Ele voltou minutos depois, com o rosto mais tenso. Aproximou-se e inclinou-se ao meu ouvido.
— Tessa, eu preciso ir. Volto em algumas horas, prometo.
Neguei de imediato, segurando seu olhar.
— Pai… é o meu aniversário.
— Eu sei, filha. — Ele respirou fundo, os olhos varrendo o salão lotado. — Mas você vai se sentir mais à vontade sem mim. E, além disso… — hesitou, e então, com um meio sorriso — você não vai sentir minha falta.
Claro que sentiria. Mas não disse.
Ele me abraçou com força, beijou minha testa com carinho e sussurrou:
— Aproveite cada segundo. Eu te amo.
— Eu te amo mais, pai. — respondi, com um nó na garganta.
Fiquei ali parada por alguns segundos, observando-o sair. A silhueta dele se perdeu entre as luzes da entrada. Senti um aperto no peito. Minha mãe também já tinha ido embora. E agora eu estava só. Não exatamente sozinha — havia amigos por todos os lados — mas sem eles. Sem meus dois pilares.
Fui puxada de volta ao presente pelos gritos animados dos meus amigos.
— Liberdade! Liberdade!
Me levantaram no ar três vezes, me lançando sobre os ombros e braços, rindo, celebrando. Me senti viva. Me senti a rainha daquela noite.
A batida da música me conduzia. Meu vestido preto colado ao corpo refletia as luzes. Meus cabelos negros, soltos e escovados, balançavam com os passos. Cada abraço recebido, cada felicitação me lembrava do quanto esperei por esse momento. Mas, por dentro, algo ainda pesava — uma sombra sutil de desconforto que tentava ignorar.
Talvez fosse a ideia de que, agora, tudo mudaria. De que logo viria o casamento. De que eu precisava me tornar “mulher de verdade”.
Ele apareceu no meio da multidão. Messias. Meu namorado. Blusa preta, calça jeans e um sorriso torto que sempre me desarmava. Tinha os olhos azuis mais intensos que já vi. E mesmo bêbado, sabia como me conquistar.
— Mê... — sussurrei, interrompendo o beijo antes que ele começasse. Ele sempre dizia que o lugar não importava, mas pra mim… importava sim. Eu não queria ser só mais uma. Queria que a primeira vez fosse após o nosso casamento.
— Paciência, vai. Eu sei que você quer... — disse ele, colando nossos corpos.
— Eu quero, mas quero mais do que isso — respondi, olhando para seus olhos no escuro da boate.
Ele suspirou. Não insistiu. Voltamos a nos beijar devagar, no nosso próprio ritmo, até que os amigos nos separaram de novo com gritos e abraços.
Minha melhor amiga, Camila, surgiu sorridente, me puxando pela mão.
— Que carinha é essa? É sua festa, aproveita!
— Eu tô tentando... — respondi, deixando que ela me levasse até a pista de dança.
— Vai me contar no que tá pensando? — ela perguntou, os olhos curiosos. Entrelaçou os dedos aos meus, como sempre fazia quando queria saber mais do que eu estava disposta a dizer.
— Nada com que se preocupar agora, Cam. — sorri e ajeitei seu batom vermelho borrado com o dedo. — Quem te borrou assim, hein, vadia?
Ela riu, fugindo da resposta, e eu a empurrei de leve, rindo também.
Logo fui chamada por outro grupo de amigos. Fui com eles. Celebrei mais. Ri mais. Gritei. Dancei. Mas de vez em quando, ainda procurava Camila no meio da multidão. Quando percebi que ela não estava mais por perto, fui ao banheiro. Estava lotado.
Cumprimentei algumas pessoas pelo caminho, todas me parabenizando. Corri para a primeira porta aberta e mal consegui me ajeitar antes de relaxar. Fechei os olhos, tentando conter toda aquela mistura de sentimentos.
Foi então que ouvi a voz dele.
— Eu te amo!
Messias entrou rindo, com os braços abertos e a bebida na mão. Veio até mim, me beijou com intensidade, o gosto do álcool invadindo minha boca. Suas mãos desceram rapidamente para as minhas coxas. Meu vestido subiu um pouco.
E ali, no meio da excitação e do álcool, me perguntei de novo: era isso mesmo que eu queria?
Passei três anos com ele. Esperando. Me guardando. Sonhando com uma noite especial, com aliança no dedo, com promessas cumpridas.
Desejo eu sentia. Muito. Mas não era assim que eu queria lembrar da minha primeira vez.
— Mê, espera...
Seus olhos me fitaram por um segundo. A respiração pesada. A tensão entre nós era real.
— Tudo bem — disse ele, recuando com um sorriso gentil. — Eu vou esperar. Como sempre.
Suspirei, aliviada e grata. Voltei a ajustar o vestido e saí do banheiro. Ainda era a minha festa. Ainda era o meu momento.
E mesmo com o peso do mundo à minha porta, naquele instante, decidi que podia adiar as decisões adultas só mais um pouco. Caminhei em direção a festa, e num momento de perdição, procurei por Camilla, me sentindo sozinha sem ela, até que me disseram que ela estava no banheiro, fui até lá, encontrando o banheiro vazio.
O som abafado da boate mal chegava até ali, no banheiro. Estava mais silencioso, quase íntimo, mas não por muito tempo. Um gemido atravessou o ar, vindo de uma das cabines trancadas. Engoli em seco. Aquela voz... era inconfundível.
— Camila?
Meu corpo enrijeceu. As palavras seguintes me atingiram como um soco. Palavras que eu jamais imaginaria ouvir saindo da boca dela. Palavras que me rasgaram por dentro. — Onde quer que eu goze? Cachorra!
— Vai gostoso, vai! Dentro gostoso, me enche com tua porra vai, Messias! — O coração acelerou, e uma onda de calor e raiva subiu pelo meu corpo. Ainda tentando entender o que estava acontecendo, corri até a porta trancada, mas não consegui abri-la. O som dos estalos — de corpos se chocando — ecoava em meus ouvidos, latejando na cabeça como um tambor de guerra.
Empurrei a porta de uma cabine ao lado e subi com dificuldade no vaso sanitário. Meus joelhos falharam, mãos trêmulas segurando as laterais para não cair. Olhei por cima da divisória.
E o mundo parou.
Lá estavam eles. Camila, a minha melhor amiga, e Messias, o homem com quem sonhei casar. Ela de joelhos, apoiada no vaso sanitário, rindo em meio ao caos, embriagada. Ele, ofegante, suado, num ato que não precisava de explicações.
— Ah! Puta merda! — Saiu num gemido intenso, ela riu alto sob efeito de álcool, vejo Messias empurrando com força em Camilla até erguer a cabeça para cima, que parece cambalear apoiada de joelhos no vaso fechado, a garota de vestido prata parecido com o meu, ainda se recuperando, meus olhos se enche de lágrimas.
O grito que saiu de mim não foi só de dor. Foi de traição. Um rasgo na alma.
— Tess? — A voz dele me encontrou. Estava surpreso. Mas quem deveria estar era eu.
Desci com pressa, o chão girando sob meus pés. As lágrimas escorriam antes que eu pudesse contê-las. A traição não era apenas dele. Era dela. Minha confidente, minha irmã de alma.
— Tess quem? — Ouvi Camila rir, com a voz pastosa de álcool. — A Tess tá ocupada demais pra você, garotão!
Era esse o plano? Bebermos até esquecer quem somos... ou até nos destruirmos?