SOL
E a pior parte é que eu faria tudo de novo
A pior parte é que eu sei que isso nunca vai acabar
Eu continuo voltando como uma maníaca
Tears of Gold - Faouzia
Quando Samuel tomou meu campo de visão, segurando em meu braço, achei a saída dos labirintos verdes que me prendiam.
— Você está bem? Eu… não sabia — Sam fala, mas a voz dele toma meus ouvidos como se eu tentasse reconhecer se ainda era a mesma, como se meus ouvidos tivessem saudades do tom dele. E tentassem conectar com a última imagem e som que tinha dele para ver se era o mesmo.
— Meninas, estão atrasadas. Eu já me apresentei, mas faço de novo só para vocês. Sou Bento Villas Carvalho, sou o novo professor de direito penal e processo penal.
Ouvir aquela sentença de morte me fez tomar coragem de largar meus amigos e correr para fora dali. Eu não queria perder a primeira batalha, mas precisava me organizar para a guerra que viria.
Corri pelos corredores até estar segura no meu lugar favorito: a biblioteca. Em meio às estantes, eu me agachei, escondi minha cabeça entre minhas pernas e respirei ofegante até as lágrimas caírem sem eu perceber. Eu tremia e me escondia em mim mesma, não querendo acreditar. Ele estava lá na minha frente, vivo e aparentemente ótimo.
Não era justo que só eu estivesse destruída e seguindo em frente com os cacos colados. Percebi as lágrimas e as limpei.
Não chore! Não! Ele nunca me verá chorar! Ele nunca ganhará a guerra.
Sai dali depois de conseguir me erguer e juntar as forças, com raiva por deixar apenas um olhar fazer aquilo, peguei um táxi e quando vi, já estava na casa antiga e vazia. Entrei, porque ela estava aberta. Ninguém se atreveria a entrar. Era propriedade dos Villas Carvalho; eles cuidavam para mim depois que fui adotada.
Olhei ao redor, tudo velho e empoeirado. As lembranças me invadiram. Todos meus traumas estavam naquela casa, as cenas que não esquecia, que não podia esquecer, que achei que podia, mas ao ver ele, tudo voltou. Achei que tinha o controle das minhas emoções, mas estava errada.
Porém, não cometeria mais esse erro de subestimar o passado.
Passei pelos móveis velhos, segui até o quarto de meus pais, olhei em volta e para o alto. A corda ainda estava lá. Eu pedi que ficasse, que não mexessem, porque só assim eu saberia que era real, que não era um pesadelo, que eu tinha perdido tudo naquele dia. Fechei os olhos, tentando não chorar, eles queimavam.
Freneticamente, esfreguei os cantos das unhas, machucando. Eu precisava aliviar, tirar parte da pressão. Não podia mais tomar remédios, ou cairia ali, apagada.
Peguei a mochila, joguei tudo no chão, vi meus remédios, que eu só conseguia porque usava nome falso para comprar. Até que fazer direito e saber coisas não era inútil. Naquela cidade, nada acontecia sem a Marina saber, e eu precisava deles para controlar a ansiedade, a insônia e a vontade de me machucar.
Pego a lâmina com a mão tremendo e mal enxergo meus braços e o metal entre meus dedos. Só consigo visualizar o rosto dele, os olhos dele, maldito!
Corto meu braço na diagonal e sinto o filete de sangue escorrer. O alívio é imediato, como tirar o peso todo do corpo e flutuar. Caio no chão e me deixo focar só na dor por um momento. Precisaria passar muita base e pó em cima do curativo fino e usar roupas sufocantes por dias, mas valia a pena. As cicatrizes antigas mal tinham fechado, mas precisei, ou perderia o controle e teria um ataque de pânico, acabaria na emergência do hospital, tendo que ligar para o Sam.
Abaixo da corda, imagino estar ali, pendurada. Será que doeria? Será que seria rápido?
Lembrei de memórias boas, eu e meu pai na sua academia improvisada ao lado da casa, treinando luta. Ele era um homem forte, alto, bonito, de pele negra, sorriso enorme e coração ainda maior. Nós treinávamos, ele queria que eu fosse uma dessas lutadoras famosas como ele um dia quase foi, antes de se lesionar e virar professor. Minha mãe vinha da sala com pratos de comida, ria de nós; ele a pegava no colo, beijava, e comíamos rindo sentados no chão. Eu torcia o nariz vendo eles se beijarem sem pudor, mas sempre acabava sorrindo.
Uma lágrima escorre no meu rosto no presente. Eu a limpo com raiva.
Não seja fraca! É isso que ele quer, é disso que ele precisa, para te matar mais uma vez. Você não pode perder de novo.
Você não é burra, Sol. Sabia que um dia isso aconteceria, que ele voltaria para acabar o serviço de destruir sua vida, algo que ele começou há cinco anos e prometeu que terminaria.
Cinco anos atrás, no meio de um hall de hotel, essas foram suas palavras, as últimas que ouvi daquela boca maldita, para mim e para Samuel.
“Aproveitem enquanto podem, pombinhos, porque quando eu voltar, eu vou acabar com vocês, com todos vocês.”
Ele simplesmente foi embora sem dar nenhuma explicação ou adeus, depois de matar meu pai e destruir minha família. Ele agora voltou para acabar comigo, e eu não permitiria, não dessa vez. Se ele acha que ainda sou aquela menininha que foi enganada e jogada fora, está muito enganado. Se ele quer vingança, o que quero ainda não tem nome.