Capítulo Dois

Seria tão bom que meus olhos não vissem as coisas más e tristes, assim, meu coração nada sentiria. Talvez, fosse melhor que meus ouvidos não escutassem e fossem coniventes com as mentiras e difamações que usavam para colorir a vida. Queria que meu nariz não sentisse o odor do erro e das falhas que se impregnaram nesse chão, ou que minha boca jamais degustasse do gosto amargo de uma decepção...

Talvez, se eu continuasse de olhos fechados, eu não tornaria realidade o que aconteceu, mas meu corpo mostrava totalmente o contrário. Eu sentia minha cabeça doer, meu braço e minha perna direita, como se estivesse sido esmagada por um carro.

Lentamente, abri meus olhos, soltando baixos gemidos de dor. Eu sentia o chão gelado tocando em minha pele despida e algo mais gelado ainda e apertado, segurando meus pulsos.

Eu só via o teto sobre mim e tinha certeza que ainda estava no porão do Gustavo. Porém, o que me deixava preocupada era saber que ele estava em casa, já que acima de mim, eu ouvia seus pesados passos.

Respirei profundamente e senti um odor de ferrugem. Por um momento pensei que era meu sangue, mas ao me virar, a mulher que antes gritava por socorro, estava quieta, com seus grandes olhos azulados vidrados em mim.

Seu cabelo estava cortado, e sua face toda machucada... ela estava morta. Gritei e tentei me afastar, mas eu estava acorrentada ali, pertinho do seu corpo.

A forte dor em minha perna direita me fez gritar mais ainda. Quando me ergui um pouco para ver, percebi que ela estava quebrada e roxa. A dor era grande e tudo que eu queria era mergulhá-la em uma bacia de puro gelo para sentir um alivio.

A porta do porão fora aberta e o Gustavo, segurando uma sacola, desceu furioso com minha gritaria.

– Você como mulher, deveria saber como é rude gritar da aparência de outra mulher... não é nada legal. – Ele debochou.

Ouvir a sua voz não era mais prazerosa e sim amedrontadora. Senti todo meu corpo estremecer e me encolhi na tentativa de me proteger de alguma agressão.

– Como você está se sentindo hoje? – Ele me perguntou. Ele estava realmente preocupado e querendo saber? Ou era um joguinho seu? Não respondi nada. – Ela é filha de um empresário, você deveria se sentir honrada em dormir ao lado dela. – Ele riu baixinho e se aproximou do corpo da mulher. – Enquanto você estava aqui, jogada inconsciente, ela implorava por sua ajuda. Foi tão patético. – Gustavo falava com prazer. – Vejamos bem... no final das contas, essa cadela era uma verdadeira idiota. Será que sou capaz de igualar seu nível de estupidez? – Ele perguntou e respirou profundamente, como se o odor da morte, fosse seu alimento matinal.

Gustavo se agachou ao lado do corpo, o analisou por um tempo em silêncio. Ele pegou o cabelo cortado da mulher e o cheirou.

– Só porque tinha dinheiro, essa idiota achava que era melhor que eu. Era apaixonada por seu cabelo e aqui está ele, em minhas mãos. – Gustavo gargalhou. – Só ela lamentaria por isso.

Após controlar o seu riso, Gustavo jogou no chão o cabelo cortado e acariciou o corpo da filha do empresário.

– Olhe bem para ela... – Sua mão parou em um dos seios da mulher e então ele sem pudor algum, o apertou violentamente. – Não sente vergonha alguma em exibir seus seios assim, na frente de um homem e de outra mulher. – Ele afirmou e apertou outra vez.

Tudo que eu sentia era uma raiva crescendo em mim, mas meu medo era muito maior, então tudo que eu conseguia fazer era abafar meus gemidos de dor.

– Pelo visto, depois que morre, os seios ficam mais durinhos!

Eu estava perplexa pelo Gustavo que eu estava vendo. Eu queria o mandar parar imediatamente de continuar abusando do corpo da mulher, eu queria dizer para ele que era totalmente errado a desonrar dessa forma, mas nenhuma palavra era capaz de sair de minha boca.

Gustavo percebeu meu olhar de reprovação para ele e então retribuiu, voltando toda sua atenção para mim. Me encolhi mais.

– Katherine... – ele sussurrou meu nome. Me arrepiei. – Você já é adulta e ainda desempregada. – Ele estava querendo me analisar. – A julgar pelas suas roupas ridículas e velhas, provavelmente é de uma classe muito baixa e ainda por cima, gosta de perseguir garotos.

Ouvir essas palavras não era legal vindo do Gustavo. Eu queria ouvir dele, coisas boas, mas ele estava apenas me mostrando uma versão que eu desconhecia e totalmente diferente do que mostrava em todas as suas redes sociais ou em interações em público.

– Eu vi as cicatrizes em seu pulso, Katherine. Será que seu pai batia em você quando era criança? – Ele me perguntou e ficou esperando uma resposta. – Ou esses cortes são frutos de seu problema social e de baixa autoestima? – Ele se aproximou de mim como um cão sedento, farejando meu corpo. – Eu sinceramente preferia matar você, do que a garota rica, loira e bonita. – Gustavo fixou seu olhar em meus seios despidos. Eram pequenos e por isso, ele riu. – Mas, não tenho matado pessoas como você desde as mortes dos meus pais, sabe? Suponho que você esteja com sorte...

Gustavo continuou a analisar todo o meu corpo e dessa vez, não apenas com os olhos, mas com as mãos também. Uma delas parou em minha perna e eu só queria lhe chutar, mas a dor que eu comia, me impedia.

– Você é uma garota estranha... feia, fora dos padrões, mas tem lindas pernas. Alguém já disse isso para você, Katherine? – Ele me perguntou e olhou em meus olhos. – Responda-me! – Me ordenou e eu estava ciente que há essa altura do campeonato, eu não estava em condições de ser uma vítima revoltada, então aceitou a minha submissão. Neguei!

Gustavo se esticou e pegou a sacola preta que trouxe consigo. A abriu e de dentro, tirou uma lata de alguma comida industrial. Ele abriu com muita facilidade e o cheiro não era tão agradável. Ele se levantou e ficou sobre mim.

– Acho que você está com fome... está tão caladinha. – Gustavo estava observando a comida dentro da lata e depois pegou uma colher dentro do saco. O encarei receosa sem conseguir conter minhas lagrimas. – Abra a boca! – Mandou.

Pela sua posição em cima de mim, eu poderia usar alguma força restante para acertar sua parte intima, mas eu continuaria acorrentada, então só acionaria uma ira no Gustavo e com certeza, eu acabaria como a filha loira rica do empresário.

– Não se preocupe, Katherine, é apenas mingau de aveia... eu acho. – Ele pegou um pouco do mingau e o provou sem tirar os olhos de mim.

Eu não abri a boca, mas também não tirei meu olhar dele. Gustavo era imprevisível e a qualquer momento, poderia simplesmente me destilar golpes violentos, então tentei sair de entre as suas pernas, mas ele fora mais ágil, se agachou segurando meu queixo grosseiramente, abrindo a minha boca. Enfiou a colher cheia de mingau lá dentro e quando viu que estava derramando porque não fechei a boca em seguida, ele se enfureceu mais.

– Que desgraça, Katherine, não derrame. – Ainda violento, me forçou a fechar a boca e a mastigar o alimento. – É um mingau caro, sua babaca e você me vem desperdiçar? COMA! – Ele bradou e enfiou em minha boa mais uma colher cheia do mingau ruim de aveia.

O gosto era terrível e ficava pior quando ele me forçava a engolir tudo. Estava machucando minha boca e ele não se preocupava com isso, apenas com o valor do enlatado.

Gustavo se inclinou mais sobre mim e segurei em seus braços na tentativa de o impedir de se aproximar mais.

– Você está gostando? – Perguntou-me. Com medo, balancei a cabeça em afirmação. – Katherine, você deveria me agradecer muito por lhe deixar viva para provar um mingau caro.

Gustavo se afastou um pouco de mim e virou todo o enlatado de mingau em minha cara.

– Acha que uma pessoa morta seria capaz de provar esse mingau? – Ele sacudiu a lata despejando o resto. – E agora? Ficou melhor? – Ele ficou me encarando com um sorriso macabro. – RESPONDA PORRA! – Gritou enraivecido.

– Si-sim! – Gaguejei.

– Está gostando? – Perguntou espalhando em minha face o mingau.

– Estou! – Respondi receosa. Gustavo parou, afastou-se com os olhos bem abertos.

– Como assim? Como você pode gostar disso, sua retardada?

Meu coração acelerou mais e parecia que ia rasgar meu peito e saltar para longe. Eu tinha certeza que Gustavo ia me espancar até a morte, mas tudo que ele fez fora jogar para longe a lata do mingau de aveia, se inclinar e beijar a minha boca.

Eu senti seus lábios macios tocarem os meus e sua língua estava dentro da minha boca, buscando a minha. Era uma sensação estranha. Era meu primeiro beijo e estava acontecendo em um momento terrível. Eu continuei estagnada, de olhos abertos e minhas lagrimas não paravam de escorrer.

Um beijo?

Gustavo realmente estava me beijando. Eu quis muito isso, mas não dessa forma... não assim, não aqui... não quase morrendo.

Beijo era uma ato extremo de carinho e as pessoas que namoravam faziam isso... e Gustavo estava fazendo comigo.

Minha boca estava cheia de mingau ruim de aveia, e mesmo assim, ele quis me beijar.

Eu era tão feia, tão magra, tão estranha e mesmo assim...

Gustavo se afastou, limpou a boca e me encarou.

Nenhum homem teve a coragem de me beijar dessa forma e o Gustavo, mesmo se mostrando ser tão psicopata, foi amável comigo.

Ele levantou, sorriu e me deu as costas.

– Gustavo! – O chamei, me ergui um pouco e ele se virou para mim.

Seus olhos não encontraram os meus e sim a minha perna esquerda.

– Sua perna esquerda está muito boa... – Ele sussurrou.

Eu não entendi o que ele queria dizer. Ele lentamente foi se afastando.

– Você sabia que quando um casal começa a sair, eles se comunicam constantemente? Tipo, eles falam um para o outro se estão bem ou não e você precisa me dizer. – Gustavo discursou, pegou uma marreta e tornou a se aproximar de mim.

O que ele estava pensando em fazer?

– Gustavo... – Tentei falar algo, mas ele pisou em minha perna esquerda, assustando-me.

– Se você não contar para as pessoas como se sente, será a única que sairá no final da história, completamente machucada, sabia?

Gustavo ergueu a marreta e torceu com seu pesado pé, a minha perna, a fazendo estalar. Soltei um grito de dor.

– Gustavo, por favor não! – Implorei. Eu já sabia o que ele iria fazer, mas nada que eu falasse, ia resolver, mas não desistir e continuei implorando. – Espera... não! – Ergui minhas mãos até onde dava devido as correntes que tilintavam.

O sorriso que Gustavo carregava em seus lábios, era aquele sorriso que ele dava quando conversava com a garota dentro do ônibus. Era um sorriso de apaixonado e mesmo assim, ele bradou a sua marreta com força em direção a minha perna.

O estrondo não foi mais alto que meu urro de dor.

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