Capítulo 65DanteO caminho até em casa foi mais longo do que o habitual. Não pelos semáforos, nem pelas ruas silenciosas de uma São Paulo que finge dormir. Foi pelo peso.O peso do passado que voltou a vestir carne. Do nome que eu havia enterrado. Da ameaça que agora tinha olhos, voz e sede. Marcelo Rivas não apenas estava vivo. Ele havia voltado em sua forma mais letal: paciente, frio, e convencido de que o mundo lhe devia reparação.Eu dirigi em silêncio. A cidade parecia observadora demais, como se cada janela acesa escondesse um par de olhos atentos à minha volta. Quando estacionei diante da mansão, meus dedos ainda estavam rígidos no volante. O fantasma de Rivas ainda vibrava em meu sangue, e o Vélvet, meu refúgio, já não era mais um santuário. Era só palco.O portão se abriu automaticamente. Subi as escadas com passos silenciosos. Nenhum guarda veio ao meu encontro, sinal de que Rafael ainda mantinha as ordens de discrição. Mas mesmo com todo o sistema de segurança, mesmo com h
Capítulo 66LunaO lençol ainda guardava o calor do corpo de Dante, mesmo depois de ele ter saído novamente para uma reunião com Rafael e Navarro antes do amanhecer. Mas eu não consegui dormir depois que ele se foi. E havia um motivo claro pra isso: Mariana.Ela estava a poucos metros dali. Três quartos depois, no corredor da ala leste da casa. E apesar de termos nos reencontrado, de termos partilhado dores, confissões, traumas, ainda havia um muro entre nós. Não por mágoa. Mas por medo. Medo do que mais eu teria que dizer a ela. Do que mais ela teria que ouvir.Me vesti em silêncio. Calça preta, camiseta de algodão cinza, um moletom leve por cima. Peguei uma xícara de café já morno que repousava na escrivaninha desde que Dante saiu e caminhei até a porta. Respirei fundo antes de girar a maçaneta.A mansão estava quieta. Os seguranças se revezavam nos andares, mas havia uma paz aparente, uma bolha construída entre muros altos e janelas blindadas. Uma paz frágil, como se o mundo lá for
Capítulo 67MarianaPor muito tempo, eu fui silêncio.Silêncio de gritos abafados, de perguntas sem resposta, de lembranças cortadas em pedaços que não se encaixavam. Cresci acreditando que o mundo era um quarto trancado e que eu era a prisioneira de um favor. Cresci ouvindo que fui abandonada, que sobreviver era um prêmio dado por Marcelo Rivas e que, por isso, eu devia gratidão.Mas agora eu sabia a verdade. Eu tinha uma irmã. Eu tinha um nome. E Rivas não era meu salvador. Ele era meu algoz.A primeira vez que acordei naquela casa — a casa de Dante Moretti — foi como despertar de um pesadelo em câmera lenta. O quarto era grande, silencioso, com cortinas brancas que balançavam com o vento. A cama era macia demais para alguém como eu, e por um instante, meu corpo estranhou o conforto. Quase senti medo dele. Como se o colchão fosse uma armadilha.Mas então vi Luna.Ela estava sentada ali, ao lado da cama, me observando como se não acreditasse que eu era real. E eu também não acreditav
Capítulo 68LunaEstávamos sentados em lados opostos da mesa no escritório improvisado no subsolo da mansão. O lugar cheirava a metal frio, papel envelhecido e estratégia. Dante observava os mapas com aquela intensidade que fazia o tempo parecer desacelerar ao redor dele.— Tem um carregamento vindo do México — começou Dante, com a voz baixa, quase como se revelasse um segredo. — E não é qualquer coisa. Rivas está investindo pesado nisso. Não sabemos se é armamento, informação ou moeda, mas está vindo por uma rota que não deveríamos nem conhecer. Isso... é uma brecha.Ele se calou, esperando minha reação. Mas eu só cruzei os braços e encarei. Sabia que ele ainda não tinha me dado a parte mais amarga.— Tem mais — continuou. — Precisamos de alguém que conheça os protocolos. A estrutura de segurança do depósito de transição. As rotas internas.— Quem? — perguntei, seca, mas já desconfiando.— Felipe.O nome bateu como um trovão abafado. Eu não reagi imediatamente. Mantive o olhar sobre
Capítulo 69LunaO suor escorria pelo meu rosto enquanto eu apertava os punhos dentro das luvas de couro, os nós dos dedos brancos sob a pressão. O ar no galpão do cais 7 estava úmido, carregado de maresia e óleo queimado. O gosto metálico da adrenalina já dançava na minha língua, um presságio do que estava por vir. Eu sabia que essa operação não seria apenas mais uma missão, era um golpe direto nas entranhas do império de Marcelo Rivas. E eu não queria só assistir ao fim. Eu queria causar.— Todos nas posições? — minha voz saiu firme pelo rádio, abafando o tamborilar frenético do meu coração, que parecia querer sair pela garganta.“Confirmado. Setores norte e leste sob controle.”“Câmeras internas sendo hackeadas agora.”“Equipe fantasma a postos. Aguardando sinal verde.”Eu apertei os dentes, balançando a cabeça para mim mesma. — É agora. Vamos entrar. Ninguém hesita.Com a arma empunhada junto ao peito, avancei entre os containers e as empilhadeiras enferrujadas. O chão de concreto
Capítulo 70LunaA base estava em alerta máximo quando atravessei os portões enferrujados. Os holofotes se voltaram para mim automaticamente, seus raios cortando a escuridão. Os soldados que patrulhavam o perímetro hesitaram ao me ver: minha roupa rasgada, o sangue seco na pele, os olhos fundos e vazios. Um deles levantou o rádio para anunciar minha chegada, mas congelou assim que me reconheceu.Chiara foi a primeira a correr em minha direção. O alívio em seu rosto se misturava ao desespero, como se ela não soubesse se me abraçava ou me segurava para evitar que eu caísse.— Meu Deus! Luna! — Sua voz saiu embargada. — Você está sangrando!Cambaleei por um instante, apoiando-me nos ombros dela. A dor física era nada mais que uma sombra diante do turbilhão que pulsava dentro de mim.— Estou viva. — A voz saiu rouca, quase metálica. — Isso é o que importa.Chiara passou o braço por minha cintura, tentando me conduzir para dentro.— Você precisa de atendimento! Vamos levá-la pra enfermaria
Capítulo 71LunaNa semana seguinte, não pedi autorização. Não procurei aval de Dante. E, acima de tudo, não esperei.Coordenava a operação sozinha, nas sombras, com a precisão de quem aprendeu que guerra se vence com silêncio, não com discursos. Não usei os canais oficiais — sabia que estavam contaminados demais. Não confiava nos soldados que marchavam com farda limpa e olhos cansados.Eu precisava de sangue nos olhos.Escolhi um por um. Leais. Testados. Silenciosos.Gente que não fazia perguntas. Gente que devia a vida a mim ou a Dante. Gente sem rosto, que não aparecia nos relatórios. Um grupo pequeno, invisível — mas letal.A caçada começou numa madrugada sem lua.O primeiro a cair foi Daniel “Byte”, um hacker de vinte e poucos anos com dedos ágeis e língua ainda mais rápida. Ele vivia em um prédio decadente na Zona Norte, cercado por monitores e garrafas vazias de energético. Era ele quem vendia acesso aos servidores da base em troca de bitcoins e pequenas ameaças veladas.Entrei
Capítulo 72LunaNa noite em que Felipe foi capturado, estava lá. Ele não viu, mas eu estava ali, na sombra, observando. O som das correntes e o cheiro abafado do medo preenchiam o ambiente enquanto ele era levado para o porão da base. Seus passos estavam hesitantes, os olhos vidrados em terror, o rosto marcado por algo mais profundo do que o simples cansaço. Ele sabia o que vinha, e isso o fazia tremer mais do que qualquer dor física poderia.Quando o vi algemado, foi impossível ignorar a sensação de vitória que me atravessou. Felipe, aquele homem que pensou que poderia ser intocável, agora estava ali, preso, como um animal encurralado. O medo estampado em seu rosto me dizia tudo o que eu precisava saber. Ele sabia que a queda era certa, que o império que ele ajudou a construir estava desmoronando ao seu redor. E ele sabia que sua traição o condenara ao esquecimento. Ele sentia, assim como eu, que o fim estava próximo. Mas ao contrário de mim, ele não estava preparado para isso.— Po