O Legado do Sangue
O Legado do Sangue
Por: ftsanches
Pontapé

 As mudanças na vida - de uma forma geral - são imperceptíveis: como o sol, que nasce e se põe tão silenciosamente quanto a areia que cai de uma ampulheta, e quando enfim nos damos conta, passaram-se dias, meses ou anos.

  Mas há, vez ou outra, um momento fatídico que, ao vivenciá-lo, você o entende como o pontapé inicial para uma mudança brusca em sua vida. 

   O meu ocorreu em um fim de tarde de uma terça-feira, as folhas alaranjadas se desprendiam das árvores e pelas casas da vizinhança você via pessoas se preparando para o Halloween: esqueletos, bruxas e morcegos de brinquedo enfeitavam a faxada das residências, algumas até já tinham colocado lanternas de abóboras, e nós ainda estávamos na última semana de Setembro.

  Irônico ou não, a única casa que não tinha o costume de abraçar o "mórbido" dessa festividade era a minha. Minha mãe odiava essa época do ano, e eu a amava.

Não que fosse um costume nosso ter ânimo para as outras comemorações mas ela possuía um horror particular pelo dia das bruxas. Dizia não gostar, mas nada além disso.

  Chegaria um pouco mais tarde aquele dia, havia deixado a bicicleta em casa e optado por ir andando para a escola, disse à mim mesma que seria um belo passeio pela trilha de folhas secas caídas pela calçada que craquelavam ao pisar sobre elas, mas talvez o meu subconsciente só quisesse me proteger dos "sinais" vistos durante a manhã: a pia da cozinha impecavelmente limpa, a casa em moderada ordem e a mesa posta num café da manhã comum para a maioria das famílias, mas não para a minha.

Uma versão em completo oposto do que era um dia rotineiro na minha família de 3: eu, minha mãe e nosso gato Silas. 

Sarah - à quem assim chamava mentalmente -, tomara café da manhã comigo, um feito que talvez nunca tenha ocorrido já que sou incapaz de lembrar a última vez que isso aconteceu. Uma xícara de café preto. Só. Talvez esse tenha sido o maior dos sinais, sua presença por si só já me era estranha, sua proximidade forçada me incomodava. Engoli o cereal e inventei que precisaria sair mais cedo. Ela me olhou nos olhos por um minuto que pareceu eterno e sorriu de forma nervosa, como se todas as palavras que por anos quisesse usar estivessem entaladas em um nó na sua garganta. Eu poderia jurar que seus olhos estavam marejados mas Sarah nunca fora uma mulher de demonstrar sentimentos, muito menos os receber de alguém. Mesmo que esse alguém fosse sua única filha. Por isso sua insistência em um contato nunca antes buscado me fez fugir para o mais longe onde eu poderia ir; minha escola. 

  A porta se abriu com um clique suave, Silas me recebeu como de costume, mas bem mais agitado, se enroscando por entre as minhas pernas cobertas pela familiar calça jeans que eu usava.

- Ei, oi... Venha aqui.

Abaixei para que viesse em meu colo, mas o gato se negou, continuava a mover-se de um lado para o outro, miando, como se quisesse que eu o seguisse. E assim o fiz, deixando a mochila sobre a mesinha ao lado da porta de entrada, fui em direção a cozinha.

- Mãe? - chamei, sem resposta.

Silas parecia estar ainda mais agitado, como se ao mesmo tempo que quisesse me dizer algo, tentasse evitar que eu chegasse à cozinha.

- Mãe, você deu comida ao Sil? Ele...

Não pude completar a frase, a visão a minha frente me paralisou e é aqui que senti o meu "pontapé".

Sarah, minha mãe, estava pendurada por uma corda ao redor do pescoço. A mesa onde tomamos café mais cedo estava derrubada, como se ela a tivesse usado para subir, amarrar a corda no ventilador de teto, e a empurrado de alguma forma até que caísse. 

A vida de seu corpo já havia se esvaído, os seus olhos azuis estavam abertos a contemplar o nada e a boca levemente aberta já não possuía mais o tom rosa queimado.

Um sentimento indescritível me tomou, como se recebesse um soco na boca do estômago, que subiu até minha garganta e escapou por meus lábios em forma de grito, e daí em diante tudo correu em mudo e câmera lenta.

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