Capítulo 04 - A Dança da Substituta

“Há dores que só existem porque o amor foi maior do que o medo.”

Clara Vasconcelos

O céu tingia os jardins da Mansão Ferraro com tons de âmbar e lilás, como se o próprio entardecer tivesse sido pintado para encenar um espetáculo perfeito, só que eu não fazia parte dele. Do meu lugar, tudo parecia uma encenação grandiosa demais para caber na minha pele. Pequenas luzes douradas pendiam das tendas de linho branco, piscando suavemente, balançando a cada sopro de vento. Pétalas brancas foram espalhadas sobre o chão em trilhas impecáveis, conduzindo os convidados até mesas suntuosas, rodeadas por arranjos altos de flores creme e verde-oliva. O quarteto de cordas tocava uma valsa antiga, e as notas suaves flutuavam no ar como promessas de um futuro que nunca me pertenceu.

Mas, para mim, nada daquilo era real.

Tudo era uma farsa. Uma mentira bem bordada, costurada com fios de vergonha, medo e desespero.

Meu vestido, ou melhor, o vestido de Isadora, parecia sufocar-me. O espartilho apertava-me tanto que cada respiração vinha curta, dolorida. A renda delicada, escolhida para abraçar o corpo perfeito da minha irmã, arranhava a minha pele como se rejeitasse a impostora. As alças escorregavam dos meus ombros e o cetim pesado prendia-me, como se gritasse silenciosamente: 

“isso não é seu, nunca foi, nunca será.”

E era verdade.

Aquela festa não era minha, nem aquele papel e, principalmente… Lucca Ferraro não era meu.

Pelo menos, não para o mundo.

Para todos aqueles olhares atentos, calculistas e ávidos por fofocas, era Isadora Vasconcelos quem havia subido ao altar, quem agora ostentava o sobrenome Ferraro. A herdeira mais deslumbrante, a tempestade que sempre atraiu todos os olhares, a mulher que todos esperavam ver ao lado dele. Eles olhavam para mim e viam ela, e essa era a essência cruel da farsa.

O pior é que sempre foi assim. Desde crianças, Isadora era o centro gravitacional que puxava tudo ao seu redor, enquanto eu… eu era apenas a sua sombra. O mesmo rosto, os mesmos olhos, o mesmo sangue, mas nunca a mesma luz. Enquanto minha irmã era tempestade, eu era brisa. Enquanto ela incendiava os ambientes, eu passava despercebida, quase transparente.

E, ainda assim, lá estava eu.

No altar, no lugar dela. Carregando o peso de um sobrenome que não era meu, um destino que não me pertence.

A troca havia sido rápida. Tão rápida que até agora, horas depois, ainda parecia um borrão. Isadora desapareceu, fugiu horas antes da cerimônia, deixando para trás escândalo, caos e um rastro de vergonha. Não houve tempo para pensar, não houve espaço para decidir. Fui empurrada para dentro do vestido, para dentro da igreja, para dentro de uma vida que não escolhi.

E por quê?

Porque havia contratos. Porque havia ações. Porque havia milhões envolvidos. Porque a reputação dos Vasconcelos dependia disso. Porque eu precisava salvar o nome da minha família, mesmo que isso custasse a minha liberdade.

Mas… ele sabia.

Desde o primeiro instante. Desde o momento em que atravessei o corredor da igreja, senti o peso incandescente do olhar de Lucca sobre mim. Ele não olhava como os outros. Não havia admiração nem ternura em seus olhos. O que havia ali era algo muito mais perigoso: desconfiança.

Ele olhava-me como quem desmonta um enigma, como quem procura fissuras num vidro perfeito. Cada passo que dei, cada respiração que prendi, cada vacilo do meu corpo, ele viu tudo. Ele percebia o que ninguém mais via.

O modo como eu mordia o lábio inferior, um gesto pequeno, inconsciente, que Isadora nunca teve. O jeito hesitante dos meus passos, o olhar que desviava rápido demais. O suspiro preso quando os olhos dele se encontravam com os meus.

Ele sabia. Acho que no fundo, sempre soube.

E então, no meio de toda aquela encenação, a voz dele cortou o ar como uma lâmina:

 “Não ouse recuar, Clara. Já perdi uma noiva… e hoje não perderei outra.”

Foi como sentir o chão sumir sob os meus pés. Um arrepio atravessou meu corpo inteiro, queimando e gelando ao mesmo tempo. Eu queria falar, queria negar, queria pedir desculpas, mas as palavras simplesmente não vinham. Meu coração batia tão forte que parecia que todos poderiam ouvir.

A vergonha dominava-me, esmagando tudo dentro de mim. Como pude acreditar que conseguiria enganar Lucca Ferraro? Como tive a audácia de pensar que ele, ele, com aqueles olhos azuis que enxergavam além de qualquer mentira, não perceberia que eu não era Isadora?

Eu não era luz.

Eu nunca fui tempestade.

Eu era só a sombra tentando fingir ser o sol.

E, no entanto… havia algo nele que me desarmava completamente. O olhar de Lucca despia-me até a alma, deixava-me exposta, crua, vulnerável. E talvez o mais devastador fosse a verdade que eu tentava esconder de todos, inclusive de mim mesma:

Eu o amava. Amava cada detalhe dele.

O timbre grave da sua voz que vibrava no fundo do meu peito. O peso do seu olhar que me prendia, sufocava e, ao mesmo tempo, dava-me vida. O modo como sua presença parecia ocupar todos os espaços, todos os pensamentos, todos os sonhos.

Amava com a força de quem tenta resistir… e falha, todos os dias.

Mas esse amor era proibido. Imprudente, quase cruel. Era uma chama que eu não podia apagar e que, ao mesmo tempo, consumia-me por dentro. Porque enganar Lucca não foi apenas uma mentira para o mundo, foi uma traição contra o único sentimento verdadeiro que já tive.

No fundo, eu só queria que ele me visse, não como a sombra de Isadora, nem como uma substituta, mas como eu mesma. A Clara imperfeita, tímida que o ama mais do que deveria. E talvez o que mais doía era saber que, por mais que o meu amor fosse imenso, ele jamais seria suficiente para fazê-lo escolher-me. Lucca jamais olharia para mim como uma mulher, um homem como ele merece uma mulher como Isadora.

Agora, sentada à mesa principal, o burburinho ao meu redor soava distante, como se tudo acontecesse embaixo d’água. Risos, brindes, taças tilintando, cumprimentos… nada fazia sentido. Tudo parecia uma pintura feita para outra pessoa, e eu era apenas a mancha fora do quadro.

Foi então que o maître aproximou-se, sorridente, e anunciou com a voz firme, cortando meus pensamentos ao meio:

— Senhoras e senhores… convidamos todos a prestigiar a primeira dança do casal.

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