“O verdadeiro amor não pede nada, mas ainda assim, é capaz de entregar tudo.”
Clara Vasconcelos
As palavras do maître caíram sobre mim como ferro em brasa, queimando cada centímetro da minha pele. Meu coração disparou tão rápido que parecia audível para todos ao redor. Um nó apertou-me a garganta, engolir era impossível, respirar também. A vergonha fervia sob o vestido de renda, pesado como chumbo, acima de tudo, porém, o que me consumia era o amor teimoso por aquele homem, amor que crescia mesmo quando tudo gritava para que eu me afastasse.
Eu sabia que Lucca conhecia a verdade: eu não era Isadora. E ainda assim ele não me deixava fugir, não acabava com a farsa. Seria pena? Seria castigo pelo que eu e minha família estávamos fazendo?
Meu estômago afundou como se me tivessem arrancado o chão dos pés. Um silêncio respeitoso percorreu o jardim, logo substituído por aplausos contidos. Sorrisos e olhares esperançosos, todos viam o início de um conto de fadas, mas para mim, era um abismo.
Tentei respirar fundo, mas o ar parecia denso, preso. O calor subiu-me pela nuca, o corpo latejava sob a pressão de olhares que nunca foram para mim. Por fora, a noiva perfeita. Por dentro, uma impostora à beira da ruína.
Com esforço, apoiei as mãos na mesa e me levantei. Procurei meu pai que me observava com os olhos verdes entristecidos. Desviei o olhar para minha mãe e vi em seus olhos um orgulho que me embrulhou o estômago. Os dedos tremiam. Meu corpo era, ao mesmo tempo, leve demais e pesado demais, como se a alma já não coubesse. Os pés hesitaram, mas caminhei, um passo após o outro, até parar diante dele.
Lucca já estava de pé. Imponente, imutável. O terno preto caía com perfeição, a gravata alinhada com precisão. Os cabelos castanhos-escuros, um pouco desalinhados pela brisa, apenas acentuavam o perigo irresistível que dele emanava. Cada detalhe era um lembrete cruel do que eu não poderia ter.
Os olhos azuis dele cravaram-se em mim, intensos, penetrantes, atravessando camadas de defesa até o segredo que eu tentava proteger. Não havia sorriso, nem gentileza, nem máscara de cortesia, apenas um olhar que me queimava viva. Ele não estendeu a mão, não disse uma palavra. Ergueu o braço num gesto lento, controlado, quase calculado.
Engoli em seco e deixei que meus dedos encontrassem os dele. O toque foi imediato, quente, firme, devastador. Uma corrente elétrica subiu-me pelas pernas, quase fazendo-as ceder. Forcei a postura, ergui o queixo, porque todos precisavam acreditar que eu era Isadora. Lucca percebeu meu nervosismo, mas nada demonstrou. Apenas conduziu-me, a passos longos e decididos, até o centro da pista.
O quarteto de cordas iniciou a valsa, uma melodia antiga, densa, que parecia zombar de mim. Eu esperava uma dança distante, mecânica, uma performance ensaiada para os convidados. Mas quando a palma da mão dele pousou sobre minha cintura, percebi o quanto estava enganada.
A palma de Lucca era quente, os dedos pressionaram o tecido com força, como se quisessem marcar-me através do vestido. A outra mão segurou a minha com uma firmeza que não deixava espaço para hesitação. Ele aproximou-me mais, colando nossos corpos. Meu peito tocou o dele e o mundo estremeceu.
O calor dele cercou-me, o perfume amadeirado misturou-se ao aroma das flores, do vinho, da noite. Meus sentidos ficaram embriagados e confusos, presos nele. Os lábios de Lucca ficaram perigosamente próximos à minha têmpora, e cada passo parecia orquestrado para torturar-me. Não houve palavras, apenas olhares. O ar entre nós densificou, carregado de algo sem nome que ardia em mim como chama indomável. Meu coração doía de tanto bater, minha mão que segurava a dele tremia, traindo a insegurança.
Então aconteceu.
Sem aviso, Lucca puxou-me com força, fazendo um arfar escapar dos meus lábios, baixo, quase imperceptível. O choque atravessou-me o corpo e por um segundo, esqueci como respirar. Ergui o rosto e o encontrei ali, tão perto, tão certo do que queria. Os olhos azuis prenderam-me como laço impossível de romper. Tremendo, vacilante, engolida por um turbilhão de sensações, mal tive tempo de compreender o que estava prestes a acontecer, quando os lábios dele tomaram os meus.
Não foi como o beijo contido da igreja. Não houve cerimônia, nem delicadeza. Foi um beijo de verdade. O toque inicial foi firme, quase brusco, fazendo cada fibra do meu corpo estremecer sob a intensidade. Meus olhos fecharam-se devagar, meu coração martelava tão alto que parecia ecoar dentro da cabeça. Eu não sabia como responder, nunca havia feito aquilo antes.
Minha respiração vinha curta, entrecortada. Meus lábios trêmulos tentavam acompanhá-lo, errando, aprendendo, cedendo. Enquanto eu vacilava, ele se entregava sem reservas. Os lábios de Lucca eram quentes, exigentes, famintos e pressionavam os meus com uma intensidade que me deixava sem chão.
Quando a língua dele invadiu minha boca, um som baixo escapou de mim, um gemido involuntário, uma mistura de surpresa, medo e um prazer que me apavorava. Eu não sabia que podia sentir tanto, não sabia que um simples beijo poderia queimar tanto.
Lucca dominou cada segundo, explorando limites, marcando território, como se quisesse gravar em mim o gosto da própria posse. Desajeitada e entregue, eu tentava acompanhar, e a vulnerabilidade deixava-me ainda mais à mercê.
Minhas pernas cederam por um instante quando as línguas se encontraram e um arrepio varreu-me a pele, acendendo nervos e deixando-me em chamas. Lucca beijava como quem reclama o que sempre foi seu. A cada segundo, com mais força, mais intensidade, até arrancar-me o fôlego e as defesas. Meus dedos cerraram-se no paletó dele, puxando-o, como se pudesse ancorar a sanidade naquele tecido quente. O calor subia em ondas, queimando-me a pele, atravessando meu corpo inteiro.
E, apesar do coração aos saltos, um pensamento cortou-me como lâmina:
“Ele sabe quem eu sou, então por que fazia aquilo?”
Mesmo com medo, vergonha e o peso da mentira, correspondi. Porque, por mais errado, por mais impossível, tudo o que sentia por ele ardia vivo naquele beijo.
Tão abruptamente quanto me puxou, Lucca afastou-se.
Os aplausos explodiram ao redor, junto com suspiros e sorrisos. Todos estavam convencidos de terem assistido a um gesto de amor perfeito. Para eles, era um exemplo de paixão. Para mim, um aviso silencioso.
Lucca manteve o rosto próximo, com os lábios ainda úmidos e os olhos azuis agora escurecidos, densos, carregados de algo que eu não sabia decifrar. Ele inclinou-se ligeiramente, próximo o bastante para que apenas eu pudesse ouvir, e murmurou, com a voz baixa e gelada:
— Todos esperavam por isso.
Pisquei, confusa, engolindo em seco, tentando processar o que ele queria dizer. Antes que eu pudesse responder, ele completou, com o tom ainda mais cortante:
— Mas não crie expectativas por causa desse beijo.
O ar sumiu, e meu corpo gelou de dentro para fora. O gosto dele ainda queimava nos meus lábios, subitamente amargo. Endireitei os ombros e vesti o sorriso perfeito, uma máscara milimétrica para esconder o caos. A música prosseguiu, os convidados comentaram e o mundo girou. Mas nesse momento, eu já não ouvia nada.
Por fora, eu era uma noiva impecável. Por dentro, algo havia se partido para sempre. Porque, se um dia existiu algum sentimento de Lucca Ferraro por mim, naquele momento o que habitava o peito dele era desprezo e isso me destruía por dentro.