Capítulo 03 - Sob o Peso do Véu

“Quem ama de verdade entende que, às vezes, perder a si mesmo é a única forma de salvar o outro.”

Clara Vasconcelos

O som da marcha nupcial ainda ecoava, vibrando nas paredes altas da igreja, mas para mim parecia vir de um lugar distante, abafado, como se tudo estivesse acontecendo sob a água. Cada passo que dei até ali drenava o pouco de força que restava em minhas pernas, e agora, diante dele, a respiração parecia impossível.

O vestido branco, pesado, parecia sufocar-me. O véu de tule caía pelos meus ombros frágeis, e os dedos trêmulos apertavam o buquê de lírios brancos como se fosse minha única âncora. O salão inteiro estava mergulhado num silêncio denso, um silêncio que parecia pesar mais do que o próprio ar. Cada olhar estava voltado para o altar, cada respiração suspensa, como se o mundo tivesse parado para testemunhar o destino de duas famílias inteiras.

Quando finalmente parei diante de Lucca Ferraro, o coração martelava no peito com tanta força que eu tinha medo de que todos ouvissem. Ao meu lado, William, meu pai, hesitou antes de soltar-me. Os dedos dele permaneceram presos ao meu braço, como se não quisessem deixar-me ir.

Ele inclinou-se levemente e tocou o meu ombro, com os olhos marejados carregando um pedido mudo, quase uma súplica desesperada:

"Filha, volta atrás… ainda há tempo."

Mas não havia mais tempo.

Baixei os olhos, respirando fundo, tentando controlar o tremor que ameaçava denunciar-me. William, então, recuou devagar, como quem se despede de algo precioso. Sentou-se no banco da família, com o maxilar tenso, o olhar cravado em mim, prometendo silenciosamente que estaria ali, acontecesse o que acontecesse.

Mas era tarde demais. A decisão já estava tomada.

E então, Lucca deu um único passo à frente. Pequeno, quase imperceptível. Mas o suficiente para que a atmosfera mudasse por completo.

A distância entre nós diminuiu, o ar rarefez, e o peso do silêncio tornou-se insuportável. Ele estava diante de mim e não estendeu a mão. Não sorriu, não fingiu.

O noivo perfeito que todos esperavam ver não estava ali. No lugar dele havia um homem perigoso. Um predador controlando cada gesto, cada palavra, cada respiração.

Lucca inclinou-se levemente, aproximando o rosto do meu até que os lábios ficaram a poucos centímetros da minha pele. O perfume amadeirado e intenso, tão familiar, envolveu-me, mas, naquele instante, o aroma que antes me confortava agora parecia sufocar-me, aprisionar-me.

— Não ouse recuar, Clara… — A voz dele saiu baixa, grave, precisa como uma lâmina. Cada sílaba carregava um peso, uma força contida, um aviso. — Não vou perder outra noiva hoje.

Meu corpo inteiro tremeu.

Ele havia dito Clara, não Isadora.

O som do meu próprio nome nos lábios dele foi um golpe certeiro, um segredo revelado diante de todos, mas compreendido apenas por nós dois. O jogo começava ali. Um jogo silencioso, cruel, que só nós conhecíamos as regras.

Meu coração disparava, o peito subindo e descendo em um ritmo descompassado. Engolindo o nó que se formava na garganta, mantive meus olhos verdes fixos nos dele, implorando por um sinal, por qualquer traço de humanidade. Mas Lucca Ferraro não era um homem fácil de decifrar.

Nos olhos azuis dele havia raiva.

Havia frieza.

Mas havia algo mais. Algo profundo. Escuro. Um peso contido que parecia prestes a explodir. Ele inclinou-se mais um pouco, de forma quase imperceptível, até que sua respiração quente roçou a pele sensível abaixo da minha orelha. Um arrepio violento percorreu-me a espinha, deixando-me sem reação, como se o corpo tivesse se rendido por completo.

— Mantenha essa farsa até o final… — ele sussurrou, a voz baixa, grave, carregada de um perigo silencioso que atravessou-me inteira. — Caso contrário… muitos vão pagar por isso.

As palavras bateram em mim como um golpe seco, profundo, devastador. Quis protestar, dizer que não tinha culpa, que não queria estar ali, mas as palavras morreram na garganta.

Lucca, por outro lado, não desviava o olhar.

Os olhos azuis queimavam com intensidade fria, impossível de decifrar. Ódio, desejo, controle absoluto, tudo isso coexistia ali, de forma sufocante.

O silêncio entre nós durou apenas alguns segundos, mas para mim pareceu uma eternidade.

E então, ele recuou um passo. Lentamente, ajeitou os punhos da camisa sob o paletó, um gesto pequeno, mas carregado de uma calma letal, como um predador que se afasta só para analisar o próximo movimento. Quando voltou a erguer o olhar, o semblante estava neutro, perfeito, um disfarce tão impecável que nenhum dos convidados imaginaria o que acabara de acontecer.

— Sorria, Isadora. — A voz dele era baixa, afiada, mas forte o suficiente para atravessar o meu coração. — A noiva perfeita não pode fraquejar.

Foi a última facada.

Eu já não existia mais. A partir dali, eu seria Isadora. A substituta.

O padre falava, mas as palavras chegavam a mim como um eco distante. As luzes dos vitrais coloridos iluminavam o altar, e o murmúrio abafado dos convidados vibrava no ar carregado.

— As alianças.

O padrinho aproximou-se, entregando ao padre a caixinha de veludo preto, que foi aberta com um gesto solene. As duas alianças repousavam ali, refletindo a luz. Uma, delicada, com uma esmeralda no centro. A outra, simples, sólida, imponente, como quem a usaria.

Senti o ar rarefeito. Minhas mãos tremiam, o buquê quase caía, o coração batia tão forte que parecia querer romper o corpete do vestido. O padre ergueu os olhos e perguntou:

— Isadora Vasconcelos, aceita Lucca Ferraro como seu legítimo esposo?

O nome errado atingiu-me como uma lâmina. Por um instante, pensei que minha voz falharia, que todos descobririam a verdade. Mas Lucca mantinha os olhos fixos em mim, implacável, e esperava.

Inspirei fundo e respondi, num fio de voz:

— A-aceito.

O padre entregou-me a aliança menor. As mãos dele envolveram as minhas, firmes, quentes, e deslizaram o aro frio em meu anelar. Ofeguei discretamente ao sentir o toque dele, o calor, a tensão. Por um segundo, o polegar de Lucca roçou o dorso da minha mão num gesto tão sutil que ninguém percebeu. Mas, para mim, foi devastador.

Quando o padre perguntou a Lucca, o silêncio pareceu eterno. Bastava um “não” para destruir tudo. Mas ele sustentou o meu olhar e respondeu, grave, profundo:

— Aceito.

Veio a minha vez de colocar a aliança no dedo dele. Os meus dedos trêmulos seguravam o aro pesado, os olhos marejados, e quando toquei a mão quente de Lucca, o contraste da minha própria pele fria fez meu estômago revirar. Ele fechou levemente os dedos contra os meus, ancorando o gesto, prendendo-me ali.

— Pode beijar a noiva.

Meu coração parou. O mundo inteiro sumiu. Não havia altar, não havia convidados, não havia pacto entre famílias. Só havia ele.

Lucca ergueu a mão e tocou o meu queixo com um cuidado calculado, erguendo o meu rosto até que os meus olhos verdes encontrassem os dele. O outro braço deslizou até a minha cintura fina, puxando-me de leve, aproximando-nos perigosamente.

Ele inclinou o rosto e, quando os lábios tocaram os meus, o tempo parou.

Por fora, para os convidados, era um beijo perfeito, casto, ensaiado.

Por dentro, para mim, era outra coisa.

O toque dele queimava. O perfume amadeirado envolvia-me, a respiração presa no peito, o corpo inteiro tremendo. O beijo, suave, escondia uma tensão elétrica, um aviso silencioso, um desejo contido que ele não deixava escapar.

Quando se afastou, o rosto permaneceu próximo, os olhos azuis queimando como um segredo:

— Espero que honre o que fizemos. — murmurou, apenas para mim.

Ofeguei, sentindo o corpo estremecer por  inteiro. E finalmente entendi.

Para Lucca, aquele beijo não selava um amor.

Selava uma guerra.

E, sob o véu pesado, com o coração pulsando e os olhos marejados, percebi:

Nós havíamos acabado de unir duas famílias… Mas também havíamos acorrentado duas almas.

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