“Amar é oferecer o coração mesmo sabendo que ele pode sangrar.”
Clara Vasconcelos
O silêncio da igreja era tão denso que eu conseguia ouvir o próprio coração batendo dentro do peito, cada pulsar ecoava como um tambor. Do lado de fora das portas altas e esculpidas em madeira maciça, os primeiros acordes da marcha nupcial começaram a tocar, suaves no início, crescendo a cada segundo, anunciando o momento que mudaria para sempre o destino de duas famílias… e o meu.
O ar cheirava a flores frescas e cera de vela, mas para mim tudo parecia distante, borrado, como se o mundo tivesse mergulhado debaixo d’água. O peso do vestido, o perfume adocicado das rosas, os passos apressados dos organizadores atrás de mim… nada fazia sentido.
Eu sentia as mãos suarem dentro das luvas de seda, o véu leve preso com grampos na cabeça, o coque impecável tensionando cada fio dos meus cabelos negros. O buquê de lírios brancos tremia nos dedos. Por baixo do tule, meus olhos verdes marejados fixavam-se nas portas fechadas à minha frente, como se buscassem uma última saída… que não existia mais.
De repente, senti o braço firme do meu pai sob a minha mão tremer discretamente. William Vasconcelos, um homem conhecido por sua postura inabalável, virou o rosto para me encarar, com a expressão carregada de surpresa e confusão. Ele franziu a testa e contraiu o maxilar encarando-me com os olhos cinzentos cheios de perguntas.
— Clara o que…
Antes que ele pudesse continuar, Amanda surgiu ao lado de nós, impecável no vestido azul-petróleo, e encarou o marido com o olhar firme e retrucou com a voz afiada.
— Não diga nada, William. — Ela ergueu o queixo, altiva. — Foi uma decisão de nossa filha. Depois conversamos.
— Uma decisão?! — William ergueu a voz num sussurro rouco, tentando manter a compostura diante dos fotógrafos e convidados posicionados do lado de fora. — Amanda, isso é uma loucura! Ela não é a Isadora! Isso… isso não está certo!
Apertei o braço do meu pai com mais força, meus dedos frágeis e trêmulos pressionaram o tecido do paletó dele, obrigando-o a olhar para mim. Minha voz saiu trêmula, quase um sussurro, mas carregada de súplica:
— Papai… está tudo bem.
William piscou, surpreso com a calma aparente. Seus olhos buscaram os meus, tentando encontrar em mim alguma convicção, alguma certeza, mas tudo o que viu foi um medo contido e uma força silenciosa que ele não compreendia. Para ele eu estar ali, usando o vestido da minha irmã, alguma besteira Isadora tinha feito.
— Clara minha filha, isso não…
— Papai, por favor…
Olhei no fundo dos olhos do meu pai e sorri. William sentiu o coração sangrar, ele sempre soube do meu amor por Lucca e devia imaginar a dor que estaria sendo para mim ter que mentir para proteger a Isadora. Levei a mão até o rosto dele tocando o local com ternura e disse:
— Vai dar tudo certo, papai.
Amanda, que estava ao lado, apenas assentiu, pressionando os lábios com firmeza, como quem decretava que não havia mais espaço para recuar. E então… o som dos violinos cresceu e a marcha nupcial inundou o ar.
Meu coração disparou dentro do peito, comprimindo o ar nos pulmões. Os organizadores correram, as damas de honra ajeitaram o véu e a cauda do vestido. Um sussurro percorreu o interior da igreja quando as portas altas finalmente se abriram.
E, naquele instante, eu entrei ao lado do meu pai.
O corredor parecia infinito. O chão de carpete de veludo creme absorvia o som dos passos, mas o eco surdo do meu coração preenchia o silêncio. O vestido era feito de um cetim francês, moldando cada curva do meu corpo com uma precisão cruel, como se quisesse lembrar-me, a cada respiração, que eu estava presa. A saia longa caía em camadas delicadas, pesadas de significado e destino, arrastando-se sobre o carpete de veludo creme que conduzia até o altar. A renda que adornava o corpete, fina e meticulosamente bordada, mordia-me a pele com pequenas agulhas invisíveis.
O véu de tule, preso com grampos delicados no coque impecável, escondia parcialmente os meus olhos verdes marejados, mas não a dor que os inundava. Cada detalhe havia sido escolhido para Isadora e para mim, no entanto, eu estava afogada dentro de um papel que não me pertencia.
“Esse vestido não é meu… esse homem não é meu… essa vida não é minha.”
Respirei fundo, tentando sufocar o pânico que crescia em ondas. Meu coração disparava, batendo tão forte que eu sentia o som pulsando nos ouvidos, abafando a música suave que ecoava pelo salão. O corredor à minha frente parecia interminável, e, no final dele, estava ele.
Lucca Ferraro.
Vestido com um terno de alfaiataria italiana na mais pura lã preta, o corte perfeito ressaltava seus ombros largos e o porte altivo. A gravata de seda escura, o relógio de ouro discreto no pulso e o lenço dobrado no bolso esquerdo completavam a imagem do homem inatingível. Seu cabelo castanho-escuro estava perfeitamente penteado para trás, revelando o rosto de traços fortes e simétricos.
Mas eram os olhos dele que prendiam tudo.Azuis, intensos, frios como gelo.
Olhos que não perdoavam. Olhos que sabiam.
Enquanto caminhava, eu o estudava com o canto dos olhos. Cada detalhe nele parecia pensado, calculado, afiado. O corte do cabelo, os sapatos de couro italianos, o relógio de platina discretamente ajustado no pulso. Lucca era o homem que sempre esteve distante demais para ser alcançado.
E, ainda assim, naquele instante, ele me olhava de um jeito diferente.
Lucca não piscou. Não sorriu. Não demonstrou surpresa, raiva ou choque. Mas eu reconhecia aquele olhar. Eu conhecia as nuances dele, a rigidez na mandíbula, a tensão contida no maxilar, o brilho gélido que queimava em silêncio.
Lucca me conhecia.
Conhecia os detalhes que me diferenciavam de Isadora, mesmo que todos os outros não percebessem. O jeito como eu mordia o lábio inferior. O modo como os dedos tremiam quando segurava o buquê. O passo mais hesitante, o olhar mais tímido.
“Ele sabia que eu não era Isadora.”
E, no entanto, não disse nada. Não moveu um músculo sequer. Apenas olhou-me, deixando que o peso do silêncio caísse sobre mim como uma sentença não declarada.
Fechei os olhos por um instante.
“Por que tem que ser assim?
Isadora sempre teve tudo primeiro, o nome ao lado dele, o destino traçado, a promessa que nunca foi minha. E, ainda assim, ali estava eu, vestida de branco, prestes a me casar com o único homem que fazia o meu coração bater forte demais, rápido demais… dolorosamente demais.
E então, diante do peso dos olhares, dos contratos, das expectativas e do próprio desejo sufocado, eu dei mais um passo. Não por escolha, mas por dever, por medo, por amor.
Porque, apesar de tudo… apesar da dor, da farsa, da traição da irmã, da culpa e do medo… eu o amava. Mesmo sabendo que ele nunca foi feito para mim. Mesmo sabendo que, no coração dele, não existia lugar para ninguém. Mesmo sabendo que eu estava vivendo um destino que nunca foi meu mas que, no fundo, sempre desejei.
O altar estava próximo e o futuro era incerto.
E, entre o dever e o desejo, eu sabia que não havia mais volta.