Capítulo II - Estranhos Acontecimentos

Sofia acordou com uma luz branca em seus olhos e um falatório generalizado ao seu redor. Tentou se mover, mas algo prendia seu braço... Havia uma agulha, um tubo e uma garrafinha de soro com glicose. Ao longe, reconheceu a amiga, gesticulando intensamente, o jeito nervoso de sempre. Ao lado de Milena estava Gabriel, as roupas molhadas cobertas por um cobertor cinza de lã, os olhos verdes arregalados, a expressão de pânico. À direita dos dois, outras duas figuras estranhas que lembrava vagamente de ter visto na praia, assim que abriu os olhos. Dois homens altos, de cabelos longos e claros... Quem eram eles? Teriam sido eles que a resgataram? Sim, porque se não fossem, por qual outra razão estariam ali parados, carrancudos como duas estátuas? Mas se foram eles então... Por que estavam secos?

Aquilo tudo já dava voltas em sua cabeça quando finalmente conseguiu se sentar na maca. Foi quando perceberam que ela havia acordado. Viu a menção que Gabriel e um dos homens fizeram de ir até onde estava, mas só Milena conseguiu entrar na sala.

- Como você está? – Perguntou Milena, segurando o rosto de Sofia e virando-o.

- Bem, um pouco tonta... – Respondeu, enquanto a amiga encostava o dedo em seu nariz e depois o afastava. – O que aconteceu?

- O que aconteceu?! – Perguntou Milena, agitada, até falando um pouco alto, tanto que foi chamada a atenção por uma enfermeira. Depois, voltando a quase sussurrar, porém em um tom enérgico, continuou quase como uma mãe furiosa. – Como assim o que aconteceu? Você se afogou!

- Como assim? Do que está falando?

- Você foi levada pelo mar da praia do Recreio.

- Mas como é que eu fui parar lá?

- Excelente pergunta, e eu gostaria que me respondesse. – Disse Milena cruzando os braços. – Vem cá, por acaso esse seu namorado pervertido te deu alguma coisa?

- Em primeiro lugar o Gabriel não é meu namorado, e não é pervertido... Ao menos não parece. E não, ele não me ofereceu drogas.

- Nem te deu nada estranho para beber ou comer?

- Claro que não! – Disse Sofia, já aumentando o tom de voz.

- Então você simplesmente apagou?

-É... Ou melhor... Acho que foi. Só me lembro de ser tirada da água e de um bando de gente...

-Lembra da água e não sabe como foi parar lá?

-Não! Eu já disse... Eu lembro que eu estava conversando com o Gabriel, e de repente comecei a sentir frio, muito frio... E então tudo começou a girar e a ficar borrado, como se fossem luzes. Eu acho que me aproximei para ver... E então só me lembro de uma sensação estranha, do Gabriel e daqueles dois caras ali. – Disse Sofia apontando para fora da sala.

- Que caras?

- Como que caras? Aqueles dois ali... – Disse Sofia apontando para onde agora só estava Gabriel, cabisbaixo, sentando em uma espécie de sofá preto.

- Mas não tem ninguém ali.

- Bem, eles devem ter saído, mas estavam ali. Dois homens, altos, cabelos claros... Um bem loiro e outro meio ruivo... Estavam na praia quando eu acordei, o loiro até veio comigo na ambulância...

- Sofia, querida, só o Gabriel estava comigo ali fora.

- Mas eu vi! Eu tenho certeza...

- Sofia, tem certeza de que você não bebeu nada?

- Eu já disse que não! Por que insiste nisso?

- Porque não tinha ninguém comigo e com o Gabriel no corredor, e não tinha ninguém na ambulância além dos paramédicos, e foi o Gabriel que pulou como um maluco na água pra tirar você de lá, quem prestou os primeiros socorros e me chamou até aqui. Não tinha nenhum homem loiro ou ruivo.

- Mas eu vi...

- Sofia, você ficou apagada por alguns minutos, é provável que esteja confusa...

- É... Pode ser... Mas parecia tão real...

- Chama-se alucinação, e isso pode acontecer com qualquer um. É uma questão de dose e resistência.

- Eu já lhe disse que não fiz nada de errado.

- E o que fez com ele então? Posso saber?

- Passeamos, conversamos e de repente comecei a ficar tonta e com frio, as coisas começaram a escurecer, girar, e o céu ficou cor de rosa, e então apaguei.

- Está vendo? Se alguém ouvir isso vai dizer que usou alguma coisa ou que tem problemas mentais.

- Milena, eu estou consciente, não sou louca, muito menos drogada. Devo ter tido alguma baixa de pressão, bati com a cabeça, apaguei, e quando acordei tive a impressão de ver duas pessoas que só existem na minha cabeça. É possível, não?

- Sim, mas...

- Então... O que estamos esperando?

- Sua glicose se estabilizar, os exames chegarem aí podemos ir para casa.

- Ótimo! Quanto tempo?

- Talvez fiquemos a noite inteira... – Disse Milena. Sofia fez uma careta, enquanto a amiga continuava, em tom recitativo. – E assim terminamos nossa noite. Tiago estava tão bonito...

- Quem é Tiago?

- O residente gatinho! Falando nisso, o Gabriel também não parece muito feliz...

- Como ele está?

- Bem, alguns arranhões... Você teve a sorte de arranjar um ex-nadador.

- Por que ele não entrou?

- Estamos em uma emergência de hospital, Sofia. Um cabeludo todo molhado e sem um sapato não é uma figura que possa ficar andando por aqui.

- Eu queria falar com ele.

- Meu Deus! Será algum milagre? Sofia quer falar com um rapaz?!

- Mila, eu estou de cama, tomando soro, sofri um acidente e quero agradecer quem me salvou. Justo, não? – Perguntou Sofia, a expressão de quem estava irritada com a brincadeira da amiga, que suspirou, antes de falar.

- Ok! Eu vou ver se ele consegue entrar. Mas é rápido!

Milena saiu para tentar liberar a entrada de Gabriel e deixou Sofia sozinha. Não havia muito para onde olhar além da porta da enfermaria e da cortina, que tentava dar um mínimo de privacidade para alguém que já estava em uma maca, cercado por pessoas estranhas. Mas aquilo ali estava animado demais para uma enfermaria. Do outro lado da cortina, dois homens conversavam.

- Precisamos falar com ela.

- Mas como? Isso aqui está cheio de gente!

- E qual o problema?

- Eu acho que ela ainda não está preparada...

- Escute, eu não vim até aqui para as coisas continuarem como estão... – Dizia um deles, a voz grave bastante alterada.

- Ei! Isso aqui é um hospital! – Resmungou Sofia, sendo surpreendida por Gabriel, os cabelos ainda molhados, assim como as roupas cobertas por um cobertor cinza de lã.

- Eu sei... Por isso que me obrigaram a usar isto. – Disse ele apontando o cobertor.

- Não é você não. Os vizinhos que estavam animados... – Sussurrou ela. - Mas chegue mais perto. Como você está?

- Bem. Mas engraçado... Eu acho que deveria ser eu a fazer essa pergunta, não?

- Então, faça. – Disse Sofia, com o ar blasé de sempre...

- Como está?

- Bem, agora. Ainda um pouco zonza, mas acho que vai passar.

- Que bom! Não sabe o susto que você me deu! Eu virei para comprar o coco e quando voltei, você jpa estava sendo levada pelas ondas! Não deu tempo de nada, eu só corri até lá e pulei. Os bombeiros disseram que eu era maluco, que poderia ter batido em alguma pedra... – Dizia ele, até interromper a narrativa por um espirro.

- E certamente ganhou um resfriado também.

- Eu vou sobreviver... – Dizia ele, quando um ruído como o de alguém limpando a garganta chamou a atenção dos dois. – Ehr, eu acho que isso é um sinal para eu me apressar, não?

- É, eu acho que sim...

- Posso... Posso ver você outro dia? Longe de praias e afins?

- Pode. Pode sim. – Disse ela sorrindo para logo ser surpreendida por um beijo de Gabriel na testa, quando novamente alguém reclamou, desta vez fazendo um comentário:

- Garotinho abusado! – Reclamou a voz estranha. Sofia comentou:

- É melhor ir, antes que reclamem de novo.

- Certo... Fica bem, tá?

- Pode deixar.

- Até mais. – Disse Gabriel, se afastando, de costas, esbarrando em uma enfermeira que reclamou, fazendo Sofia rir. Ele ainda acenou e então, sumiu atrás da porta, deixando novamente Sofia sozinha enquanto o tédio começava a tomar conta daquele cubículo, o sono começando a voltar, ainda mais com o gelo que estava aquela sala...

Então se rendeu ao torpor, para logo se perceber com os pés descalços sobre a relva, o orvalho em suas mãos e braços abertos, enquanto olhava para o alto e distinguia a copa dos pinheiros quase tocando o céu, e de repente ouviu “a voz”. Era uma voz grave, forte, mas que lhe trazia uma alegria tamanha que a fez se virar para ver quem a chamava. De certa forma, era como se já soubesse quem era: um jovem de sorriso encantador, emoldurado por uma rala barba loira que se unia a um bigode igualmente ralo, debaixo de um nariz reto, longo e vigoroso, que formava um belo conjunto com um par de olhos azuis como um céu no amanhecer sem nuvens. Completando a fisionomia, cabelos longos que caíam em cachos até um pouco abaixo dos ombros, aparentemente com uma ou duas tranças naquele emaranhado de fios louro-pálido que quase cobria seu rosto, mas deixava entrever uma fina linha, como uma pequena cicatriz, do lado esquerdo do queixo, nada que o deixasse feio, muito pelo contrário.

Esse jovem trajava algo que parecia um colete grosso de couro preto, de gola alta e comprimento bem longo, até quase os joelhos. Por debaixo, uma camisa de lã meio cinza, meio verde. Completavam o traje uma calça e botas, também de couro preto, alguns braceletes em ambos os braços e uma quantidade razoável de anéis, e para sua surpresa, um punhado de flores brancas que ele parecia trazer para ela, sorridente.

- Edelweiss... – Dizia ele, pegando uma das flores e colocando em seus cabelos, que surpreendentemente, não estavam ruivos, mas loiros, e também caíam em cachos, em uma altura bem maior do que a habitual.

Ela também pegou uma das flores e passou pela ponta do nariz do jovem, descendo pela boca, pelo queixo, enquanto ele abria um sorriso deliciosamente lindo, de uma felicidade tão... Simplória... E quando deu por si, já estavam ambos ajoelhados, sobre a relva agora adornada de várias florzinhas brancas, as mãos entrelaçadas, os olhos fixos um no outro, quando ele novamente falou:

- Minha senhora, que tempos terríveis são esses? O que nos aconteceu?

Uma sombra de tristeza pareceu cobrir aquele rosto, e se apossar, de alguma forma do coração de Sofia, enquanto ela tentava acariciar a face do jovem como se assim amenizasse seu sofrimento.

Mas não chegou a tocá-lo. Ao contrário, despertou, com a vívida sensação de que ele estava ao seu lado, os olhos azuis assustados a lhe encarar, a pele extremamente branca ainda ao alcance de sua mão. Era tudo tão vívido... Mas era apenas uma impressão. Afinal, não havia ninguém ali além de duas enfermeiras em uma mesa, uma TV ligada e Milena dormindo em um sofá no corredor.

Havia sido apenas um sonho. Nada além de mais um dos seus sonhos estranhos no meio da noite, e não deveria se importar com aquilo, porque depois disso o sono sempre voltava e haveria mais sonhos com os quais se ocupar. Mas não foi bem assim naquela noite. Toda vez que fechava os olhos via a mesma cena. E mais pela insistência da imagem e pela falta de sono do que por um desejo franco, começou a pensar sobre aquilo.

Edelweiss... Bem, aquilo era o nome de uma flor, não? Alguma coisa típica de algum país de língua alemã, tinha visto isso no curso... Mas será que ele a comparava com uma florzinha?!

Aí estava algo que nunca havia imaginado, tanto que sequer havia se dado ao trabalho de sonhar com aquilo. Ao menos, até aquele dia... Nunca havia apreciado muito essas pieguices, até porque nunca havia conhecido um único homem que dissesse aquele tipo de coisa a não ser que quisesse impressionar uma mulher. É claro que deveria haver exceções – um homem realmente apaixonado, um poeta, os mocinhos de ficção, categoria na qual o rapaz do sonho poderia se enquadrar muito apropriadamente... Talvez só assim para suportar aquilo, e até se comover um pouco... É claro que a figura que havia falado aquilo ajudava um pouco, o que a fazia se lembrar de Milena, dizendo que sonhar com alguém bonito era melhor do que sonhar com alguém feio. E sinceramente, não havia nada de feio ali... Nem mesmo a marca no canto esquerdo do queixo... Na verdade aquilo parecia tão pequeno, tão inexpressivo perto daqueles olhos de um azul tão específico, dos cabelos naquele misto de tranças e cachos...

Era como se, de alguma maneira, fosse o rosto de alguém conhecido, pelo qual sentia afeição, com toda a sua beleza e suas imperfeições. Só não esperava descobrir de onde ele era conhecido. O detalhe da cicatriz foi o que a fez se lembrar onde já o havia visto, em uma sala com pilares de madeira em chamas, com uma poça de sangue no chão, enquanto ele agonizava.

Um suspiro lhe escapou pela boca, talvez alto demais para ser considerado um suspiro, tanto que as duas enfermeiras foram logo ver do que se tratava, e junto com elas, Milena apareceu de repente.

- O que aconteceu aqui? – Perguntou Milena.

- Ela acordou, está agitada... – Explicava uma das enfermeiras.

- Ela quase se afogou e está em uma enfermaria de emergência. Acho que é razoável, não é? Além disso, lembro de ter ouvido o doutor Guedes dizer para não sedá-la mais.

- Se a senhora se responsabiliza... – Disse a outra enfermeira.

- Eu sou médica, sei o que estou falando. Se quiser, pode chamar o plantonista que eu me entendo com ele. Agora, com licença! – Disse Milena, decididamente puxando a cortina. Depois, suspirou e voltou a falar com a amiga. – Como você está?

- Bem. – Disse Sofia, ansiosa. – Eu quero sair daqui.

- Imagino... Mas falta pouco. Eu já falei com o médico responsável.

- E o que ele disse?

- Que não tem explicação para o que aconteceu. Seus exames estão ótimos, todas as taxas... Bem, a glicose estava realmente baixa, mas nada que seja tão preocupante... O toxicológico deu negativo, então... Nada que justifique.

- Então, o que eu tive?

- Talvez uma baixa de pressão, o que causaria um desmaio comum caso você não tivesse caído na água, e a partir daí, só um milagre explica o que aconteceu com você. Ficou sem respirar algum tempo, poderia ter ficado com alguma seqüela, mas felizmente está perfeita. Graças a Deus e ao Gabriel, que pulou na água como um maluco para te salvar... O que houve? Prestou atenção no que eu disse? Parece tensa...

- Milena... Tem certeza que não tinha mais ninguém além do Gabriel lá?

- Bem, eu não estava lá, mas pelo que ouvi falar, era só o Gabriel. Por quê? Não vai me dizer que vai insistir na história do homem loiro misterioso?

- Eu sonhei com ele, Milena. Agora mesmo. E era um dos caras do outro sonho.

- Que outro sonho?

- O do ritual... Quero dizer... O dos saxões. – Disse Sofia, quase sussurrando.

- E você quer que eu acredite que você viu um saxão em pleno Rio de Janeiro, e que ele pulou na água para te salvar? Será que ele teve tempo de se livrar do machado, da saia e do chapéu de chifre antes de pular na água?

- Eu sei que é absurdo, mas Milena, eu juro que era o mesmo homem!

- Escuta, Sofia... Você ficou apagada muito tempo. As luzes e tudo o que descreveu... Parece que teve uma experiência de quase morte, e é comum que aconteçam alucinações. O que você viu foi o personagem dos seus sonhos.

- Mas por que então eu tenho sonhado com isso? Primeiro, eu quase mato o homem, depois ele me oferece um monte de flores...

- Bem, essa não é minha especialidade, mas pelo pouco que eu me lembro das aulas de psiquiatria, sonhos são compensatórios.

- E o que a morte de um homem que eu nunca vi mais gordo estaria compensando?

- Eu não sei... Você deveria fazer essa pergunta para um analista. Mas se permite a opinião de uma amiga leiga... Acho que esses saxões estão representando o seu interesse por alguém que também gosta muito desse tipo de gente, e que foi até capaz de fazer uma pesquisa sobre isso e te mostrar...

- Eu conheço o Gabriel há dois dias.

- Mas não vê um homem há dois anos! É só trabalho, trabalho, estudo... Talvez você esteja precisando apenas ser um pouquinho mulher. Receber flores, “matar” um homem com os seus encantos... Talvez ache que para isso deveria ser uma pessoa à moda antiga, quase adepta de um amor cortês, mas não percebe que esse homem pode estar na sua frente. Sofia, o Gabriel foi um herói! Ele pode não ser o rei Artur, ou sei lá que herói saxão que existe, mas ele pulou na água para te salvar, e ele só te conhece há dois dias! Ele poderia ter ficado ali, gritando por socorro, mas não! Ele pulou na água sem se preocupar com correnteza, se enxergaria alguma coisa, para salvar uma mulher que só saiu com ele porque eu pedi! Isso o torna tão valoroso quanto qualquer um desses heroizinhos de romance.

- Por que você está dizendo isso? – Perguntou Sofia, desconfiada.

- Por quê? Porque talvez você idealize demais e tenha medo de se decepcionar. Mas pessoas legais e reais estão em toda parte.

- Você montou alguma espécie de fã-clube do Gabriel? Eu posso pegar alguns autógrafos? – Perguntou Sofia, agora irônica.

- Não sou eu quem anda sonhando indiretamente com ele... – Respondeu Milena, também ironicamente, recebendo um olhar torto de Sofia como resposta.

***

Era tarde quando Sofia voltou para casa. A alta demorou um pouco mais do que o previsto e veio com a indicação de três dias de folga, justificada pelo médico como síndrome de burnout – um nome bonito para dizer que estava estourada. Bem, disso Sofia não tinha dúvida, apenas não sabia como explicaria aquilo para Irene, sua editora... Considerando que a revista era um encarte de jornal semanal, três dias de repouso lhe gerariam dois dias enlouquecedores no final da semana, então deveria aproveitar ao máximo possível o repouso por ordens médicas. Mas precisava avisar, e assim que chegou, correu para o computador, não sem protestos da amiga.

- Ah, não! Eu não posso acreditar! – Começou Milena.

- Eu tenho que avisar...

- Hoje é domingo, já é tarde, e você tem que descansar.

- Eu já descansei demais!

- Não o suficiente! Você ganhou três dias, é sinal de que precisa se recuperar.

- Sim senhora... – Resmungou Sofia batendo uma continência.

- Sem graça! Estou fazendo isso para seu próprio bem, mocinha... E também estou exausta. Preciso de um banho, e acho que deveria fazer o mesmo, e depois... Ah, depois eu faço um jantar para a gente.

- Ah, não! Eu mal me recuperei e você já quer me envenenar?! – Brincou Sofia levando as mãos até o pescoço e colocando a língua para fora.

- Há- há... Então vá você para o fogão, queridinha. – Resmungou Milena, e depois continuou. – Frango ou peixe?

- Frango. Por favor, nada que lembre mar agora. – Disse Sofia, entrando no quarto.

Era estranho voltar ali depois do acontecido, como se de alguma forma fosse um lugar novo... Mas estava tudo no lugar de sempre. Abriu a porta do armário para pegar uma roupa para usar depois do banho, quando de repente um vento frio entrou pela janela, derrubando um porta-retrato pequeno que estava sobre a escrivaninha no chão. Pegou o objeto do chão, colocou-o no lugar e fechou a janela. Apesar disso, o ar continuava tão frio... Pensou que o ar-condicionado pudesse, de alguma forma, ter ficado ligado durante todo aquele tempo, o que lhe renderia uma conta de luz absurda, mas levou a mão até a saída de ar e constatou que não. Então, levou a mão à cabeça e constatou que ainda estava quente, então, não deveria desmaiar de novo. Pegou a roupa e entrou no banho. Deixou a água quente cair sobre seus ombros, molhar os seus cabelos. Nem sequer reparou como a água deveria estar quente a não ser quando saiu e sentiu a diferença de temperatura e os vidros embaçados. Vestiu um baby-doll, passou um robe por cima e saiu, para perceber que o vapor também tomava conta do quarto. A diferença de temperatura era grande... Tanto que correu para debaixo da coberta. Pegou o controle remoto e começou a zapear, quando o celular tocou. Era uma sorte que tivesse esquecido a bolsa no carro de Gabriel. Por um instante imaginou o seu smartphone, que sequer havia terminado de pagar, afogado na água do mar. Pegou o aparelho para ver quem era. Suspirou. Não havia surpresa naquilo... Era Gabriel.

- Alô?

- Ah, que bom que você atendeu! – Disse Gabriel. – Desculpe eu ligar, já está tarde e eu sei que deve querer descansar, mas... Eu precisava saber de você.

- Eu estou bem. Graças a você. Obrigada. – Respondeu Sofia.

- Você já me agradeceu.

- Talvez não o suficiente...

- Uhm... Posso ficar feliz com isso?

- Bem... Eu acho que te devo minha vida, não?

- Já sabe o que aconteceu?

- Parece que foi uma baixa de pressão...

- Eu acho que a conversa estava muito... Intensa. – Disse ele frisando a última palavra.

- Não! – Disse Sofia, com pressa de desmentir a idéia de Gabriel, mas como não quisesse perder a chance de continuar aquela conversa em outro momento, tratou logo de continuar. – É claro que era uma história intensa, mas segundo os médicos, foi apenas stress.

- Então, não preciso me sentir culpado? Posso continuar a falar com você sem medo?

- Por favor, Gabriel, não seja ridículo! Seria ótimo falar com você.

- Ehr... Então... Quando quiser...

- Eu tenho três dias de folga.

- Não me diga isso, senão eu pego no seu pé durante esses dias e aí é que você vai querer se jogar no mar mesmo. Isso se não quiser fazer isso comigo.

- Seria mesmo capaz disso? – Perguntou Sofia, coquete.

- Seria! – Respondeu Gabriel com uma convicção ansiosa – Mas eu tenho duas provas...

- Ah, sim, provas... Acho que me lembro o que é isso.

- Não seja tão cruel me lembrando que já terminou a faculdade.

- Sobre nosso assunto favorito?

- Não... – Disse ele rindo. – História contemporânea da América Latina e museologia. – Completou Gabriel, esperando resposta, mas só havia o silêncio. – Sofia? Ainda está aí ou sofreu outro acidente?

- Não, estava apenas segurando a minha ânsia de vômito. Tive o desprazer de passar por algo semelhante à primeira há uns dois anos atrás.

- Bem, eu ainda tenho que passar por essa tortura. Estava até estudando, ou pelo menos tentando quando não resisti e te liguei.

- Muito bem, então está me usando como desculpa para cabular os estudos?

- Não! Mas... Devo admitir que estou sendo completamente egoísta ao ligar para você apenas para ter o prazer de ouvir sua voz...

- Ai, Gabriel... Será que um dia vai parar de me paquerar?

- Depende... Quando você vai me dar uma chance? Eu quase morri para te salvar!

- Creio que terá seu prêmio, senhor herói. Assim que a tortura das provas acabar, e eu descansar um pouco... – Disse ela bocejando.

- E eu devo estar atrapalhando, não? Eu vou desligar...

- Espera! – Disse Sofia, mais afobada do que gostaria de parecer – Eu queria te perguntar uma coisa.

- O quê?

- Além de você... Alguém mais ajudou no salvamento?

- Por quê?

- Eu perguntei pra Mila, mas ela disse que não sabia... Eu tive a impressão de ter alguém te ajudando...

- Bem, tinha muito mais gente quando eu voltei com você de lá, mas eu pulei na água sozinho, e tirei você de lá sozinho também.

- É, deve ter sido impressão mesmo. Como vê, eu ainda estou meio confusa...

- Então é melhor descansar. Quero que esteja bem quando nos encontrarmos. Mas... Ehr... Antes disso... Eu posso ligar para você?

- Pode sim... – Respondeu Sofia, rindo.

- Posso m****r mensagens?

- Pode.

- Posso m****r beijos?

- Pode.

- E pessoalmente?

- Boa noite, Gabriel! – Respondeu Sofia, já sem paciência.

- Então, boa noite, Sofia. Um beijo.

- Outro. – Respondeu Sofia, por educação, só então percebendo que ele não respondia. – Gabriel?

- Estava recebendo o meu beijo.

- Boa noite, então.

- Boa noite. E bons sonhos.

Sofia desligou e riu. Gabriel era definitivamente um conquistador barato. Pior! Um conquistador barato canastrão, mas que foi corajoso o suficiente para pular no mar por sua causa, e aparentemente, sozinho.

Então... Quem era aquela pessoa que ela viu?

Talvez Milena estivesse certa. A experiência de quase morte fez com que as imagens do seu inconsciente viessem à tona e parecessem reais. Por um instante, lamentou por isso, sem saber bem ao certo por que, mas foi o suficiente para suspirar.

Será que a amiga também estaria certa em outro ponto? Será que ela estava carente, e que aquele cara era uma idealização do projeto de sedutor que havia acabado de ligar?

Preferiu não pensar naquilo. Pegou o controle remoto e começou a zapear, já sem muita esperança. Afinal, o que ela esperava ver na TV domingo à noite? Passou por tudo: resumo semanal de notícias, shows de variedades, programas de humor que não tinham nenhum graça, desenhos animados, debates sobre esportes, shows de música extremamente chatos, séries de TV – policiais, hospitalares, supostamente engraçadas mas que precisavam de pessoas rindo quando a piada não tinha a menor graça, paródias de outras séries de TV, comédia de costumes – e finalmente, os filmes. Um era sobre algum problema em um avião. O outro era alguma coisa sobre terror adolescente que terminava causando risos de nervoso devido à produção tosca. Outra emissora, e agora era uma comédia romântica com uma moça loira e um homem com cara de pateta... Já estava se cansando quando finalmente parou. Era um filme épico. Havia um jovem guerreiro que era ferido e curado por uma feiticeira... Tristão e Isolda. Já sabia como a história terminava, mas parecia que era aquilo que precisava ver, ao menos, até a TV começar a apresentar problemas. Estranho, pois o sinal era digital, não costumava ter aquele tipo de interferência, como linhas na imagem... Mexeu em alguns botões, mas não parecia resolver. Até insistiria caso não fosse o cansaço que a fez desmaiar no final do segundo bloco...

***

Primeiro havia a paz, um balanço agradável e gotas de chuva em seu rosto, até que uma voz lhe chamou.

- Acorde, minha senhora.

Sofia abriu os olhos. Estava em um barco, cercada por flores brancas, observada por aquele já conhecido par de olhos azuis. Sentiu longos dedos frios acariciarem seu rosto e depois levarem sua mão até seus lábios frios.

E então o torpor deu lugar a uma estranha força, como se fosse capaz de explodir. Aquilo doía, mas não tinha medo. A paz que havia ali não lhe permitia sentir medo.

Ele a levantou pela mão. O barco estava em um mar de névoa. De repente, o homem lhe entregou um punhado de pedras, cheias de símbolos incrustados, e tomando-a pela outra mão, puxou-a para fora do barco.

Não havia praia. Não havia chão. Apenas as nuvens e o frio, e as gotas de chuva, se transformando em flocos brancos.

E então acordou. Um alívio tomou conta do seu ser. Estava aconchegada em seu quarto, a tímida luz do sol do dia que amanhecia entrando pela janela, e a deliciosa sensação enquanto afagavam seus cabelos...

Afagar? Quem poderia estar fazendo isso?

Virou-se para o outro lado da cama, para se deparar novamente com o dono do par de olhos azuis, passando a mão por seus cabelos.

- O que houve com seus cabelos?... – Perguntava o homem como se falasse consigo mesmo, displicentemente, como se não houvesse nada de errado com o fato dele ser um estranho no quarto de Sofia, até que ela gritasse de pavor.

O jovem deu um salto para trás, retirando a mão, perplexo.

- Pode me ver... – Disse ele constatando algo, enquanto outra figura entrava em cena, vinda não sabia de onde, os cabelos e barba mais longos e acobreados, o olhar como de um caçador, para depois puxar o moço loiro pela gola do que parecia ser um colete para longe dela. Mesmo assim, Sofia recuava cada vez mais, a ponto de cair da cama. Foi quando alcançou um pé de sapato e então, como se aquilo fosse alguma espécie de arma poderosa, ergueu-o de maneira ameaçadora, pronta para atirá-lo no invasor, quando reparou que ele havia sumido.

Ela subiu na cama e se esgueirou para ver o outro lado, mas ele também não estava lá. Muito menos havia saído pela porta, ou corrido para o banheiro, do contrário, ela teria o visto... Para onde então? Só restava a janela. Correu até lá e puxou as cortinas com tanta força que quase trouxe o bastão que as segurava abaixo. Tudo para descobrir que estava trancada.

Sofia deixou seu peso levá-la para a cama novamente, enquanto encarava a vista, estarrecida. O que era aquilo? Só poderia ser um sonho... Ou outra vivência estranha, graças à falta de oxigênio, apenas mais um sinal de que deveria procurar um médico urgentemente, porque a menos que fosse devido a alguma seqüela do acidente, só poderia estar ficando louca. Uma louca que agora mal se agüentava de calor...

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