Capítulo III - Correndo

Apesar do calor absurdo que agora Sofia sentia, chovia. Uma chuva fina, nada que a impedisse de correr no calçadão de Copacabana em plena segunda-feira. Como era reconfortante colocar os headphones, ligar o som e correr na chuva fina, sem se preocupar com os carros no trânsito lento da Avenida Atlântica, sabendo que não havia horário para cumprir naquele dia, sem reuniões de pauta com as críticas avassaladoras de Irene, sua editora, sobre as pauta passadas, as fotos de Carlos e os cinco minutos de atraso graças à fila enorme na frente dos elevadores do prédio...

Porém, Sofia tinha algo pior do que os ataques histéricos de sua chefe para se preocupar, enquanto corria supostamente para relaxar. A verdade é que seu cérebro parecia funcionar ainda mais rápido pensando em uma explicação plausível para as coisas estranhas que aconteciam. E elas estavam acontecendo com certa freqüência nos últimos dias...

Talvez estivesse ficando louca de fato, graças a uma vida estressante de pautas a serem cumpridas, dívidas intermináveis e toda uma história pregressa que já teria levado qualquer ser humano normal às portas de um psiquiatra. Mas mesmo que estivesse ficando louca, alguma parte sua ainda permanecia sã a ponto de não conseguir negar o caráter bizarro dos últimos acontecimentos.

Em menos de três dias ela já havia quase morrido afogada, sido salva por um admirador que surgiu do nada, impertinente e que deveria ser igualmente louco. Afinal, tinha aquela história de que a conhecia havia uns dois anos e que finalmente conseguia falar com ela, e, não contente com isso, a maneira como impôs o seu telefone era no mínimo insana. E para piorar, ainda começou com uma história sobre saxões que realmente deve tê-la impressionado, a ponto de sonhar com duas dessas criaturas que não pareciam estar contentes de aparecerem apenas em seus sonhos, surgindo agora também em alucinações.

Sim. Porque como poderia explicar que houvesse um homem no seu quarto que desaparecesse do nada? Um homem que ela jurava ter visto na praia e no hospital e que era, na verdade, uma personagem dos seus sonhos. Sonhos esses recorrentes.

Começou a se lembrar das aulas de psicologia durante a faculdade. Nunca entendeu por que tinha que aprender que para Freud havia consciente, pré-consciente e inconsciente e que os sonhos surgiam na terra desse último, que ela imaginava como a uma espécie de aterro sanitário mental, para onde iam todos os restos de suas atividades diurnas e tudo aquilo que era melhor ser jogado para debaixo do tapete da consciência...

Pois bem, mas as lembranças das explicações delirantes daquele professor grosseiro de boina e peruca não pareciam ajudar muito. Afinal, se esses homens faziam parte dos seus restos diurnos, então de alguma forma eles eram reais, e eram parte da poeira debaixo do tapete...

Então... Que poeira!

Bem, também havia a teoria de Milena, para explicar que a falta de um namorado e a proximidade de Gabriel fariam com que sonhasse com aquele colosso loiro de olhos azuis. Só havia uma falha: exceto pelo fato de ter pensado que aqueles dois homens poderiam ser saxões, não havia nada que os relacionasse a Gabriel. A bem da verdade, os dois homens poderiam ser parte de alguma banda de rock estrangeira. Ou talvez figurantes, ou até mesmo atores, de algum filme épico obscuro...

Apesar de parecer surreal, era muito mais tranqüilizador pensar que havia tirado aqueles homens de algum desses dois lugares, e então começou a vasculhar sua mente. Como se fossem arquivos de computador, cada pastinha de filme, banda... Mas nada. Pelo contrário, quanto mais tentava atribuir aqueles rostos a alguém conhecido, mais aqueles olhos azuis de um tom tão característico lhe davam a certeza de serem únicos. E enquanto caminhava pela areia da praia teve certeza de que, por mais que aquilo lhe assustasse, ela desejava que fossem reais.

Mas não havia esse homem com flores, barcos no céu e, felizmente, morrendo na sua frente. E foi com o alívio de pensar que era apenas um sonho e que deveria estar se preocupando demais com isso, a ponto de ficar vendo essa criatura, que se levantou da areia da praia, atravessou a avenida e subiu a rua para ir para casa.

Era uma rua movimentada, muitas galerias e lojinhas, prédios comerciais e uma multidão de pessoas para cima e para baixo, algumas indo para a praia, outras engravatadas, correndo contra o tempo. E no meio daquela confusão, não demorou muito para sentir uma sensação peculiar.

Havia alguém atrás dela.

Bem, isso era óbvio. Havia alguém atrás, na frente, dos lados... Mas havia alguém seguindo os seus passos. Virou e olhou para trás. Um grupo de inofensivas estudantes soltando gritinhos por um pôster de algum artista da moda, do qual ela teria a obrigação de saber o nome por motivos de trabalho, mas que no momento ela esquecido completamente. Riu, e andou um pouco mais adiante, mas a sensação continuava, e como aquilo não lhe agradasse, entrou em uma banca de jornal. Folheou algumas revistas, sempre de olho em quem passava do lado de fora. Nada... Olhou ainda para os dois lados antes de sair. Mais um quarteirão e então parou na frente de uma lojinha que costumava freqüentar havia tempos atrás – “Fadas e Anjos”. Parou para ver a vitrine cheia de sinos de ventos, apanhadores de sonhos, cartas de tarô, pedras, imagens, quando de repente aquela sensação veio novamente, só que dessa vez, foi muito mais do que uma simples sensação. Tinha certeza de ter visto, pelo reflexo da vitrine, algo como um vulto, e quando se voltou para ver o que era, percebeu que se tratavam de duas pessoas, apesar da multidão que passava parecer encobrir os dois rostos, apesar de uma forte sensação lhe dizer no íntimo quem eram. Foi quando ouviu uma voz.

- Sofia! – Chamou a vendedora da loja, sem compreender por que Sofia quase teve um ataque cardíaco quando ouviu seu nome. – Quanto tempo! Está tudo bem?...

- Sim. Está... Tudo bem. Pois é, faz tempo que não venho aqui, não?

- É, bastante tempo. Por que você não entra? Chegaram uns incensos novos, daquela marca que você gostava. Coisa boa, faz você se sentir na Índia mesmo...

- Desculpa? – Disse Sofia, que não havia escutado praticamente nada do que a vendedora havia dito, ainda tentando enxergar alguma coisa pelo vidro da vitrine.

- Ehr, Sofia, me desculpe, mas você me parece estranha. Está tudo bem? Precisa de ajuda?

- Na verdade... Eu tenho que admitir que coisas estranhas estão acontecendo. Sonhos estranhos, sensações estranhas...

- Você já fez alguma coisa? Digo, você costumava jogar. Consultou alguma coisa? – Perguntou a vendedora, mas sem que Sofia prestasse muita atenção, enquanto fuxicava alguns incensos apenas para disfarçar, já que continuava olhando para a rua pelo vidro da vitrine. – Está me ouvindo? – Continuou a moça. – Você tem que fazer uma limpeza, passar um incenso, tomar um banho...

- Banho? – Perguntou Sofia, surpresa.

- Sofia, você pode estar com um encosto sabia? Pode estar sendo assombrada!

- Não! Não estou não.

A certeza de Sofia se justificava. Lá, do outro lado da rua, estavam as duas figuras, as mesmas dos seus sonhos e alucinações, parados como duas árvores, as roupas estranhíssimas para o calor que fazia naquela cidade, cortes de cabelo sem nexo algum e a barba de um parecia enorme... Isso sem contar as expressões, entre o espanto e a curiosidade. Não era possível haver no mundo outra dupla mais non sense do que aqueles dois, parados ali, parecendo apenas esperar que ela saísse da loja, como se não considerassem que ela estivesse olhando para eles.

Pois bem, essa era a hora. A menos que eles fossem alguma espécie de “ninjas”, capazes de sumir do seu quarto e conseguir segui-la até lá praticamente sem serem notados, ela iria alcançá-los e tirar essa história a limpo. De uma vez por todas.

Sofia deixou a vendedora falando sozinha, suas tolices sobre oráculos e banhos, e abriu a porta em um ímpeto que pareceu surpreender os dois, que pareciam petrificados, sem saber se corriam ou se avançavam, olhando para todos os lados. O de barba longa e cabelos acobreados parecia esboçar alguma reação, antes do outro, que apenas continuava a olhar para ela, enquanto ela fez menção de atravessar a rua, o amigo o carregando pelo colarinho.

E então, os dois correram. E Sofia foi atrás.

Definitivamente, aqueles homens tinham alguma espécie de treinamento especial. Enquanto Sofia tinha que se desviar de um e outro pedestre, aqueles dois homens pareciam... Voar. Mal pareciam encostar em alguém, e se o faziam , ninguém parecia notar. Era como se seus pés não tocassem o chão. Por muito pouco um carro não os pegou, mas não houve nenhuma freada brusca, que seria característica de um quase atropelamento. O maior estrago que conseguiram fazer foi derrubar uma cadeira de um barzinho na rua, e mesmo assim, sem que sequer esbarrassem nela, como se caísse com uma ventania. E o mais estranho era a expressão das pessoas ao vê-la correr, como se não compreendessem o motivo dela estar correndo. Qual era o problema? Havia dois caras com um visual super estranho correndo como dois astros de filme de kung fu na frente dela e era ela que ouvia as piadinhas?

Já estava a ponto de cair quando finalmente viu onde eles entraram. Um hotel, cinco estrelas, várias bandeirinhas na fachada, carros finos na porta e rapazes uniformizados para levar a bagagem dos hóspedes. O segurança fez questão de segura-la pelo braço.

- Ei, ei, ei! Espera aí, mocinha! Aonde pensa que vai? – Perguntou.

- Desculpa, mas eu preciso falar com aqueles dois homens que entraram aqui agora. – Respondeu Sofia, ofegante, lutando para se soltar das mãos do segurança.

- Dois homens?

- Sim! – Respondeu Sofia, ainda ofegante. – Dois homens altos, cabelos longos, roupa de couro...

- A moça deve estar enganada, ninguém assim entrou aqui.

- Como não? Eu vi! Olha, eu sei que parece estranho, que você é pago para proteger os hospedes do hotel, mas esses caras estiveram na minha casa, um deles... Escuta, eu não vou fazer mal a eles, eu falo com eles na sua frente, na frente da polícia se quiser, mas chama os dois aqui. Pode me revistar, vai ver que eu não sou nenhuma louca que faria mal a alguém, mas... Só pede para interfonarem para o quarto deles...

- Desculpa moça, mas não vai dar porque não entrou ninguém assim aqui. Se quiser, pode voltar aqui depois, quando estiver mais calma e pedir para interfonar, mas não tem ninguém assim aqui.

- Mas...

- Moça... – O segurança falou, em tom ameaçador.

- Tudo bem, eu volto mais tarde. – Disse Sofia, tentando parecer durona. – Mas se nesse ínterim algum deles entrar no meu quarto novamente e fizer alguma coisa comigo eu juro que processo esse hotel, e você também.

- Como quiser, senhorita. Tenha a bondade.

Sofia soltou um grunhido baixo de raiva e voltou para casa com a pior coisa que poderia ter conseguido. Um não.

Mas por outro lado, sabia que aqueles homens não eram fruto apenas dos seus sonhos. Havia visto os dois covardes em plena luz do dia, sem a desculpa de estar acordando ou ter acabado de sofrer um acidente. Mas alguns pontos continuavam sem explicação: o que eles faziam na sua casa, como eles conseguiram sair de lá, como eles conseguiam correr daquela maneira e pior, por que só ela os via? Eles passaram na frente do segurança, que disse não ter ninguém assim lá. Tudo bem, ele era pago para fazer a segurança do hotel, mas e Milena? Eles estiveram do seu lado no hospital... E Gabriel? Estavam do seu lado na praia, na própria água... E as pessoas que reclamavam enquanto ela corria, chamando-a de louca questionando-se do que ela corria. Como do quê? Atrás do quê, seria a pergunta correta.

Pensava nisso quando chegou em casa, e estranhamente cuidou para que não estivesse sendo seguida. Assim que chegou, trancou a porta, chave de baixo, chave de cima e o trinco. Só então lembrou que não havia verificado o restante da casa, afinal, se haviam conseguido entrar pela manhã ou de madrugada, poderiam muito bem ter feito o mesmo enquanto ela voltava para casa. Voltou, abriu o trinco, uma fechadura, e na outra deixou a chave engatilhada caso precisasse fugir, e então, pé ante pé, o mais silenciosamente que podia, foi caminhando pelos cômodos. Primeiro, a cozinha, a ária de serviço... Aproveitou e pegou uma faca no cepo em forma de boneco (uma amostra do mau gosto sádico da amiga...), era sem dúvida melhor que um all star surrado. Enfiou o pé na porta do lavabo, no maior estilo tira de filme policial, para não encontrar nada. A sala parecia livre. Restavam os dois quartos. Passou pela porta do seu, deu uma rápida olhada, mas achou por bem ir até o de Milena primeiro. Lá não encontrou nada, além da já conhecida montanha de livros da amiga. Prosseguiu então até o seu... Começou pelo banheiro. Empurrou a cortina do box com estampa de gatinhos pretos. Nada. Atrás da cama, dentro do armário, atrás da cortina... Nada.

Mas havia um lugar que havia esquecido – a varanda da sala.

Correu até lá, estava trancada. Não passava de uma pequena extensão quadrangular, mal cabiam ela e Milena, quanto mais dois homenzarrões daqueles, mas com toda vontade e nenhuma noção da realidade, abriu a porta, a faca em punho, como se surpreendesse alguém. Conseguiu foi assustar a vizinha, uma velhinha que nunca foi com sua cara, e que agora, ela tinha certeza, faria queixa dela para a síndica, dizendo no mínimo que ela era uma degenerada. Tentou amenizar a situação.

- Ehr... Estou... Ensaiando. Uma peça de teatro. “Morre, danado!” – Disse Sofia, mas a velhinha se agarrou ao pequinês de estimação e saiu, olhos esbugalhados, mãos trêmulas, e entrou em seu apartamento, com o detalhe sórdido do som do trinco da porta da varanda ecoando nos ouvidos de Sofia. Foi então que percebeu que deveria fazer o mesmo, e assim que entrou, deixou o peso de seu corpo leva-la ao chão, para só depois se assustar com a faca que ainda segurava e joga-la no chão.

Sofia levou as mãos à cabeça, pensando que estava definitivamente ficando louca. Só isso para explicar. Quem se importava com o fato deles serem reais ou apenas fruto da sua imaginação, aquilo já era demais, e dessa vez esse homem poderia aparecer com todas as flores, pedras preciosas ou ouro em seus sonhos, que pouco lhe importava, nascendo ou morrendo... Tinha que tira-lo de sua cabeça.

Mas o que aconteceu foi justamente o contrário. As pedrinhas cor de rosa do sonho... Sofia já as conhecia! Correu para o quarto, abriu o armário e começou a revirá-lo, atrás de uma certa caixa de madeira, enfeitada com vários recortes de revista com bruxinhas, morceguinhos, gatos pretos, sol, lua, estrelas... Lá estava ela. Socada em um canto escuro do armário, sua antiga caixa de itens místicos. Puxou a caixa, sentou em cima da cama e abriu-a. Primeiro, um pano lilás com estrelinhas coloridas saiu de lá. Depois uma série de cartas de tarô, baralho cigano, caixas de incenso vencidas, cadernos com anotações de simpatias e significados de sonhos, e lá no fundo estava ele: o seu antigo jogo de runas. Apenas vinte e cinco pedrinhas cor de rosa, marcadas com símbolos, herança de uma adolescência repleta de delírios místicos. Era praticamente a vidente de todo o grupo de amigas. Nunca havia feito um curso, mas curiosamente conseguia decifrar jogos de tarô e principalmente de runas muito bem. Gostava de justificar essa faculdade com um sonho, em que entrava em uma gruta e via no chão aquelas pedrinhas, e desde então sabia o nome e o significado de cada uma delas. Mas então, um dia elas foram relegadas a um canto escuro do armário, assim como as amigas que se consultavam com ela sumiram, e o prazer de saber do futuro se extinguiu com a maldição de Cassandra, que assola qualquer bom vidente quando descobre que pode prever o futuro, mas não pode mudá-lo...

Mas olhar para aquelas pedrinhas lhe fez tanto bem... Estendeu o paninho lilás de estrelinhas coloridas sobre a cama e as colocou em cima. Lembravam uma fase tão feliz de sua vida... E agora, tudo parecia fazer sentido, afinal, as runas apareciam em um sonho, nada mais natural que voltassem em um sonho, representando tudo o que ela havia deixado para trás, justamente quando uma fase nova se iniciava, com uma carreira, um rapaz bonitinho...

Colocou as velinhas nos castiçais, acendeu o incenso e colocou os cristais também sobre a toalha lilás e se concentrou. Fazia tanto tempo... Será que ainda se lembrava?...

Respirou fundo e começou o ritual, o que lhe causou um arrepio. Novamente aquele frio parecia tomar conta dela. Mas não ia deixar aquilo lhe atrapalhar. Concentrou-se ainda mais no que desejava saber e então pronunciou sua pergunta:

- Que mensagem têm para mim?

Fechou os olhos e deixou sua mão correr sobre as pedras. Tirou uma, duas, três, escolhidas como se suas mãos fossem guiadas por uma força maior. Analisou.

- Presente... Benção... Malogro? Um presente pode ser uma benção, mas... Malogro? – Pensava Sofia, quando de repente um pensamento lhe veio à cabeça. – Alguma coisa deu errado. Alguma coisa em relação aos deuses deu errado. Mas o quê? – Perguntou ela, mexendo as pedras novamente enquanto se concentrava em sua pergunta. Tirou novamente três pedras. – Tyr... Tyr é um deus guerreiro, vitorioso... Novamente o malogro e... Uma força destrutiva, sem chances de reagir? Não faz sentido... – Pensava Sofia novamente, quando a resposta vinha, novamente parecendo enviada pelos deuses. – Guerreiros! Guerreiros amaldiçoados!

- Wotan poderoso! Ela não perdeu o dom! – Disse uma voz grave, a esta altura já conhecida de Sofia, que se surpreendeu ao olhar para o lado e se deparar novamente com o homem loiro, de olhos azuis e cicatriz no queixo, ao lado do outro, ruivo. Ambos tão assustados quanto ela, quando Sofia finalmente falou.

- Quem são vocês? – Perguntou Sofia, tentando não gaguejar.

- Também pode me ouvir! Wotan poderoso! Eu pensei que...

- Quem é você? – Sofia repetiu a pergunta, agora o tom histérico.

- Edelweiss... Não se lembra de mim? – Perguntou ele, tentando se aproximar, a expressão entre a alegria e o medo.

- Não encoste em mim! – Dizia a moça entre os dentes, pausadamente, tentando dar ênfase a cada palavra. – Diga logo quem são vocês, de onde vieram e como entraram em minha casa!

- Entramos com a senhora. – Respondeu o ruivo, como se fosse óbvio.

- Mas esta não é sua casa. Sabe que não é. – Comentou o loiro. – O que aconteceu? O que fizeram com seus cabelos? E que roupas são essas? Que local é esse? – Perguntava ele enquanto ela se afastava cada vez mais.

Mas finalmente ele tocou o braço de Sofia e um choque frio e cortante transpassou o braço e o peito da moça, e todas as cores desapareceram no escuro.

***

Sofia abriu os olhos deixando escapar um grito quando alguém tocou seu braço.

- Calma, Sofia! Sou eu, Milena. – Disse a amiga, recebendo um abraço de Sofia. – Pelo amor de Deus, o que aconteceu? Você está fria como um bloco de gelo... Aconteceu, não? Aconteceu de novo?

- Milena, eu vi.

- Viu o quê?

- Os dois caras loiros. Se bem que um não é bem loiro, é ruivo e tem uma barba enorme e o outro tem um cabelo com umas trancinhas e uma cicatriz no queixo...

- Do que você está falando?

- Dos caras que eu vi no hospital, na praia, nos meus sonhos...

- De novo isso! Sofia, eu já disse que não havia homem nenhum...

- Havia! – Interrompeu Sofia. – Ou melhor, há, dois, e eu os vi hoje de manhã aqui em casa, na rua, e aqui em casa de novo... Eu estava jogando...

- Para quê? Para colocar fogo na casa novamente, como você quase fez da última vez? Sim, porque você fica aí vendo essas coisas e desmaia cercada por um monte de velas... Tem noção do risco que correu?

- Claro! Tinha dois caras estranhos aqui em casa, dois caras que estão me seguindo, entrando nos meus sonhos, na minha casa, na minha vida!

- Então para onde eles foram? A porta estava trancada, o porteiro disse que ninguém subiu com você e estaria tudo em ordem se não fosse você assustar a dona Cotinha, primeiro com uma faca na mão, depois com gritos.

- Ah! Então ela ouviu? Tudo?

- Ela ouviu os seus gritos e pensou que você estivesse em perigo, mas pelo visto...

- Pelo visto...

- Sofia, eu acho que... Eu acho que você não está legal. Sabe, existem certos quadros neurológicos...

- Eu não estou doente, Mila.

- Então você está o quê? Diz! Você vê gente que não existe, isso não é normal!

- E você acha que eu vejo isso como algo normal? Tem dois caras me perseguindo e ninguém mais os vê!

- Então, sobre o que estamos discutindo?

- Sobre o fato de ninguém acreditar em mim.

- Eu acredito. Se você diz que vê dois caras, tudo bem, então você vê dois caras. Mas se ninguém mais vê, isso indica que o problema é com você. Se eles te deixam nervosa a ponto de desmaiar, de fazer coisas que não fazia há tempos, não importa. Importa que só você vê, e isso nunca é um bom sinal.

- Então acha que eu estou louca?

- Não. Mas quero que você se alimente direito, que durma bem, e que vá ao hospital comigo amanhã de manhã. E que pare com essas bobagens. – Disse Milena, apontando para as velas e para as pedrinhas em cima da cama.

***

Sofia fez exatamente tudo o que Milena pediu, como uma boa menina. Comeu um lanche reforçado com um suco de maracujá e um sanduíche com peito de peru, não ligou o computador e foi para o quarto mais cedo do que costumava ir quando tinha oito anos de idade. Deixou a luz do quarto acesa e a TV ligada, o que não fazia desde os cinco...

Aquilo era ridículo, mas o que poderia fazer? Ficar deitada, em um quarto escuro esperando um homem surgir do nada e falar com ela? Não, obrigada. Era melhor ficar na companhia dos artistas da novela até cair no sono, fosse pela chatice do folhetim, fosse pelo maracujá.

Mas estava ainda bem acordada quando, da porta do banheiro viu surgir a figura do moço loiro. Talvez o susto tenha traído a sua intenção de fingir que não o havia visto.

- Eu a assustei? – Perguntou ele, a expressão receosa, mas Sofia preferiu manter o seu plano de fingir que não o via, virando para o lado. – Eu sei que pode me ver e ouvir... Eu... Eu a machuquei? Mais cedo... Não era a minha intenção. Na verdade, eu nem sei o que ocorreu... Senhora, pode me dizer? Será que foram as runas? Senhora?... – Disse ele, caminhando para o outro lado. – Eu sei que me vê, por que não fala comigo?

- Você não é real! – Disse ela, tampando a cabeça com o travesseiro.

- Do que está falando?

- É um sonho, não se pode falar com sonhos... – Dizia ela, como se tentasse convencer a si mesma.

- Senhora, não é mais um sonho. – Disse ele, serenamente, aproximando a mão na de Sofia, que rapidamente a retirou de perto, sentando-se na cama e aumentando o som da TV. Ele continuou, ajoelhando-se. – Eu estou aqui.

- Pois não deveria estar. – Resmungou Sofia.

- Por quê? Algum problema? Diga o que é! – Disse ele, olhando para todos os lados como tentando descobrir alguma armação.

- Adivinha! Eu não consigo dormir com você andando pelo meu quarto.

- Se quiser posso permanecer quieto.

- Não entende? Não pode ficar aqui. Não pode ficar na minha cabeça, nos meus sonhos, seja lá onde for! Sai daqui!

- Senhora, eu não compreendo... – Disse ele, o olhar triste enquanto tentava se aproximar novamente. – Edelweiss?... – Chamou, mas ela levou o travesseiro até a cabeça e tampou os ouvidos.

- É apenas um sonho. É apenas um sonho...

- Vejo que a ofendi. Irei me retirar, então. Boa noite, minha senhora. Tenha bons sonhos.

- Ótimos, desde que não esteja neles!

- Até amanhã. – Disse o moço, mas tudo o que conseguiu como resposta foi o travesseiro sobre o rosto de Sofia.

***

O dia seguinte chegou, e com ele, a consulta.

Milena esperava Sofia já com as chaves na mão, enquanto a amiga engolia um suco de laranja sob o olhar atento da médica. Era um olhar de pena, como quem lamentasse o fato de Sofia estar louca.

E talvez estivesse mesmo, pensava Sofia. E o medo de que aquilo realmente estivesse acontecendo levou-a a desejar, ao menos por um instante, que aquela figura no seu quarto fosse real, que batesse na porta e se apresentasse formalmente como qualquer ser humano normal faria, e a livrasse de uma consulta com um psiquiatra. Bem, Milena jurou que era um neurologista, professor da faculdade e tudo mais, mas de qualquer forma, ainda se sentia como se estivesse indo receber um rótulo de incapaz...

Mas ninguém apareceu. E a falta de controle sobre aquilo só lhe deixava mais nervosa. Mas a possibilidade de que aqueles dois fossem figuras reais, capazes de surgirem do nada, correrem como se voassem, entrarem no seu quarto sabia-se lá vindos de onde, e que provavelmente eram vistos por todo mundo, embora continuassem a negar que aquilo era verdade, lhe parecia um enorme absurdo. Ponto para o que lhe restava de pensamento lógico, que lhe dizia que havia algo de muito estranho ali. Porque não era real. Não poderia ser real. Mas é como se ao mesmo tempo, fosse. E nada poderia ser assim.

E foi com esse pensamento que acompanhou resignadamente Milena até a estação de metrô, onde pegaram a composição rumo à Tijuca, onde ficava o hospital em que Milena fazia residência. Justamente em neurologia. Nunca entendeu aquela escolha da amiga, até o dia em que ouviu algum colega dela dizer que os médicos pensam que são deuses e os neurocirurgiões têm certeza. Então, estava explicado, a se julgar pelo pequeno ego da amiga, estar no nível de deusa estava de bom tamanho...

Sua idéia ficou ainda mais forte quando entrou no hospital, acompanhada de Milena, que se tivesse uma cauda estaria certamente aberta. Ainda mais quando encontrava algum outro doutor importante. Sabia que eram importantes quando os pacientes e demais funcionários pareciam demonstrar um temor respeitoso por eles. Como se fosse um deus, de fato. Ficou imaginando o que diria na frente daquela figura vestida de branco e com poderes supremos... Talvez algo como “desculpe, senhor, eu pequei, eu vejo gente que não existe! Absolva-me!”. Soava um tanto operístico, mas parecia combinar com a teatralidade do ritualismo ali presente. E o pior é que as pessoas saíam da sala do médico como se realmente tivessem recebido uma graça... Provavelmente receitas especiais para comprar seus remédios de venda controlada. Se eles lhe trouxessem paz de verdade e nunca mais visse aqueles dois, realmente seria uma coisa muito boa, afinal não pareceria mais uma louca.

Mentalizava que tudo ia se resolver bem. Ela entraria na sala, contaria o acontecido, o médico lhe passaria um remédio mágico que faria aquelas duas criaturas sumirem, e depois de um tempo ele não seria mais necessário, e tudo voltaria a mais tranqüila paz... Foi quando ouviu uma voz que já podia ser considerada conhecida.

- Que lugar é esse? O que faz aqui? – Perguntou o jovem loiro.

- Eu não acredito! – Resmungou Sofia entre os dentes.

- Quem é esse homem? E por que ele se veste assim? É alguém importante para que as pessoas lhe agradeçam tanto? – Perguntou o moço olhando para o médico se despedindo de um paciente, e depois, para Sofia. – Veio pedir alguma coisa a ele?

- Para você sumir da minha vida. – Respondeu Sofia, quase sussurrando.

- O quê?! – Perguntou o jovem, perplexo. – Deseja... Deseja que eu suma? Por quê? O que eu fiz para que não seja digno de sua presença, para que me trate como um?... – Perguntava ele quando o nome de Sofia foi chamado e ela se levantou sem ao menos olhar para ele. – Ei, espere! Senhora! - O rapaz começou a gritar e ia em direção a porta, mas o ruivo tratou logo de segurá-lo enquanto ele se debatia, tentando se soltar, ou ao menos tocar em Sofia e impedi-la, mas tudo o que conseguiu foi ficar com o braço cheio de braceletes esticado, a mão cheia de anéis aberta, enquanto quase sussurrava ao vê-la entrar – Senhora, não faça isso...

Foram as últimas palavras que Sofia ouviu antes do médico fechar a porta, o olhar bondoso e o sorriso amistoso de quem não parecia ter visto nada daquilo. E então teve certeza de que precisava estar ali.

Sorriu de volta para o médico, um homem baixo, extremamente pálido e de cabelos pretos já ralos, que estendia a mão com dedos finos e longos apontando a cadeira.

- Pode se sentar. – Disse o homem.

- Obrigada. – Respondeu Sofia, sentando-se diante dele, sem ter a menor noção do que ia dizer.

- Então... Sofia, não? O que te trouxe aqui?

- A Milena não falou?

- Ah, sim, você que é a amiga da Milena... Bem, ela me falou algumas coisas, mas eu prefiro ouvir de você. O que está acontecendo, de fato?

- Ehr... Eu desmaiei. Duas vezes. Em uma delas, a primeira, eu caí na água, quase morri afogada.

- E como são esses desmaios?

- Como devem ser todos os desmaios. – Respondeu Sofia, aquilo deveria ser óbvio.

- Sim, mas o que estou querendo saber é como foi para você. Sentiu algo de estranho antes? Alguma sensação?

- Ah, sim... O frio. O frio é o mais... – gesticulava ela – notório. Mas tem o formigamento, as cores. Mas o frio é o mais freqüente. Depois é que vem o desmaio, geralmente...

- Geralmente?

- É. Eu sinto esse frio, mas nem sempre desmaio. Acho que o formigamento é que vem antes dos desmaios, de fato.

- E... Desde quando sente isso?

- Desde sábado. Foi quando desmaiei pela primeira vez.

- Nunca havia desmaiado antes?

- Ah, quando eu era pequena,deveria ter uns treze ou quatorze anos quando tive um apagão desses.

- E sentiu esse frio, esse formigamento?

- Não me lembro... Só me lembro de ter subido em uma escada para pegar um livro no alto da estante e sentei no último degrau da escada. Comecei a ler e de repente caí.

- E você fez algum exame?

- Fiz, mas não acusou nada. Disseram que deveria ser uma baixa de pressão ou açúcar.

- E dessa última vez? Lembra de terem medido a sua pressão? Fizeram algum exame?

- Ah, sim. Está tudo aqui. – Disse Sofia, já entediada, tirando os laudos de dentro da bolsa e entregando para o médico, que folheou rapidamente.

- É, parece tudo bem...

- Que bom! Então eu posso ir?

- Você tem algo a mais para me contar? Algo além do frio e do choque?

- Como o quê?

- Você vê alguma coisa diferente? Ouve algo diferente?

- Quer saber se eu ouço vozes, se vejo coisas que os outros não vêem, não?

- E você vê? – Perguntou o médico. É claro que ele ia perguntar, na verdade estava demorando até demais para chegar naquela parte. E o pior é que ele fazia aquilo com uma tranqüilidade, como se não fosse nada demais. E como se aquilo não bastasse, talvez porque tivesse ficado muito nervosa com aquela pergunta, ou porque Milena já deveria ter falado alguma coisa, ele foi mais direto ainda. – O que você vê?

- Dois homens bem altos e claros, têm cabelos longos, barba, olhos azuis, roupas de couro e peles. Parecem alemães, vikings, alguma coisa assim.

- Você é descendente de alemães, não? Sofia Schultz?

- Meu pai é alemão, mas nunca fui do gênero que curte essas coisas. Quero dizer, é legal ler histórias, ver filmes, aprender a língua, mas... Sempre sob controle.

- Não tenho dúvidas... Mas quando começou a ver esses homens?

- Sábado... Sim, de sexta pra sábado, eu tive um sonho. Um colega me falou sobre saxões. Devo ter ficado impressionada e sonhei.

- Muito impressionada, pelo visto... – Comentou o médico, em uma ironia que Sofia não gostou. – Pode vê-los agora?

- Não. – Respondeu demonstrando sua raiva o máximo que pôde, até se lembrar do moço loiro apavorado na sala de espera.

- Quando os vê é que surge o frio e tem dos desmaios.

- Sim. – Aquilo já estava deixando Sofia irritada.

- Bem, eu vou pedir um exame e vejamos o que acontece. O laudo deve demorar um pouco para ficar pronto, então eu vou te passar uns remedinhos nesse tempo. Nada demais, apenas para te deixar mais relaxada, ok?

Sofia pegou os papéis com o encaminhamento para o exame e a receita das mãos do médico e saiu, agradecendo apenas com um sorriso amarelo, claramente demonstrando a sua irritação com tudo aquilo, e então saiu da sala, para se deparar com a figura ruiva esperando atrás da porta com uma expressão de poucos amigos, enquanto o loiro estava encostado em uma pilastra cinza, a expressão ressabiada, como se esperasse qualquer coisa saindo daquela sala. E como Sofia passasse por ele como se ele de fato ele tivesse sumido, apressou-se em segui-la enquanto ela avançava pelo corredor, o que a incomodou e a fez voltar-se para trás. Só então ele sorriu, e disse convencido:

- Como você pode ver, o feiticeiro branco não conseguiu me m****r embora.

Mas Sofia não respondeu e simplesmente parou em frente a um balcão, onde entregou os papeis. Logo depois surgiu uma enfermeira que abriu uma porta.

- Ei! Onde você vai agora? – Perguntou o moço, entrando junto com ela e a indefectível escolta ruiva em seu encalço na sala de exames. Nela havia uma maca e uma mesa com uma caixa de onde saiam vários fios que começaram a ser colados na cabeça de Sofia.

- O quê?... O que é isso? O que vão fazer com a senhora? – Perguntava o moço loiro agora visivelmente preocupado, enquanto a enfermeira explicava.

- É um exame bem simples. Não precisa fazer nada, apenas ficar relaxada enquanto esses sensores vão captar a sua atividade cerebral.

- O que essa mulher diz que eu não compreendo? – Ainda insistia o moço loiro, agora ao seu lado, enquanto Sofia tentava se concentrar, repetindo para si mesma que aquilo era fruto de sua imaginação. Uma persistente e chata imaginação, que de quebra tinha os olhos mais bonitos que já tinha visto. E expressivos também, deixando transparecer todo o pavor e irritação dele, enquanto via aqueles fios todos colados na cabeça de Sofia como se ela fosse um monstro. – Senhora... Senhora, não feche os olhos. Fale comigo, diga alguma coisa, faça alguma coisa! – Dizia ele cada vez mais preocupado, e depois, dirigindo-se à enfermeira, ordenou. – Mulher, eu exijo que a liberte!

Mas a enfermeira passou ao seu lado como se ele simplesmente não estivesse ali, pegou uma prancheta e se dirigiu até a porta.

- Está tudo bem? – Perguntou a enfermeira. – Eu vou sair e apagar as luzes, para deixá-la mais confortável, mas qualquer coisa estarei ali fora, do outro lado do vidro – Disse ela apontando para o espelho do outro lado da sala antes de sair e apagar as luzes.

- Eu não gosto desse lugar, vamos embora daqui. – Disse o moço loiro, voltando para o lado de Sofia.

- Você não é real... – Cantarolava ela.

- Minha senhora, eu sou real, e estou aqui... – Dizia o moço, sério, mas com ternura na voz, enquanto parecia levar a mão até a cabeça de Sofia, mas então tudo aquilo foi interrompido por um grito.

Um grito que veio acompanhado de um piscar de luzes enquanto o jovem vinha ao chão, gritando.

- Que tipo de tortura é essa? – Perguntava ele, que sem querer havia encostado em um dos fios. O ruivo tentou ajudar, afastando-o, mas tudo o que conseguiu foi cair no chão, tremendo também.

Sofia virou-se na cama, assustada com a cena que via. O sofrimento daquele jovem não lhe era estranho. Lembrava em muito o seu sonho, no qual ele também se contorcia diante dela. E apesar de naquele momento não haver sangue escorrendo dele, era tão ou mais desesperador, como se o sofrimento daquele homem, mesmo sendo fruto de sua imaginação a fizesse sofrer miseravelmente. E antes que desse por si, a sensação de que precisava fazer alguma coisa crescia em seu peito, mas aqueles fios todos lhe incomodavam.

Seus braços e pernas se moviam na cama enquanto tentavam se soltar; a agulhinha que media suas ondas cerebrais ficando cada vez mais rápida, as lágrimas começando a brotar em seus olhos enquanto a imagem do jovem se contorcendo lembrava a cena de sua morte em seu sonho, quando finalmente conseguiu arrancar um dos eletrodos que prendiam a perna direita, e levantando-se para puxar o eletrodo da esquerda, derrubou a pequena mesa com o aparelho no chão. E aquilo não era bom... Não era nada bom...

Ao menos para ela. A enfermeira já empurrava a porta automática que não queria abrir, enquanto o jovem, que parecia já estar um pouco melhor, percebendo a proximidade da mulher e que Sofia ainda estava presa a todos aqueles fios, arrastou-se até onde ela estava, e pôs as mãos na cabeça dela, na tentativa de puxar os fios.

Mas o que aconteceu foi bem diferente disso.

Uma sucessão de imagens passou pela mente de Sofia. O momento em que foi levada pelo mar, Gabriel, Milena conversando com ela, o jovem loiro morto em seus braços, fogo, sua formatura, um homem de cabelos longos e castanhos, um show, uma mulher loira, um beijo, sua mãe levantando-a do chão, uma gravura de algum deus bárbaro em um livro antigo, uma noite de tempestade em um barco, um garoto de cabelos castanhos correndo em um gramado verde, o jovem loiro caído em uma praia, uma mulher com pele de animal e sangue no rosto.

E não bastasse tudo isso ainda havia a sensação do choque e o torpor, enquanto os dois permaneciam paralisados olhando um pra o outro, as luzes piscando, e a enfermeira voltava com um segurança a tiracolo. Ela gritou ao ver o pique de luz, o som de vidro rachando. Só então Sofia pareceu voltar a si, para ouvir a ordem do segurança.

- Solte a moça ou eu atiro! – Gritava ele.

Solte a moça? Só havia ela ali... Seria possível? Alguém havia visto o moço além dela e até falava com ele, que parecia não compreender. Mas isso não interessava ao segurança, que estava ali apontando a arma para os dois.

Pensava no que faria quando ouviu o estalido de vidro se quebrando novamente, e para sua enorme surpresa, era o ruivo que a esta altura já parecia ter quebrado o vidro da janela que dava para a rua e sinalizava com a cabeça pra que o seguissem

Sofia arrancou os fios que ainda estavam presos à sua cabeça, pegou a bolsa, e ainda hesitou um pouco antes de pular. Era o primeiro andar – nada que fosse matá-la, mas de qualquer forma era alto, e tinha medo de altura desde aquele maldito dia em que desmaiou no alto da escada. Também tinha medo daqueles dois seres estranhos, um que sinalizava para que fosse, e o outro que já esperava lá embaixo, mas certamente teria muito mais medo de um segurança e uma enfermeira histérica, que exigiriam explicações e um conserto de uma sala inteira que ela não poderia pagar. Terminou pulando.

Assim que encostou no chão sentiu os joelhos, protegidos pela calça jeans, arderem um pouco, mas não havia tempo para reclamar. Logo o moço loiro surgiu do seu lado, os olhos azuis fixos nos seus, tensos, preocupados.

- Corra. – Disse ele, sem nenhuma alteração histérica na voz. Se fosse ela, é claro que já estaria gritando e correndo, afinal, àquela altura todos os seguranças do hospital estariam atrás deles.

Exatamente... Deles.

***

Sofia correu o quanto podia. Correu até perder os seguranças de vista, correu até onde encontrou gente, muita gente em uma rua movimentada, correu em companhia dos dois homens que pareciam voar, correu até a asma atacar, o ar lhe faltar e as lágrimas começarem a escorrer de seus olhos enquanto se lembrava de tudo – das lâmpadas estourando, o vidro estilhaçando, o segurança apontando uma arma em sua direção, exigindo que o moço lhe largasse...

Ele era real! E estava ao seu lado e esticava a mão cheia de anéis para tocar-lhe o braço, ao que ela se afastou, assustada. Vai que de repente ele faz algo parecido em praça pública?

- Quem é você? Ou... O que é você? – Perguntou Sofia esgueirando-se até sentar em um banco de ponto de ônibus.

- Não se lembra de mim?

- Lembrar de você? Como, se nunca o vi mais gordo até invadir minha vida, meus sonhos?...

- Invadir?... Você me trouxe até aqui. Que terra é esta? O quê... O que é isso? – Perguntou ele apontando para um ônibus que havia acabado de parar ali. – O que eram aqueles fios em sua cabeça?

- De onde você veio? Isso é um ônibus. E aquilo eram eletrodos de um exame, que eu teria feito caso você não começasse a se contorcer e destruir o hospital inteiro. – Dizia ela, enquanto uma mulher olhava na direção dos dois. – O que foi? Nunca viu duas pessoas discutindo não? – Indagou Sofia, fazendo com que a mulher se afastasse. – Escute... Eu não estou gostando nada disso e... Olhe para mim quando eu falo! – Disse ela chamando a atenção do moço que virava o rosto para acompanhar um caminhão que passava, ao que ela tentou segurá-lo pelo braço.

Tentou.

O mínimo toque revelou o frio congelante e uma matéria chocante, que mal poderia ser chamada de matéria.

Sofia recolheu a mão no mesmo instante, um grito preso na garganta, enquanto o rapaz olhava para ela e para seu próprio braço e não compreendia nada.

- O que é isso? – Perguntava ela, caminhando para trás.

- Esperava que me dissesse. – Respondeu ele.

- Eu?

- Não se lembra? – Perguntou o moço abrindo o colete, mostrando um peito extremamente branco marcado por duas cicatrizes. Uma do lado esquerdo, próxima ao ombro, e uma enorme, como de um corte bem na altura do coração.

Lágrimas vinham ao rosto de Sofia, sem que ela soubesse ao certo por que, enquanto lutava contra a vontade de levar a mão até o peito do jovem. Na verdade, já estendia a mão quando a recolheu, trêmula, a respiração ofegante.

- O que fizeram com você?... – Perguntou Sofia em um fiapo de voz.

- Diga que conseguiu. Diga que conseguimos! – Disse ele, aproximando-se de Sofia, que assustada, recuou.

- Afaste-se de mim!

- Por que faz isso? Por que age como se não me conhecesse?

- Mas eu não conheço você! – Gritou Sofia, virando de costas, só então percebendo que estava no meio da rua, e que uma moto estava a caminho. O jovem tentou empurrá-la, mas o medo de ser tocada por ele foi o suficiente para se afastar da moto.

Mas ele ficou.

Sofia viu quando tudo aconteceu. A moto pareceu bater no jovem loiro parado no meio da rua, mas passou por ele como passaria por uma imagem projetada, um holograma, com a única diferença que depois disso o jovem foi ao chão, atordoado, e a moto empinou sobre a roda dianteira e capotou.

As pessoas correram para ajudar o motoqueiro, que parecia igualmente atordoado. Alguém gritava que a moto estava fria. Outros a acusavam do acidente, dizendo que ele tentava desviar dela. Mas ninguém havia visto no que ele havia batido? Essa era a pergunta que se fazia, ao ver o moço loiro sentado na sarjeta, amparado pelo amigo, mais assustado do que propriamente machucado. Na verdade, não havia sinal de nenhum arranhão...

Sofia correu. Desceu as escadas do metrô aos prantos, trêmula. Mal conseguiu achar o cartão de passe, que devia ter caído de sua mão umas três vezes, até conseguir colocá-lo na roleta. Pegou o primeiro trem e sentou-se no ultimo banco, encolhida. Chorava, chamava a atenção dos outros por isso, mas pouco se importava. Qualquer um em sua situação certamente estaria pior.

Os dois homens realmente existiam. Ou existiram algum dia, porque agora estavam bem mortos. E no mesmo vagão que ela.

Estava uma estação antes da que geralmente saltava para ir para casa, mas preferiu descer ali mesmo. Subiu as escadas correndo, para mais uma vez, procurar abrigo na multidão. Atravessou a rua por entre os carros, mas eles pareciam ter aprendido a fazer aquilo sem serem atropelados, muito menos causarem novos acidentes. Pensava nisso quando o mal encarado ruivo apareceu na sua frente.

- Mande-nos de volta! – Disse ele, a expressão nervosa.

Sofia se esgueirou, encostando-se na parede e aproveitando para escapulir para dentro de um supermercado, correndo para o fundo da loja, a sessão de frutas e legumes, entre carrinhos cheios de compras e senhorinhas escolhendo tomates e batatas e maçãs, quando no meio delas uma figura se destacou, o olhar assustado, tentando se aproximar de Sofia, enquanto ela contornava uma gôndola, tentando fugir dele.

- Por que insiste em fugir de mim? – Perguntava o moço loiro.

- Fique longe de mim... – Respondeu Sofia, afastando-se, sem perceber, batendo em uma pilha de latas de refrigerante que estouravam e espirravam seu conteúdo para todos os lados, molhando tudo ao redor, menos ele, que olhava para aquilo sem compreender que o líquido, as latas, a moto, o homem e as mãos de Sofia passavam através de seu corpo, apesar dele parecer uma pessoa normal como qualquer outra ali.

Uma senhora veio ao seu socorro. Disse ter visto quando caiu e que se ela quisesse processar o mercado, serviria como testemunha. Grande testemunha, ela não havia visto nada! E ainda vociferava que era um absurdo. Escorregar em uma uva no chão é um acidente. Ver dois homens mortos na sua frente é que é um absurdo.

Levantou-se, desvencilhou-se da confusão o mais rápido que pôde e correu para casa. Sua camisa vermelha já havia se transformado em vinho, a calça, as botas, os cabelos eram uma imundície de terra, refrigerante e gel para exame, e pior... Mão de defunto.

Chegou em casa, trancou a porta e foi logo arrancando a roupa pelo caminho mesmo, tanto era o nojo que sentia.

Abriu a torneira e entrou debaixo da água quente. Deixou seu corpo vir abaixo, junto com as lágrimas, o soluço, a água, como se tudo aquilo pudesse ser lavado. Mas a água não parecia suficientemente quente. Abriu a cortina para aumentar o volume do aquecedor quando se deparou novamente com o jovem loiro.

Ela gritou. Ele ficou sem jeito.

- Perdoe-me! Perdoe-me... – Dizia ele, virando o rosto.

- Saia daqui! - Gritava Sofia caçando uma toalha em que pudesse se enrolar.

- Eu... Eu vou esperar... Lá fora.

- Não! Vá embora! Suma! – Continuava Sofia, gritando, agora já enrolada na toalha.

- Mas eu não posso.

- Como não? Você deve ter vindo de algum lugar, então volte para lá! – Disse Sofia, saindo do banheiro e se deparando com o ruivo parado como uma pilastra.

- Mas foi a senhora que me trouxe até aqui! Agora diga o que aconteceu comigo. – Dizia ele, seguindo Sofia até a cozinha, para onde ela se dirigia na simples tentativa de fugir dele.

- Você e seu amigo mal encarado estão mortos.

- Não! – Negou, incisivamente, enquanto se aproximava dela.

- Basta olhar para o talho em seu peito para saber o que aconteceu.

- Não! Não pode ser! Você pode... Você prometeu! – Disse ele, segurando-a pelo ombro.

Novamente o frio começou a tomar conta do seu corpo, mas no mesmo instante foi como se ela perdesse o controle sobre os movimentos e deixasse o copo que segurava cair no chão, ao que ele a soltou.

O copo quebrou. A água que estava nele se esparramou e um pequeno estilhaço cortou o dedo mínimo do pé de Sofia, de onde escorria uma pequena mancha de sangue que se unia à água, que já congelava debaixo dos pés do jovem, os cacos transpassando suas botas.

Ele tentou chutar um dos cacos, mas não conseguiu. Abaixou-se, ao lado de Sofia, que não sabia se cuidava do ferimento, se recolhia os cacos ou se olhava para ele, que estendia o dedo indicador e encostava em um dos cacos. Viu o vidro entrar, mas não havia sangue.

- Wotan! – Gritou o jovem, erguendo os braços para o alto. Nessa hora, as luzes piscaram novamente, as louças trepidaram na prateleira e algumas até caíram, pratos, copos e canecas se estilhaçando, enquanto Sofia, encolhida com medo no canto perto da porta chamou por ajuda da criatura mais improvável:

- Grandão! – Chamou Sofia, e prontamente lá estava ele, carregando o amigo para a sala, enquanto o jovem loiro ainda gritava.

- Eu não acredito que fez isso comigo! Não poderia ter feito isso comigo!

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