som do despertador tocou às 5h30, mas Haruki já estava acordado. Estava deitado de lado, com os olhos abertos fixos na parede, onde rachaduras discretas cortavam o branco velho como cicatrizes. Mais um dia. Mais um ciclo de cansaço.
Levantou-se com movimentos mecânicos. Banho rápido. Uniforme dobrado no canto da cadeira. O cheiro de café vinha da cozinha, mas ele não desceu. Estava farto de mesas silenciosas, de olhares ignorantes e da idolatria cega à irmã que nunca sofria consequências. Calçou os tênis, pegou a mochila e saiu antes do sol nascer. Nos últimos meses, Haruki havia começado a trabalhar em uma loja de conveniência perto da estação de Yokohama, e à noite, lavava pratos em um restaurante familiar. Saía antes de todos acordarem e voltava depois que já estavam de pijama. Aos dezessete anos, já sentia o peso de um adulto esgotado. No começo, ninguém notou sua ausência nos jantares. Quando notaram, fingiram que era rebeldia adolescente. Mas ele não ligava. Não fazia mais questão. O que ganhava era pouco, mas suficiente para comprar suas coisas e guardar um pouco. Havia aprendido a viver sozinho mesmo dormindo debaixo do mesmo teto. Seu quarto era o único espaço onde podia respirar. Sem fotos, sem lembranças. Apenas uma cama arrumada, uma pequena estante com alguns livros escolares e uma caixa de sapato velha onde escondia o que havia de mais valioso: um pequeno telemóvel antigo, doado por um dos colegas da loja de conveniência, que soube da sua situação e lhe deu de presente, junto com uns fones usados e um pequeno rádio portátil. Era tudo o que tinha de “seu”. Mas naquele fim de semana, o que ele mais temia aconteceu. Na manhã de sábado, Emiko entrou no quarto de Haruki com um pano na mão, supostamente para limpar, acompanhada por Takashi, dizendo que sentiam falta do filho e queriam entender o que se passava. Mas a busca por diálogo foi rapidamente substituída por uma atitude desconfiada. — Ele não fala mais com a gente — disse Takashi, revirando gavetas. — Tem se afastado muito. E chega tarde demais para alguém da idade dele — Emiko completou, olhando com atenção para os cantos do quarto. Foi então que, ao abaixar-se perto da cama, Emiko encontrou a caixa de sapato empurrada discretamente para o fundo. Abriu-a. Dentro, além de cadernos velhos e papéis rabiscados com letras de músicas em inglês, havia o pequeno telefone cinza e os fones. — Mas o que é isso...? — murmurou ela, franzindo o cenho. — Ele está escondendo isso de nós — disse Takashi, tomando o telefone das mãos dela. — Isso é um smartphone? Ele nunca pediu um. — E esses fones? Onde ele conseguiu isso? Ele... ele pode estar roubando, Takashi... Emiko parecia genuinamente perturbada. — Ele anda com más influências. Tem sido frio com a Yui, com a gente... Não podemos mais confiar — completou Takashi, já com a expressão dura. Decidiram confrontá-lo assim que ele chegasse. Mas a raiva foi mais rápida que o bom senso. Às 20h10, Haruki chegou em casa, exausto, com cheiro de óleo e detergente ainda impregnado na roupa. Mal fechou a porta, deu de cara com os dois à sua frente. O ar estava pesado. — O que foi? — perguntou, sem disfarçar o cansaço. Takashi ergueu o telefone. — De onde tirou isso? Haruki franziu o cenho. — Isso? Um amigo do trabalho me deu. Estava velho. Só uso para ouvir música... — Você acha que vamos acreditar nisso? — Emiko se aproximou, os olhos arregalados. — Escondendo isso da gente? Que mais está escondendo? Está roubando, Haruki? — O quê?! — ele recuou um passo, sem acreditar no que ouvia. — Já chamamos a polícia. Eles vêm esclarecer isso — disse Takashi, a voz fria como gelo. Haruki ficou imóvel. Como se um balde de água gelada tivesse sido jogado sobre ele. — Vocês realmente acham... que eu sou um ladrão? — Você está andando com más companhias, está distante, frio, escondendo coisas... — Emiko balbuciava entre o medo e a histeria. A campainha tocou. Duas viaturas pequenas pararam em frente à casa. Haruki foi levado, calado. Não havia forças para gritar. No caminho, só pensava em como havia esperado tanto por uma única coisa: ser ouvido. Ser acreditado. --- Na manhã seguinte, a porta se abriu e os mesmos policiais o trouxeram de volta. — Confirmamos com os empregadores, os colegas. Os itens foram doados. Nenhuma irregularidade — explicou o oficial, sério, porém com um certo olhar de compaixão. — O jovem não tem ficha, trabalha duro e é bastante respeitado. Takashi engoliu seco. Emiko, ao lado, tremia. Haruki passou por eles sem dizer nada, subiu as escadas com passos firmes e trancou a porta do quarto. Eles permaneceram embaixo, estáticos. — Fomos... duros demais? — sussurrou Emiko. — Ele vai entender... É por preocupação — tentou justificar o marido, mas o tom era vazio, como quem tentava convencer a si mesmo. — Ele... vai esquecer? Lá em cima, Haruki não chorava. Estava dobrando suas roupas com precisão. A mala estava quase pronta. --- Algumas horas depois, o som das escadas rangendo fez Emiko sair da cozinha e Yui olhar com curiosidade. Haruki descia com a mochila e a mala nas mãos. — Haruki...? Onde você vai? Takashi apareceu no corredor. Todos pararam. — Eu vou embora. A resposta foi seca, sem hesitação. — Como assim? Haruki, não seja ridículo. Foi só um mal-entendido! — Emiko se aproximou, tentando tocar seu braço, mas ele recuou. — Mal-entendido? Vocês me acusaram de ser ladrão. Chamaram a polícia. Diante da minha irmã. Da vizinhança. Me humilharam. E isso... foi só a última gota. — Mas nós... só queríamos proteger você — disse Takashi, a voz tremendo pela primeira vez. Haruki os encarou. Pela primeira vez em anos. — Vocês nunca quiseram me proteger. Desde que a Yui nasceu, eu deixei de existir. Tudo que eu fazia era ignorado. Tudo que ela fazia, era minha culpa. Se ela mentia, vocês acreditavam. Se eu falava a verdade, vocês me batiam. Eu não era filho. Eu era o erro que vocês tentavam esconder. Emiko levou as mãos à boca, os olhos cheios de lágrimas. Yui abaixou o olhar. — Eu passei anos me perguntando o que fiz de errado. Passei noites sozinho, doente, com febre, e ninguém entrava no quarto. Passei aniversários sozinho, esperando um “parabéns” que nunca veio. Mas agora, não espero mais nada. Eu só quero ir embora. Takashi deu um passo à frente, a mão trêmula. — Haruki... por favor... — Não me toquem. Eu estou partindo para ter paz. Não odeio vocês. Mas não posso continuar aqui sendo odiado por existir. E sem mais palavras, Haruki saiu pela porta principal. O silêncio que ficou na casa foi o mais denso que já se fez ali. Yui, pela primeira vez, chorou sem conseguir explicar por quê. Emiko caiu de joelhos. Takashi levou as mãos à cabeça. E o vazio que Haruki deixou — esse, eles não sabiam como preencher.