III

A festa já tinha acabado há horas. Enquanto a maioria dos convidados já havia ido embora, eu ainda estava lá, com o corpo e a mente pesados de tanto trabalhar. Era quase 3 da manhã, e eu mal conseguia manter os olhos abertos. Desde as 17h, quando a festa começou, eu estava naquele mesmo ritmo, servindo, limpando e tentando não pensar demais nas minhas frustrações. As luzes do salão já estavam fracas e o barulho da multidão tinha se transformado em murmúrios e passos apressados dos poucos que ainda permaneciam. Eu, exausta, recolhia os últimos copos e guardava os cacos de vidro com cuidado, como se cada pedaço quebrado representasse um sonho que eu lutava para manter.

Quando, por fim, a sala ficou quase vazia, respirei fundo e decidi que era hora de ir para casa. Com as mãos tremendo de cansaço, fui até o camarim, troquei meu uniforme por algo mais confortável, peguei minha calça jeans, meus tênis brancos, que, apesar de um pouco sujos, sempre me acompanhavam em minhas caminhadas solitárias, e vesti um moletom grosso, porque a noite estava fria. Enquanto me vestia, pensei em como aquela festa fora tão contraditória: tanta celebração, tantos sorrisos, mas também tantas dúvidas e um sentimento de solidão que eu jamais tinha conseguido evitar.

“Agora vai, Elena, só mais essa e você chega em casa,” murmurei para mim mesma, tentando encontrar força para continuar. Sabia que morava a quase uma hora de caminhada dali, e cada passo parecia pesar uma tonelada depois de um dia inteira de trabalho. Coloquei a chave no bolso e saí do salão. Lá fora, a noite estava quase silenciosa, com apenas o som distante de carros e o farfalhar das folhas. O ar frio mordia a pele, e eu enrolei o moletom com mais força no corpo, tentando me aquecer.

Caminhei pela calçada quase deserta, os postes de luz piscando timidamente, enquanto a cidade de Lakecity dormia sob o manto da escuridão. Meu pensamento vagava para a festa, para os olhares que troquei e para o breve toque daquele homem bonito que, mesmo sem que eu soubesse seu nome, me fazia sentir algo que há muito eu não sentia. Mas a exaustão era maior que qualquer lembrança e eu só queria chegar em casa, me jogar na cama e esquecer por um instante as incertezas da vida.

Contudo, conforme fui avançando, algo começou a me incomodar. Em meio ao silêncio da rua, um som baixo e irregular chamou minha atenção. No começo, achei que era apenas o vento brincando com as folhas das árvores que margeavam o caminho. Mas logo percebi que eram mais do que sussurros do vento: havia barulhos, grunhidos, rosnados e estalidos, que pareciam vir de dentro da floresta que cercava a rua. Meu coração acelerou um pouco e a sensação de alerta tomou conta de mim.

“Que droga, deve ser algum animal selvagem…”, pensei, tentando racionalizar o som. Mas, à medida que eu caminhava, os grunhidos se intensificavam e vinham acompanhados de um som de passos furtivos. A minha mente começou a imaginar o pior, e eu apertei o passo, sentindo a adrenalina subir pelas veias.

“Quem está aí?”, murmurei para o escuro, sem realmente esperar uma resposta, mas tentando de alguma forma me convencer de que não havia nada de anormal.

O som das árvores e dos arbustos se movendo era quase hipnotizante, e, de repente, meus olhos captaram algo. Ao olhar para trás, notei que, entre as sombras das árvores, havia vultos que se moviam devagar, como se estivessem me observando. Senti um calafrio percorrer minha espinha. Parecia que aquelas silhuetas não pertenciam ao ambiente calmo da noite, mas sim a algo que se escondia com intenções incertas.

“Não dá para imaginar que… não, não pode ser…”, pensei, tentando acalmar meus nervos. Mas a sensação era inegável, algo estava fora do lugar.

Acelerei o passo, os passos se tornando cada vez mais rápidos e nervosos. O som do meu coração batendo forte no peito misturava-se aos barulhos da floresta, criando uma sinfonia de medo e incerteza. Tentei focar no caminho à minha frente, mas os vultos insistiam em aparecer no canto dos meus olhos, como se se aproximassem lentamente.

“Preciso chegar em casa… só preciso chegar em casa,” repeti em minha mente, enquanto os pensamentos se confundiam com o frio da noite e a sensação de perigo iminente.

De repente, o asfalto pareceu engolir meus pés. Em meio à pressa e ao medo, tropecei em uma irregularidade na calçada, uma pequena pedra que não tinha reparado antes. Senti meus braços se chacoalharem enquanto eu perdia o equilíbrio. Num instante que me pareceu uma eternidade, caí de bruços no chão frio, sentindo uma dor aguda invadir meu joelho.

“Ai!”, exclamei, soltando um gemido que se misturou ao som da noite. Fiquei deitada por alguns segundos, tentando entender o que havia acontecido e sentindo o gosto amargo da frustração e do medo. O joelho doía, e a sensação de ter caído logo me fez duvidar se conseguiria continuar andando.

Quando levantei a cabeça, com as mãos ainda tentando segurar meu corpo, meu olhar se fixou em algo que fez meu coração parar por um instante. Aproximadamente a dez metros de distância, em meio à escuridão e às árvores, eu vi um lobo. Não era um lobo qualquer, era enorme, com pelos que brilhavam sob a pouca luz e olhos que pareciam carregar fogo. Seu corpo se movia com a graça e a firmeza de um predador, e a sua presença, tão inesperada quanto assustadora, me congelou por dentro.

Fiquei imóvel por alguns instantes, com a mente dividida entre o instinto de fugir e a curiosidade que insistia em me fazer olhar para aquele ser. Em meio à dor do meu joelho e ao medo pulsante, tentei respirar fundo. Lembrei-me de algo que sempre aprendi, manter a calma é a melhor forma de lidar com o perigo.

“Calma, calma…”, falei baixinho, quase como se estivesse tentando me convencer a mim mesma. Minha voz saiu trêmula, mas era o único som que eu conseguia emitir naquele momento.

O lobo, que até então parecia apenas me observar com seus olhos penetrantes, deu um passo adiante. Cada músculo do seu corpo se movia de forma controlada, mas havia algo na maneira como ele se aproximava que não transmitia hostilidade imediata. Mesmo sentindo o pânico tomando conta, tentei analisar a situação. Será que ele estava apenas curioso? Será que veio pensando em me atacar?

Enquanto eu me levantava devagar, apoiando-me no joelho machucado, meus pensamentos se misturavam em um turbilhão de medo e determinação. 

“Calma… Calma, Elena… Sem pânico agora… mantenha a calma”, repetia mentalmente, enquanto meus olhos fixavam aqueles do lobo.

“Ei…”, arrisquei uma tentativa de falar de novo, com a voz baixa e tensa, assisti em alguns programas de TV que às vezes falar com o animal o faria criar vinculo, mas o lobo não respondeu com som algum; ele continuava ali, imóvel e observador, como se aguardasse minha reação.

O silêncio que se instalou depois da minha tentativa de diálogo era quase ensurdecedor. A única coisa que se ouvia era o som do vento entre as árvores e o pulsar acelerado do meu próprio coração. Eu tentei dar alguns passos para trás, procurando um lugar onde pudesse me sentir segura, mas o impacto da queda ainda fazia meu corpo estremecer. Cada movimento do lobo era um lembrete de que eu estava vulnerável e sozinha naquela imensidão de sombras.

“Por favor, fique calma”, murmurei, tentando, mesmo sem saber se aquilo faria diferença. Enquanto minhas palavras saíam trêmulas, tentei me lembrar de tudo o que sabia sobre animais selvagens. Sabia que, em muitos casos, os lobos podem ser territoriais, mas também que eles podem recuar se perceberem que a pessoa não representa ameaça.

O lobo inclinou a cabeça, como se considerasse minhas palavras, e deu mais um passo. Por um breve momento, meus olhos se encontraram com os dele. Naqueles instantes, parecia que o tempo parou, cada segundo se alongava, e a intensidade daquele olhar me fazia sentir algo indefinível, uma mistura de medo e, finalmente, consegui captar o que os olhos dele traziam. Diversão. 

Enquanto tentava reunir forças para me levantar completamente, ouvi um som distante, quase imperceptível, que me fez estremecer. Era como se alguém, ou alguma coisa, estivesse se aproximando pelas sombras da floresta. Meu coração quase saltou do peito. Será que era apenas minha imaginação, ou havia mais de um lobo ali? A incerteza e o medo me empurraram para agir, e, mesmo com o joelho latejando, decidi que precisava me afastar dali o mais rápido possível.

“Vamos, Elena, levanta!”, gritei para mim mesma, num esforço desesperado de encorajar meu próprio corpo a se mover. Aos poucos, comecei a dar passos lentos, mantendo meus olhos fixos na figura imponente à minha frente. Cada passo que eu dava era acompanhado pelo som dos meus próprios pés batendo no asfalto, um lembrete cruel da realidade em que estava presa.

Enquanto eu caminhava, o lobo permanecia a uma distância que eu não conseguia definir com precisão, os olhos sempre fixos em mim. Em determinado momento, os grunhidos e os sons vindos da floresta aumentaram, como se outro animal se juntasse àquilo, tornando a atmosfera ainda mais carregada de tensão. Senti meu corpo se arrepiar, e a vontade de fugir se intensificou.

“Não, não posso parar agora… preciso ir”, falei, com a respiração entrecortada.

Mas, no ímpeto do medo e da exaustão, perdi o equilíbrio novamente. Meu pé escorregou em uma poça de água mal iluminada, e eu caí de bruços. Desta vez, a queda foi mais violenta e o impacto fez um som surdo no asfalto. O joelho já machucado rangia de dor, e lágrimas começaram a se formar nos meus olhos, tanto pelo sofrimento físico quanto pela angústia que sentia.

“Maldição…”, murmurei, tentando me recompor. Enquanto permanecia deitada por alguns longos segundos, escutei o som dos galhos se quebrando e passos se aproximando. A escuridão parecia fechar em volta de mim, e a imagem do lobo continuava a se destacar, quase como se ele fosse o único ponto de estabilidade naquele caos.

Concentrando-me para me levantar, coloquei minhas mãos no chão, sentindo a aspereza da calçada e a dor que percorria meu joelho. Cada movimento exigia um esforço tremendo, e eu sabia que, se não conseguisse sair dali rápido, poderia piorar a lesão. Ao me apoiar nas mãos, tentei levantar o corpo devagar, mantendo o olhar fixo na figura imponente que agora parecia cada vez mais próxima.

“Calma, calma…”, repeti novamente, a voz baixa, mas decidida, como se fosse uma oração para afastar o perigo. Enquanto me ergui, senti uma onda de coragem misturada com o medo. 

Ao ficar de pé, apoiada apenas na dor do joelho, observei o lobo com atenção. Ele estava parado, com as orelhas erguidas e os olhos brilhando na escuridão. Seu pelo, iluminado de vez em quando pelo luar que surgia entre as nuvens, parecia tão macio quanto a seda, mas seu olhar carregava uma intensidade que me fazia arrepiar. Sua boca parecia, estranhamente, dar um sorriso.

“O que você quer de mim?”, perguntei em voz baixa, como se esperasse que ele me respondesse. Mas ele não respondeu com palavras, apenas permaneceu ali, me encarando. Senti meu coração dispara. Talvez, pensei, se ele não me atacasse, poderia haver uma forma de entender o que estava acontecendo.

Num impulso, decidi falar novamente, desta vez com mais firmeza:

“Olha, eu não sei o que está acontecendo, mas se você não tem intenção de me fazer mal, eu só quero ir embora. Não quero briga, só quero chegar em casa.”

O lobo então começou a caminhar em direção a mim com um olhar sanguinário, como se tivesse achado sua presa. 

Enquanto isso, a dor no meu joelho insistia em me lembrar que eu estava ferida. Senti um calor estranho subir pelo meu rosto, talvez da vergonha por ter caído, talvez da emoção do que estava vivendo. 

Meus olhos se arregalaram e ele então atacou. 

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