Londres, cinco anos atrás...
Gabriel
Nunca fui de acreditar em sinais, mas naquela noite, algo dentro de mim gritava para que eu voltasse para casa mais cedo. Eu estava no escritório, revisando os últimos detalhes do pedido de casamento que faria para Débora. Tinha acabado de receber o anel que encomendei em segredo, uma joia discreta, mas cheia de significado. Passei horas ensaiando as palavras que diria, imaginando o brilho nos olhos dela ao ouvir que, além de pedir sua mão, eu finalmente contaria toda a verdade: que eu era herdeiro dos Smith, de uma fortuna e de um legado que sempre escondi por medo de perder o que mais amava — ela.
O plano era simples: prepararia um jantar especial no nosso apartamento, entregaria o anel e, enfim, abriria meu coração. Eu estava nervoso, mas feliz. Pela primeira vez em anos, sentia que estava pronto para compartilhar tudo, sem reservas, sem máscaras. Queria que ela soubesse quem eu era de verdade, não apenas o Gabriel nerd, apaixonado por tecnologia, mas o homem disposto a dividir sua vida, sua história e seu futuro.
Saí do escritório mais cedo, com o anel no bolso e o coração acelerado. No caminho, comprei as flores favoritas dela — lírios brancos — e um vinho que ela adorava. Subi as escadas do prédio sentindo uma ansiedade boa, aquela que antecede os grandes momentos da vida. Lembro de sorrir sozinho no elevador, imaginando a surpresa dela ao ver tudo preparado.
Quando cheguei ao corredor, notei que a porta do apartamento estava encostada. Estranhei, porque Débora sempre foi cuidadosa com segurança. Entrei devagar, tentando não fazer barulho, pensando em surpreendê-la. O silêncio era estranho, quase pesado. Deixei as flores e o vinho na bancada da cozinha e fui em direção ao quarto, onde imaginei encontrá-la lendo ou assistindo a alguma série.
Foi então que ouvi risadas abafadas, seguidas de sussurros. Meu coração disparou, mas, por um instante, pensei que talvez ela estivesse ao telefone com alguma amiga. Mas havia algo diferente no tom, uma intimidade que não combinava com as conversas que costumava ouvir.
Aproximei-me da porta do quarto, que estava entreaberta. O que vi, naquele instante, destruiu tudo o que eu acreditava sobre amor, confiança e lealdade. Débora estava na cama, nua, envolta nos braços de Alex — meu sócio, meu amigo, meu irmão de escolha. Eles riam, alheios ao mundo, completamente entregues um ao outro.
Por alguns segundos, fiquei paralisado. Mas não era choque — era uma fúria gelada, cortante, que tomou conta de mim. Senti o chão sumir sob meus pés, mas não permiti que a dor me dominasse. O anel escorregou da minha mão e caiu no chão, fazendo um barulho seco que ecoou pelo quarto. Débora se virou, assustada, e nossos olhares se encontraram. Vi o pânico em seus olhos, a culpa estampada em cada traço do rosto. Alex, ao perceber minha presença, pulou da cama, tentando cobrir o corpo com o lençol, mas era tarde demais.
— Gabriel... — ela sussurrou, a voz trêmula, tentando se cobrir.
— Cara, não é o que você está pensando... — Alex tentou justificar, mas sua voz era apenas um ruído distante, irrelevante diante do que eu sentia.
Não disse nada. Apenas olhei para os dois, com um olhar frio, calculista, como quem observa um experimento fracassado. O ar faltava, o peito doía, mas não deixei transparecer. O silêncio era minha arma. Virei as costas, sem permitir que mais um segundo daquela traição me atingisse. Saí do quarto, ouvindo Débora me chamar, implorando para que eu ouvisse suas explicações. Mas não havia explicação possível. O que vi era definitivo, irremediável.
Fui para a sala, sentei no sofá e tentei respirar. O anel ainda estava na minha mão, pesado, inútil. Senti as lágrimas escorrerem, silenciosas, mas não permiti que me quebrassem. Ouvi passos apressados atrás de mim.
— Gabriel, por favor, me escuta... — Débora se ajoelhou ao meu lado, tentando segurar minha mão. Afastei-a, incapaz de suportar seu toque.
— Não tem o que explicar, Débora. Eu vi o suficiente — minha voz saiu baixa, cortante, como uma sentença.
— Foi um erro, eu... eu não sei o que aconteceu. Não significa nada, eu te amo... — ela chorava, desesperada, mas suas palavras não faziam sentido. Como alguém que ama é capaz de destruir tudo assim?
Alex apareceu na porta, vestindo as calças às pressas, o rosto vermelho de vergonha e medo. Nunca imaginei que ele seria capaz de algo assim. Éramos irmãos, parceiros de vida e de negócios. Confiava nele como em poucos.
— Gabriel, me desculpa, cara. Eu... eu não sei o que dizer. Foi um momento de fraqueza, não vai se repetir — ele tentou se justificar, mas eu não queria ouvir.
Levantei-me, olhei para os dois e, pela primeira vez, senti um vazio absoluto. Não havia mais nada ali. Nem amor, nem amizade, nem esperança. Apenas um buraco negro onde antes havia sonhos e planos.
— Vou sair e deixar você arrumar suas coisas e deixar esse apartamento antes da minha volta — falei me dirigindo a mulher a quem deveria estar pedindo em casamento neste momento.
— Gabriel... amor... vamos conversar. Você não pode deixar que um erro bobo acabe com nosso relacionamento — Débora tenta segurar o meu braço, numa tentativa de me convencer.
Eu a afasto, retirando com firmeza, não usando da violência que minha raiva contida desejava. Não iria me sujar a agredindo. Não é meu estilo. Mas realmente precisei usar de muito alto controle ao ouvir seus argumentos absurdos se referindo ao que acabei de presenciar com um “erro bobo”.
— Me deixa explicar, Gabriel. Eu não tenho para onde ir. Eu moro aqui, esqueceu? — ele ainda insiste e dramatiza.
— É claro que você tem para onde ir, Débora — olho para Alex que assiste tudo em silêncio.
Rosto pálido, olhos baixos. Sente vergonha, talvez esteja somente constrangido. Ele sabia das minhas intenções de pedir a Débora em casamento e mesmo assim estava me traindo com ela em minha própria cama.
— Vocês merecem um ao outro. Agora podem assumir o amor de vocês. — foi tudo o que consegui dizer antes de sair do apartamento,
Mas antes de sair, olhei para trás e falei ao Alex:
— Amanhã trataremos da sua saída da sociedade da holding. Vou comprar a sua parte e nunca mais quero olhar na sua cara.
Me viro e saio daquele lugar, deixando para trás não só o anel, as flores e o vinho, mas uma parte de mim que nunca mais seria a mesma.
Passei a noite andando sem rumo pelas ruas de Londres, tentando entender onde errei, em que momento perdi o controle da minha própria história. Revi cada detalhe do relacionamento com Débora, cada conversa, cada gesto, procurando sinais que talvez eu tenha ignorado. Mas não encontrei nada. Sempre fui sincero, dedicado, apaixonado. Talvez esse tenha sido meu erro: amar demais, confiar demais.
Nos dias que se seguiram, evitei qualquer contato. Não atendi ligações, não respondi mensagens. Me tranquei no escritório, mergulhei no trabalho, tentando anestesiar a dor com tarefas e reuniões. Mas nada era suficiente. A imagem dos dois juntos me perseguia, um fantasma que não me deixava em paz.
Alex tentou me procurar algumas vezes, mas eu não queria vê-lo. A traição dele doeu tanto quanto a de Débora. Ele era meu amigo, meu sócio, alguém em quem confiei meus sonhos e projetos. Saber que ele foi capaz de destruir tudo por um momento de desejo me fez questionar o valor da amizade, da lealdade.
Poucos dias depois, recebi um e-mail de Alex. Era curto, direto. Dizia que não tinha justificativa para o que fez, que sabia que nunca teria meu perdão. Informava que estava concluindo a venda da sua parte na holding. Pediu desculpas e que eu cuidasse da empresa, que não deixasse que aquele erro comprometesse tudo o que construímos juntos. A venda foi rápida. Ele aceitou um valor abaixo do mercado, como se quisesse se livrar do passado o mais rápido possível. Depois disso, sumiu. Ninguém mais ouviu falar dele. Alguns disseram que foi para a Ásia, outros que voltou para a casa dos pais. Para mim, pouco importava. O Alex que conheci morreu naquele dia, junto com a confiança que eu tinha nas pessoas.
Débora também tentou se explicar, mandou cartas, mensagens, tentou falar com amigos em comum. Mas eu não queria ouvir. O amor que sentia por ela não desapareceu de uma hora para outra — e talvez nunca desapareça completamente. Ainda sou apaixonado por ela, mesmo depois de tudo. Mas aprendi que amor não é suficiente quando a confiança é destruída. E, por mais que doesse, precisei seguir em frente.
Passei meses tentando reconstruir minha vida. O trabalho foi meu refúgio, minha salvação. Ampliei a holding, investi em novos projetos, viajei para outros países. Mas, em cada cidade, em cada hotel, sentia a ausência dela. O cheiro dos lírios, o gosto do vinho, o som da risada dela — tudo me lembrava o que perdi.
Aos poucos, fui aprendendo a conviver com a dor. Transformei o sofrimento em combustível para crescer, para me tornar mais forte. Mas nunca mais fui o mesmo. A traição de Débora e Alex deixou marcas profundas, cicatrizes que carrego até hoje. Aprendi a desconfiar, a manter distância, a proteger meu coração.
Ainda penso em Débora, às vezes. Em como teria sido nossa vida se tudo tivesse sido diferente. Em como seria dividir o peso do meu nome, da minha herança, com alguém que eu amava de verdade. Mas o destino não quis assim. E, por mais que doa, preciso aceitar.
Hoje, sigo em frente. Carrego comigo as lições daquele dia, o peso das escolhas e das perdas. Sei que ainda sou apaixonado por Débora, mas também sei que mereço mais do que migalhas de amor. Mereço alguém que fique, que lute, que não desista na primeira dificuldade.
Talvez um dia eu consiga perdoar. Talvez um dia eu consiga amar de novo, com a mesma intensidade. Mas, por enquanto, sigo vivendo um dia de cada vez, reconstruindo o que sobrou de mim depois do dia em que tudo desabou.