Mundo de ficçãoIniciar sessão
Patrícia sempre acreditou que a vida precisava de ordem para fazer sentido.
Planos, horários, metas. Tudo encaixado como peças de um quebra-cabeça silencioso que ela vinha montando desde muito jovem. Aos vinte e oito anos, tinha um emprego estável, um relacionamento duradouro e a sensação confortável de que estava exatamente onde deveria estar.
Ou pelo menos era isso que ela repetia para si mesma.
Naquela manhã de sexta-feira, a cidade de Veláris acordara sob um céu pesado, cinza, como se o dia também estivesse indeciso sobre o que se tornaria. A chuva da madrugada ainda deixava o asfalto úmido, refletindo luzes e movimentos. Patrícia observava tudo pela janela do táxi, com a testa apoiada no vidro frio, sentindo o balanço suave do carro enquanto tentava ignorar um incômodo estranho no peito.
Não era dor. Era inquietação.
Ela respirou fundo e ajeitou a bolsa no colo. O motorista seguia em silêncio, e aquilo lhe dava espaço demais para pensar. Pensar em Rafael. No casamento que viviam adiando. Nas discussões pequenas que vinham se acumulando como poeira embaixo do tapete. No cansaço que ela não sabia explicar.
— Chegamos, senhora — avisou o motorista, estacionando em frente à Clínica Vitta+.
Patrícia agradeceu, pagou a corrida e desceu. A fachada de vidro espelhado refletia sua imagem: cabelo castanho bem alinhado, maquiagem discreta, roupa social elegante. Por fora, tudo parecia sob controle. Por dentro, algo sussurrava que aquela manhã não seria apenas mais uma.
A Vitta+ era conhecida em Veláris como uma clínica de alto padrão. Tudo ali era pensado para transmitir confiança: a recepção ampla, os sofás claros, o aroma suave de chá e limpeza. Patrícia caminhou até o balcão com passos firmes, entregando os documentos.
— Nome completo, por favor — pediu a recepcionista, sem levantar os olhos.
— Patrícia Navarre.
Os dedos da atendente correram pelo teclado.
— Documento?
Ela entregou o CPF, assinou alguns papéis sem ler com atenção. Era um exame de rotina. Apenas isso. Nada que merecesse preocupação.
O detalhe invisível, porém, estava ali: em outro horário, no mesmo dia, uma paciente chamada Patrícia Navarro também estava agendada. Um sobrenome quase idêntico. Um prontuário trocado. Um erro pequeno demais para ser percebido — grande demais para ser desfeito depois.
Patrícia sentou-se na sala de espera e puxou o celular. Havia uma mensagem de Rafael.
“Você vai se atrasar hoje? Preciso saber se jantamos juntos.”
Ela suspirou antes de responder.
“Não sei. Tenho exame agora. Te aviso.”
Bloqueou a tela e fechou os olhos por um instante. Ultimamente, até as conversas simples pareciam exigir esforço.
— Patrícia Navarre? — chamou uma enfermeira.
Ela se levantou, seguindo pelo corredor branco, iluminado demais, limpo demais. Tudo parecia normal. Seguro. Profissional.
A consulta começou como qualquer outra. Perguntas padrão, exame físico, coleta de sangue. Em determinado momento, um médico explicou rapidamente um procedimento complementar, usando termos técnicos que Patrícia não compreendeu por completo.
— Faz parte do protocolo — disse ele, com naturalidade. — É rápido.
Ela confiou. Deitou-se na maca. Sentiu um desconforto incomum, um frio percorrendo o corpo, mas nada que despertasse alarme imediato. Minutos depois, estava liberada.
Na volta para casa, o cansaço veio como uma onda pesada. Dormiu no táxi, algo que não costumava acontecer. Quando chegou ao apartamento, tomou um banho demorado, tentando afastar a sensação estranha de que algo dentro dela havia sido tocado — não fisicamente, mas em um lugar mais profundo, impossível de nomear.
Os dias seguintes trouxeram mudanças sutis.
Primeiro, o enjoo leve ao acordar. Depois, a aversão ao cheiro de café, que sempre fora seu ritual matinal. O sono excessivo. A sensibilidade exagerada aos cheiros, aos sons, às emoções.
— Você anda estranha — comentou Rafael certa noite, observando-a empurrar o prato de comida. — Deve ser estresse.
Ela concordou, mesmo sem acreditar totalmente.
Até o dia em que entrou numa farmácia para comprar analgésicos e parou diante da prateleira de testes de gravidez.
Ficou ali por longos segundos, encarando as caixas coloridas, com o coração batendo rápido demais. Comprou um. Depois outro. Pagou sem olhar para o atendente.
No banheiro de casa, as mãos tremiam. O silêncio parecia gritar. Quando o resultado apareceu, claro e incontestável, Patrícia sentiu o chão desaparecer.
Duas linhas.
Ela sentou-se lentamente na tampa do vaso, a respiração curta.
— Isso não é possível… — sussurrou.
Fez outro teste. O mesmo resultado.
Na manhã seguinte, procurou sua médica de confiança. O exame confirmou: grávida. Seis semanas.
— Patrícia — disse a médica, com um olhar sério —, preciso ser honesta com você. Houve um erro no seu atendimento na Vitta+. Um erro grave.
As palavras demoraram a fazer sentido.
— Que tipo de erro?
A médica respirou fundo antes de responder.
— Você foi submetida a um procedimento que não autorizou. Houve uma troca de prontuários. Você… foi inseminada.
O mundo parou.
O ar sumiu.
O futuro que Patrícia acreditava conhecer se quebrou em mil pedaços naquele instante.
Ela saiu da clínica em choque, caminhando sem destino pelas ruas movimentadas da cidade. Não sabia de quem era aquele bebê. Não sabia como contar. Não sabia se queria chorar, gritar ou desaparecer.
Só sabia de uma coisa.
A vida que ela conhecia havia acabado.
E algo completamente novo — e perigoso — começava a crescer dentro dela.







