Kael se afastou do quiosque, com a imagem da mulher irritada e a sensação de ter sido repreendido ainda frescas em sua mente. Encontrou um tronco caído na areia, a poucos metros de distância, e sentou-se. O sol, que começava a aparecer entre as nuvens dispersas, revelava ainda mais a extensão da destruição.
De onde estava, ele a observava. Apesar do cansaço e da sujeira, havia uma beleza selvagem naquela mulher, uma força bruta que o intrigava. Ela não era uma jovem deslumbrante como sua ex ou as ficantes, mas uma mulher mais simples, talvez nos seus vinte anos, com um corpo normal realçado pelo short jeans curto e a camiseta simples. O cabelo loiro estava completamente bagunçado, com alguns fios teimosos grudados no rosto suado, mas isso apenas adicionava um charme autêntico à sua aparência. Ela se movia com uma energia quase furiosa, chutando um pedaço de madeira do quiosque e murmurando palavrões. Era evidente que a tempestade havia levado não apenas parte de seu negócio, mas também uma boa dose de sua paciência.
Kael, acostumado a decifrar mentes e comportamentos em reuniões de conselho, tentava entender aquela mulher. A raiva genuína, a resiliência em meio ao caos… algo nela o impedia de simplesmente ir embora. A sede, que ainda o incomodava, tornou-se secundária. Uma curiosidade inusitada o dominou.
Com um suspiro, Kael se levantou do tronco, novamente com a roupa de "turista" parecendo um uniforme de disfarce, e caminhou de volta em direção ao quiosque. A mulher estava agora tentando desenterrar algo da areia, com as mãos sujas e os dentes cerrados em frustração.
— Moça… — Kael tentou, com uma voz mais suave desta vez, quase um murmúrio.
— Eu sei que não está atendendo, mas… você se importaria de me dar uma água? Eu… eu posso pegar, se você disser onde está.
Ela parou, com o corpo tenso, e se virou lentamente, com os olhos escuros cintilando com uma irritação renovada, quase como se ele fosse um mosquito persistente. Ela apontou com o dedo sujo para um tambor azul de plástico, meio enterrado na areia, a poucos metros dela.
— É só pegar, moço! — Ela disse, com a voz áspera e carregada de impaciência.
— Ou vai desidratar e morrer seco. Por acaso é cego? Não está vendo que eu tô ocupada aqui?
Kael piscou, um pouco atônito com a franqueza. Nunca em sua vida alguém havia perguntado se ele era cego. Era uma pergunta absurda, mas, naquele contexto de caos e desespero, soava menos como uma ofensa e mais como um desabafo.
Ele desviou o olhar para o tambor, depois para ela, que já havia voltado à sua tarefa de desenterrar sabe-se lá o quê. Sem dizer mais nada, ele se aproximou do tambor, pegou uma garrafa de água mineral, a última que havia lá dentro, em meio a cervejas e refrigerantes. Agradeceu com um aceno de cabeça, mas a mulher já estava novamente imersa em sua batalha contra os estragos da tempestade, ignorando-o completamente. Kael bebeu toda a água, sentindo o frescor do líquido, mas também a estranha sensação de ter sido completamente despojado de sua autoridade e status.
Com a garrafa vazia em sua mão, um novo dilema se apresentou. Em sua pressa para o que seria uma breve visita de negócios, ele não havia sequer pensado em levar dinheiro vivo, e a máquina de cartão, obviamente, não funcionaria sem energia ou internet. Ele, o mimado rico, estava sem um centavo no bolso. Olhou para a mulher, que agora tentava içar uma lona pesada sobre o buraco no telhado, xingando em voz baixa.
Com um suspiro, Kael se aproximou novamente.
— Moça… — ele começou, com a voz um pouco mais hesitante.
— Eu… eu não tenho dinheiro aqui comigo, e a máquina de cartão… bem, você sabe. O pix não está passando.
Cássia parou, com a lona quase escorregando de suas mãos, e o encarou novamente, com os olhos estreitados.
— E eu com isso, moço? Não trabalho de graça. Primeiro toma a água, depois diz que não tem como pagar, aí aí.
— Não, claro que não. — Kael tentou se explicar.
— Eu gostaria de pagar pela água. Mas como não tenho dinheiro, e as comunicações estão fora… Eu poderia te ajudar com os reparos. Em troca da água. Parece que está com dificuldades.
Ela o estudou por um momento, com as sobrancelhas arqueadas em ceticismo, o cansaço visível em cada linha de seu rosto. Ele, com aquela roupa ridícula e o jeito de quem nunca havia pegado em um martelo na vida, oferecendo ajuda. A cena era quase hilária, mas ela estava desesperada.
— Ajudar? Você? — Ela riu, um som irônico.
— Ok, moço do comercial de cervejas, me ajude. O telhado quebrou e preciso pregar umas tábuas ali em cima antes que a próxima chuva molhe tudo de novo. A escada está ali.
Kael sentiu uma pontada de orgulho ferido pela forma como ela o chamou, mas ignorou. A escada de madeira, velha e instável, estava encostada na parte lateral do quiosque. Ele a posicionou com certa dificuldade, subiu degrau por degrau, sentindo o olhar da mulher sobre ele. O martelo era pesado e pouco familiar em suas mãos acostumadas a canetas e contratos. Ele encontrou uma tábua solta e, com uma concentração quase cômica para alguém tão poderoso, ergueu o martelo. Mirou o prego e… PAH! Em vez da madeira, o martelo acertou em cheio o seu próprio dedo.
Um grito abafado escapou de Kael, um som inesperado. Ele soltou o martelo, que caiu fazendo barulho, e levou a mão ferida à boca, se mexendo com dor, de repente perdeu o equilíbrio. Com um berro, ele despencou na areia, com a bermuda florida subindo e revelando suas pernas pálidas.
Cássia, que o observava, explodiu em uma gargalhada alta e descontrolada. Ela ria tanto que teve que se apoiar no quiosque, com a barriga doendo, as lágrimas escorrendo pelo rosto sujo.
— Ai meu Deus! — ela conseguiu dizer entre as risadas.
— Eu não acredito! Que desastre! Machucou?
A risada dela se intensificou, misturada com um som de exasperação. Ela se recompôs um pouco, secando as lágrimas.
— Tá vendo? Eu sabia que você não era do tipo que pegava no pesado! Vem cá, deixa eu ver essa mão. Tudo bem? Eu te conheço, não é? Você surfa com o Nando?
Rindo, ele disse que sim, surfava às vezes.