P.O.V. HEITOR AVELAR
Depois do estrondo da porta se fechando atrás dela, o silêncio mortal tomou conta do ambiente. Mas minha mente não sossegava nem um instante. O álcool era o único aliado que me restava para tentar aplacar a fúria que a frustração atiçava dentro de mim. Victoria. Só oito letras que queimam minha cabeça como brasa viva. O cheiro dela, uma mistura inebriante de cereja e baunilha, parece impregnado no ar em toda parte que ela pisou. Um perfume sutil, doce, que gruda no nariz, nas paredes, nos móveis — tudo parece ter sido tocado pela sua presença. Não existem palavras que expliquem o turbilhão que me tomou ao vê-la. A forma como sua beleza impacta cada átomo do meu corpo. A serenidade do rosto dela, os olhos verdes tão profundos que parece que eu poderia me perder neles para sempre. Foi um golpe inesperado — a passagem do céu ao inferno em questão de segundos. Ela chegou como um anjo, com fala mansa, jeito delicado. Por minutos consegui enganar a mim mesmo e acreditar que havia algo puro nela. Mas bastou um instante para a demônia promíscua se revelar e destruir todas as chances que eu poderia ter tido. — Não sei se o senhor sabe... — disse ela, com aquela voz mansa, quase provocativa — mas existe uma regra: toda cerimonialista tem que se casar no mínimo sete vezes durante a vida. Aquela frase se cravou em mim como uma faca afiada. Sete vezes... Pensar que ela poderia ter pertencido a sete homens antes de mim me encheu de uma raiva gelada e pulsante, vontade de arrancar tudo que a conectava a eles. Sete sobrenomes. Sete casamentos. Sete homens que tiveram direito ao que deveria ter sido apenas meu. Que tiveram seu toque, seu sorriso, seus beijos, sua pele. — Era só uma piada — tentou amenizar ela, sorrindo. Tentei me agarrar a essa esperança frágil. Mas logo percebi que a realidade era muito pior. Ela não teve sete maridos, não teve nenhum. — Eu nunca cheguei ao altar, porque para mim casar é algo pequeno, sem importância — disse, como quem declama uma verdade universal. — Existem outras mil formas de se relacionar sem precisar do altar. Ela escolheu viver sem amarras, abrindo as pernas sem compromisso, sem valor para si mesma. Quantos homens terão passado por sua cama? Quantas dessas “mil formas” ela terá testado? A mera ideia faz meu estômago embrulhar, minhas veias esquentarem e a dor crescer atrás dos olhos. Eu deveria ter sido o único. Ela não devia ter sido de nenhum outro homem antes de mim. Seus olhos verdes, limpos como esmeraldas, me olham fixos, revelando uma alma que parece transparente, mas cheia de sombras e segredos. Eu queria agarrá-la, explorar cada centímetro daquele corpo voluptuoso, sentir sua pele macia sob minhas mãos. Mas o pensamento que outros já o fizeram antes de mim me lançou ao inferno. A única saída parece ser esquecê-la. Esquecer que ela existe. Pois ela não pode ser minha. Tudo teria sido diferente se ela fosse recatada, digna, intocada. Eu poderia tê-la por inteiro, colocar meu sobrenome nela, dar-lhe tudo o que ela merece — e tudo que desejo. Balancei a cabeça, tentando varrer aqueles pensamentos malditos, quando a porta foi batida de novo. Meu coração disparou. --- Na manhã seguinte, Lorenzo estendeu a mão com papéis que eu deveria assinar. Troquei um olhar rápido com o irmão, e percebi que ambos carregavam o peso de uma insatisfação que não precisavam disfarçar. — Por que demitiu a cerimonialista do nosso casamento? — Lorenzo foi direto ao ponto. A simples menção do nome dela me fez estremecer, uma mistura de gelo e fogo percorrendo meu corpo, irritando-me por ter tomado aquela decisão e, ao mesmo tempo, por ela ainda existir na minha cabeça. — Porque foi preciso. — respondi, seco. — Safira está no quarto... não dormiu a noite toda, nem quis tomar café da manhã, está chateada por sua causa. — Lucca falou, irritado. — Rubi disse que não vai voltar a organizar nada até que Victoria volte. Ela diz que só ela sabe fazer a cerimônia perfeita, do jeito que ela quer e sempre sonhou. — Lorenzo acrescentou. — Não vou nem repetir o que Safira me disse, fico com raiva só de lembrar. — Respondi, endurecendo o olhar. — Elas estão pressionando vocês. Aprendam a impor limites a essas mulheres caprichosas. — Rebati impaciente. Tentei fugir do assunto, fugir dos pensamentos que me consomem desde que ela foi embora. — Eu também imporia limites se não concordasse que a cerimônia tem que ser perfeita. Estou casando com a mulher da minha vida, e se ela acha que só Victoria pode fazer isso, ela tem que estar no projeto. — Lorenzo insistiu, urgente. — Até agora o senhor não disse por que a demitiu. — Não tenho que dar explicações. — Estressei-me. Era absurdo ser interrogado por meus filhos sobre o que faço com meu dinheiro e como comando minha casa. — Não quero essa mulher aqui. — O senhor não precisa falar com ela, nem cruzar com ela se não quiser. Não faz diferença se ela está organizando o casamento ou não. — Faz sim. — respondi sem olhar para ele, distraído nos papéis. Levantei os olhos e vi Lorenzo olhando para o irmão, desconfiado. — Por quê? Ela o desrespeitou? Roubou algo? — Lucca perguntou mais calmo. Minha paciência se esgotou. — Roubou sim. Roubou minha paciência. Veio me afrontar aqui, e isso não posso permitir. Deveriam me agradecer. — Agradecer por fazer a Rubi adiar o casamento? — Ele gesticulou. — O senhor sabe que eu quero me casar o mais rápido possível, que estávamos dispostos a pagar qualquer valor para ela organizar tudo em poucos dias... e agora Rubi não quer nem pensar numa flor sem Victoria. — Flor? Safira está contra mim. Sabe o que é isso? Quer que eu agradeça por minha mulher estar com raiva por algo que não fiz? — Estou livrando suas mulheres de uma má influência, uma mulher vulgar, vadia, sem escrúpulos... — Falar assim dela me deu ainda mais raiva. — Que me disse que dormiu com muitos homens. Isso é o que vocês querem perto das mulheres de vocês? Lorenzo franziu o cenho, calado, suspeitando de algo. — Do que está falando? Por que falou disso com ela? — Não falei, ela jogou isso no meio da conversa. — Rosnei, tomando um gole forte do whisky. — E daí? Pai? O senhor nunca se importou com a vida particular das nossas funcionárias... — Lucca começou a argumentar. — Não me importo, mas quando estão perto das minhas noras, sim. Elas estão tão próximas que agora nenhuma quer se casar. Arranjem outra cerimonialista. — Fiz um gesto de desprezo. — Aposto que tem fila delas para fazer o casamento de vocês. — Para azar nosso, elas são amigas, e não vão desistir. Tem que ser ela. Eu não perdoo se Rubi insistir nisso. Me levantei, furioso. — Já disse para serem homens e impor limites a suas mulheres. Elas são assim porque sempre tiveram tudo. Agora resolvam os problemas de vocês, não me envolvam. — Caminhei para a porta, batendo-a com força. — Pai... — Lucca chamou pelas minhas costas, mas levantei a mão em silêncio e saí. Nove dias depois, na Sicília... Enquanto tento manter a mente ocupada entre reuniões, uma voz familiar atravessa o silêncio da cafeteria, roubando minha atenção e me lançando de volta aos pensamentos que tento esquecer. Ela está ali, tão perto, falando com outro homem, seu riso leve e despreocupado. Meu estômago se revira. É um castigo não poder tocá-la. E eu sei que essa guerra entre nós está longe de acabar.