Mundo de ficçãoIniciar sessãoElena Rossi
O salão havia voltado ao murmúrio de taças e conversas abafadas, mas eu continuei imóvel, sentindo o eco do martelo vibrar dentro do peito.
O corpo ainda estava frio, mas o coração queimava, como um fogo mudo, contido, que não se podia apagar. Por um instante, pensei em respirar fundo, mas não consegui. O ar ali dentro era caro demais.
Não sei quanto tempo fiquei parada, tentando entender o que tinha acabado de acontecer. Quando a voz feminina soou perto, precisei de um segundo para reagir.
— Senhorita Rossi? — ergui o olhar.
Uma mulher de vestido preto, coque impecável e expressão treinada me observava.
— Sou a senhora Moretti, representante do senhor Cavallari. Preciso que me acompanhe, por favor.
O nome dele me atingiu como uma lembrança nova demais para ser confiável.
Assenti, mesmo sem confiar nas pernas. O instinto gritava para correr, mas tudo nela, nos passos precisos, no modo como o perfume não deixava rastros, dizia que qualquer resistência seria inútil.
Segui em silêncio.
O som dos saltos dela contra o mármore era o único som real, um compasso seco que marcava o tempo. A cada passo, os olhares atrás de mim se dissolviam, engolidos por um corredor longo, de madeira escura e cheiro de poder antigo.
No fim, pude ver uma porta dupla, dourada. A mulher abriu-a com um cartão magnético e entrou primeiro.
A sala era grande, fria e absurdamente silenciosa. Uma mesa de vidro no centro, um contrato, uma caneta-tinteiro e um copo d’água perfeitamente alinhados.
— Sente-se, por favor.
Obedeci. Os dedos ainda tremiam quando tocaram o encosto da cadeira. Ela se sentou à frente, folheando papéis com uma eficiência quase mecânica.
— Antes de prosseguirmos, preciso esclarecer as condições do acordo. — A voz era neutra, estudada. — O contrato prevê um período de seis meses, durante o qual a senhorita estará sob a tutela e responsabilidade direta do senhor Cavallari.
A palavra “tutela” cortou o ar.
— Tutela? — repeti, só para ouvir o som que ela fazia.
— Isso significa que todas as suas despesas, moradia e segurança ficarão a cargo dele. — Nenhuma pausa, nenhum olhar. — Em contrapartida, espera-se o cumprimento das cláusulas de confidencialidade e disponibilidade integral.
O papel diante de mim parecia vivo. As letras pequenas formavam linhas duras, cheias de palavras que tentavam parecer neutras, mas o peso delas não era.
“Propriedade temporária.”
“Renúncia a vínculos.”As palavras piscavam como sinais de advertência.
Ela continuou:
— Há também uma cláusula de rescisão. Se desejar interromper antes do prazo, o valor pago deverá ser devolvido.
Senti o ar me escapar, como se alguém tivesse apertado o peito com as duas mãos. Havia números ali, altos demais para qualquer explicação comum. Mas nada disso importava. O valor era suficiente para tudo e o motivo… esse era outro. E ninguém ali precisava saber.
— E se for ele quem quiser encerrar antes? — perguntei.
A mulher ergueu os olhos pela primeira vez.
— Ele sempre pode.
A frieza com que disse isso foi o bastante. Por dentro, algo cedeu, não era medo. Medo de tudo o que eu estar fazendo não fosse suficiente.
Olhei o contrato, as linhas pareciam embaralhadas sob minha vista turva. O papel parecia brilhar, como se me pedisse pressa.
— Onde assino? — perguntei.
Ela hesitou, só um instante. Talvez estivesse surpresa, porque não questionei nada do que estava escrito. Ela sorriu e empurrou a caneta.
— Aqui… e aqui.
A ponta tremia entre meus dedos, mas o traço saiu firme.
Assinei.
Como quem encerra algo que nunca teve começo.
A mulher recolheu as páginas, guardando-as na pasta de couro.
— Muito bem, senhorita Rossi. Agora, por favor, acompanhe-me.
Levantei-me. As pernas obedeceram com atraso.
— Para onde?
Ela consultou o relógio, meticulosa.
— O senhor Cavallari tem um compromisso… e necessita de sua presença.
Meu coração falhou uma batida.
— Agora?
— Agora. — Ela fez um leve aceno. Depois, com voz mais baixa: — Mas, se desejar desistir, ainda há tempo.
Desistir.
A palavra ficou suspensa entre nós, brilhando por um instante.
Eu poderia. Bastava dizer não. Bastava levantar e ir embora. Mas existia uma coisa maior que me forçava a continuar.
— Não. — murmurei. — Vamos.
Ela me observou por um momento, entre respeito e algo que parecia pena.
Depois, virou-se.
O som dos saltos dela ecoou pelo corredor. Eu segui, sem olhar para trás.
O ar do casarão parecia diferente agora, mais pesado, como se cada parede soubesse de algo que eu não podia contar. As vozes distantes se dissolveram atrás de mim. A cada passo, sentia que deixava uma versão minha pelo caminho, como migalhas de uma mulher que já não existia.
Quando as portas se abriram, o vento noturno me cortou o rosto. Lá fora, um carro preto me esperava. Vidros escuros e motor ligado. A mulher segurou a maçaneta e disse com calma:
— Ele não gosta de atrasos.
Assenti, porque não havia o que responder.
Entrei no carro e por um instante, o reflexo no vidro me pareceu o de outra pessoa, alguém que já tinha cruzado o ponto sem retorno.
Fechei os olhos e não rezei por mim.
“Por favor, Deus…”
O resto da frase ficou presa na minha garganta.
Quando o carro partiu, deixando para trás o casarão e seus portões dourados, senti o chão se mover.
Não era medo. Era consciência que a partir daquele instante, não havia mais volta.
E o meu destino, seja qual fosse o motivo que me trouxe até ali, agora pertencia a Damian Cavallari.







