Capítulo 2 : Assinatura em Tinta e Lâmina

Elena Rossi

O salão havia voltado ao murmúrio de taças e conversas abafadas, mas eu continuei imóvel, sentindo o eco do martelo vibrar dentro do peito.

O corpo ainda estava frio, mas o coração queimava, como um fogo mudo, contido, que não se podia apagar. Por um instante, pensei em respirar fundo, mas não consegui. O ar ali dentro era caro demais.

Não sei quanto tempo fiquei parada, tentando entender o que tinha acabado de acontecer. Quando a voz feminina soou perto, precisei de um segundo para reagir.

— Senhorita Rossi? — ergui o olhar.

Uma mulher de vestido preto, coque impecável e expressão treinada me observava.

— Sou a senhora Moretti, representante do senhor Cavallari. Preciso que me acompanhe, por favor.

O nome dele me atingiu como uma lembrança nova demais para ser confiável.

Assenti, mesmo sem confiar nas pernas. O instinto gritava para correr, mas tudo nela, nos passos precisos, no modo como o perfume não deixava rastros, dizia que qualquer resistência seria inútil.

Segui em silêncio.

O som dos saltos dela contra o mármore era o único som real, um compasso seco que marcava o tempo. A cada passo, os olhares atrás de mim se dissolviam, engolidos por um corredor longo, de madeira escura e cheiro de poder antigo.

No fim, pude ver uma porta dupla, dourada. A mulher abriu-a com um cartão magnético e entrou primeiro.

A sala era grande, fria e absurdamente silenciosa. Uma mesa de vidro no centro, um contrato, uma caneta-tinteiro e um copo d’água perfeitamente alinhados.

— Sente-se, por favor.

Obedeci. Os dedos ainda tremiam quando tocaram o encosto da cadeira. Ela se sentou à frente, folheando papéis com uma eficiência quase mecânica.

— Antes de prosseguirmos, preciso esclarecer as condições do acordo. — A voz era neutra, estudada. — O contrato prevê um período de seis meses, durante o qual a senhorita estará sob a tutela e responsabilidade direta do senhor Cavallari.

A palavra “tutela” cortou o ar.

— Tutela? — repeti, só para ouvir o som que ela fazia.

— Isso significa que todas as suas despesas, moradia e segurança ficarão a cargo dele. — Nenhuma pausa, nenhum olhar. — Em contrapartida, espera-se o cumprimento das cláusulas de confidencialidade e disponibilidade integral.

O papel diante de mim parecia vivo. As letras pequenas formavam linhas duras, cheias de palavras que tentavam parecer neutras, mas o peso delas não era.

“Propriedade temporária.”

“Renúncia a vínculos.”

As palavras piscavam como sinais de advertência.

Ela continuou:

— Há também uma cláusula de rescisão. Se desejar interromper antes do prazo, o valor pago deverá ser devolvido.

Senti o ar me escapar, como se alguém tivesse apertado o peito com as duas mãos. Havia números ali, altos demais para qualquer explicação comum. Mas nada disso importava. O valor era suficiente para tudo e o motivo… esse era outro. E ninguém ali precisava saber.

— E se for ele quem quiser encerrar antes? — perguntei.

A mulher ergueu os olhos pela primeira vez.

— Ele sempre pode.

A frieza com que disse isso foi o bastante. Por dentro, algo cedeu, não era medo. Medo de tudo o que eu estar fazendo não fosse suficiente. 

Olhei o contrato, as linhas pareciam embaralhadas sob minha vista turva. O papel parecia brilhar, como se me pedisse pressa. 

— Onde assino? — perguntei.

Ela hesitou, só um instante. Talvez estivesse surpresa, porque não questionei nada do que estava escrito. Ela sorriu e  empurrou a caneta.

— Aqui… e aqui.

A ponta tremia entre meus dedos, mas o traço saiu firme.

Assinei.

Como quem encerra algo que nunca teve começo.

A mulher recolheu as páginas, guardando-as na pasta de couro.

— Muito bem, senhorita Rossi. Agora, por favor, acompanhe-me.

Levantei-me. As pernas obedeceram com atraso.

— Para onde?

Ela consultou o relógio, meticulosa.

 — O senhor Cavallari tem um compromisso… e necessita de sua presença.

Meu coração falhou uma batida.

— Agora?

— Agora. — Ela fez um leve aceno. Depois, com voz mais baixa: — Mas, se desejar desistir, ainda há tempo.

Desistir.

A palavra ficou suspensa entre nós, brilhando por um instante.

Eu poderia. Bastava dizer não. Bastava levantar e ir embora. Mas existia uma coisa maior que me forçava a continuar.

— Não. — murmurei. — Vamos.

Ela me observou por um momento, entre respeito e algo que parecia pena.

Depois, virou-se.

O som dos saltos dela ecoou pelo corredor. Eu segui, sem olhar para trás.

O ar do casarão parecia diferente agora, mais pesado, como se cada parede soubesse de algo que eu não podia contar. As vozes distantes se dissolveram atrás de mim. A cada passo, sentia que deixava uma versão minha pelo caminho, como migalhas de uma mulher que já não existia.

Quando as portas se abriram, o vento noturno me cortou o rosto. Lá fora, um carro preto me esperava. Vidros escuros e motor ligado. A mulher segurou a maçaneta e disse com calma:

— Ele não gosta de atrasos.

Assenti, porque não havia o que responder.

Entrei no carro e por um instante, o reflexo no vidro me pareceu o de outra pessoa, alguém que já tinha cruzado o ponto sem retorno.

Fechei os olhos e não rezei por mim.

“Por favor, Deus…”

O resto da frase ficou presa na minha garganta.

Quando o carro partiu, deixando para trás o casarão e seus portões dourados, senti o chão se mover.

Não era medo. Era consciência que a  partir daquele instante, não havia mais volta.

E o meu destino, seja qual fosse o motivo que me trouxe até ali, agora pertencia a Damian Cavallari.

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