Mundo de ficçãoIniciar sessãoElena Rossi
O carro desacelerou e parou diante do píer envolto por névoa e silêncio. O som do motor cessou, e o mundo pareceu suspenso por um instante.
Ergui os olhos e vi o mar, um espelho líquido e escuro, onde as luzes douradas dançavam com o movimento lento das ondas. A brisa fria da madrugada passou por mim, levantando uma mecha do cabelo e trazendo o gosto salgado do oceano.
Foi então que o vi.
O iate não era apenas uma embarcação. Era uma declaração de poder.
Imenso, imaculado, branco como um templo, com as laterais iluminadas por refletores e o nome gravado em letras douradas: Erebus.
O reflexo das luzes na água fazia parecer que o navio respirava, como se tivesse uma alma própria, feita de luxo e silêncio. Fiquei quieta por alguns segundos, tentando entender onde estava e o que aconteceria a seguir. Ao meu lado, Lara Moretti observava o iate com uma calma quase antinatural.
— O que é isso? — perguntei, com a voz trêmula.
— É a embarcação do senhor Cavallari. — respondeu, sem emoção.
— Por quê… por que estamos aqui?
— Porque embarcaremos. — disse, como se falasse de algo banal. — Um cruzeiro privado, duração prevista de cinco dias.
Pisquei, sentindo o coração falhando um compasso.
— Cinco dias? Eu… — a voz falhou — eu não posso. Minha …
Lara virou-se lentamente para mim, e o simples movimento bastou para me calar.
— Ainda dá tempo de desistir, senhorita Rossi, depende de você.
O vento soprou, trazendo o som das cordas batendo no mastro, e o estalar da madeira contra o píer.
Olhei para o mar, tentando respirar. A imagem de Sofia me atravessou como uma lâmina, o corpo pequeno preso aos tubos, o som intermitente das máquinas. O coração apertou até doer.
— O que pretende fazer? — Lara repetiu, mais baixo, porém firme.
Fechei os olhos. Quando falei, a voz saiu fraca, mas decidida.
— Eu vou.
Ela assentiu, sem expressão.
— Boa escolha.
O motorista abriu a porta. O ar frio atingiu meu rosto como uma bofetada.
Desci devagar, os saltos tocando o chão de madeira com um som que ecoou mais alto do que deveria. Lara caminhava à frente, dois homens de terno esperavam ao pé da passarela e, quando nos viram, afastaram-se em silêncio.
O coração disparava. Cada passo parecia uma sentença.
Subi a passarela devagar e, quando o pé tocou o convés, algo em mim se quebrou silenciosamente, sem volta.
O interior do Erebus era uma afronta ao mundo que eu conhecia. Mármore branco, corrimãos de aço, lustres de cristal, tudo reluzente e frio. O ar cheirava a cedro, conhaque e dinheiro. Eu me sentia pequena, deslocada, como uma peça fora de lugar em um tabuleiro de luxo.
Lara seguiu por um corredor de madeira escura, iluminado por arandelas douradas. Quando parou diante de uma porta de vidro fumê, virou-se.
— Ele está esperando.
Meu estômago se revirou.
— Ele?
— O senhor Cavallari. — confirmou. — Seja respeitosa.
Assenti, tentando esconder o tremor nas mãos, e empurrei a porta.
O som do mar entrou pelas janelas panorâmicas. O salão era amplo, de linhas simples, silencioso demais. Um homem estava de costas, diante do vidro, observando o horizonte.
A postura era precisa, controlada. O terno negro cortava a silhueta larga dos ombros. Um copo de uísque descansava entre os dedos dele, o som do gelo tilintava num ritmo calmo, quase calculado.
Lara anunciou:
— Senhor Cavallari, a senhorita Rossi chegou.
Ele não respondeu de imediato. Apenas virou o rosto, devagar, como quem confirma algo que já sabia. Depois, virou-se por completo e foi então que seus olhos se fixaram nos meus.
Era um olhar que não pedia, apenas tomava. Um homem de traços firmes, rosto impassível, força contida. Nenhum gesto desperdiçado. Nenhuma palavra fora de lugar.
O homem diante de mim parecia ter sido moldado para o poder.
Os cabelos castanhos, penteados com precisão, refletiam um brilho discreto sob a luz do salão, alguns fios rebeldes caiam sobre a testa como um descuido calculado. O terno italiano, de corte impecável e tecido escuro, desenhava-se sobre um corpo másculo e forte, revelando ombros largos, postura ereta e um domínio silencioso de quem nunca precisou elevar a voz para ser obedecido.
O rosto era esculpido em linhas firmes, o maxilar marcado, a barba rente realçava o contorno severo da expressão.
Nada nele era suave.
Cada movimento, cada respiração, carregava uma precisão quase cruel. Era o tipo de homem que não precisava ameaçar para que o mundo o temesse. O silêncio bastava.
— Então você veio. — A voz dele era baixa, grave, aveludada e cortante ao mesmo tempo.
A palavra “você” chegou antes do meu nome e ele me mediu inteira.
Assenti, tentando disfarçar o tremor da respiração.
— Esperava que não viesse?
Ele caminhou até metade da distância. Não o suficiente para me tocar, apenas o suficiente para me prender.
— Esperava mais medo. — murmurou.
A garganta secou.
— Eu… — tentei falar, mas a voz falhou. — Eu estou com medo.
Os olhos dele não se suavizaram.
— Bom. O medo costuma ensinar mais do que a coragem.
As palavras caíram como pedras.
Havia um piano em algum lugar do andar. Duas notas, baixas, repetidas de repente, cessaram. Eu não vi ninguém mandando parar. Eu apenas soube. Fiquei imóvel, sentindo o coração latejar nos ouvidos. Damian inclinou ligeiramente a cabeça, estudando-me como quem analisa uma peça rara.
— Entende o que aconteceu esta noite? — perguntou.
— Sim, senhor. — respondi, num fio de voz.
— Não tenha tanta pressa em responder. — corrigiu, com uma calma fria. — Ainda não entende.
As mãos dele se moveram devagar, depositando o copo sobre a mesa.
— Eu comprei o direito de decidir o que acontece com você nos próximos seis meses. Isso não significa que vá sofrer. Mas também não significa que será fácil.
Assenti, incapaz de dizer qualquer coisa.
— Quero apenas três coisas. — continuou. — Que me escute quando eu falar, que me olhe quando eu quiser e que nunca minta para mim. — Ele virou o rosto para o vidro. — Já mentiu para alguém antes, senhorita Rossi?
Abaixei o olhar, sentindo o corpo reagir com um arrepio involuntário.
— Nu-Nunca. Mas, prometo que vou tentar cumprir as suas exigências.
— Não tente. Faça. — a voz dele cortou o ar. — Eu não trabalho com incertezas.
O silêncio que se seguiu foi pesado. Não havia raiva na voz dele, apenas constatação. Um tipo de controle que não precisava de força, apenas da certeza de que não seria desafiado.
— O senhor… — hesitei — pretende me machucar?
Ele ergueu o olhar, impassível.
— Não. — respondeu. — A menos que me force a isso.
As palavras me gelaram por dentro. Ele se afastou, voltando o olhar para o mar.
— Havia dezenas de mulheres naquela sala… — disse, com calma. — Mas quando anunciaram seu número, você não olhou para ninguém, manteve o olhar no chão. Como quem entende o preço do que está fazendo.
Senti a garganta apertar.
— Eu só… não queria olhar.
— Não importa o motivo. — ele girou o copo nas mãos. — Apenas me fez perceber que você não é como as outras.
Respirei.
O ar tinha cheiro de cedro, conhaque e a nota floral que eu havia passado no pulso, um jasmim macio que me lembrava casa e verão. Eu só percebi quando o olhar dele mudou. Foi um mínimo: o maxilar travou, as pálpebras pesaram meio milímetro, a mão que estava vazia fechou-se até o tendão de cima saltar.
Percebi que Lara desviou rapidamente os olhos, como quem reconhece um erro e o silêncio que existia, mudou de densidade.
Eu baixei instintivamente o braço, cobrindo o pulso. Ele não se moveu. Só a sala se moveu ao redor dele.
— Esse perfume. — A frase veio reta, sem adjetivo.
— De-desculpe… — a voz saiu pequena. — Posso lavar.
Damian aproximou um passo. O suficiente para o jasmim alcançá-lo de novo. O nó no pescoço dele ondulou.
— Troque. — disse. — Nunca mais entre onde eu estiver usando isso.
O pedido não era pedido. Era uma sentença. Mas havia muita coisa por trás da sentença. Não era capricho, era ferida.
— Sim, senhor Cavallari.
Ele não respondeu. Girou o copo, observou o gelo encostar no vidro, o som mínimo de pedra contra o contorno. Eu tinha a sensação de que, se eu respirasse mais alto, alguma coisa cairia de muito alto.
— Por que jasmim? — perguntei, antes que fosse tarde. A voz saiu baixa demais para desafiar. Alta o bastante para existir.
Os olhos dele vieram até mim devagar, como quem escolhe se apaga uma vela ou a casa inteira.
— Eu… não quero errar duas vezes.
Os cantos da boca dele não mexeram. Só o olhar.
— Uma mulher. — disse, enfim. — O cheiro dela entrava antes dela. E ficava quando ela saía.
Não houve mais nada. Nenhum nome, nenhuma história. O copo pousou sobre a mesa e o assunto morreu.
Tentei respirar. Ele virou-se novamente, e quando falou, a voz veio quase num sussurro.
— Vá com Lara. Seu quarto está pronto.
Assenti.
Dei um passo para trás, mas ele me deteve apenas com o olhar.
— Elena… — chamou. — Lembre-se: não há jaulas aqui, apenas escolhas. Mas toda escolha tem um preço.
A voz dele era calma, mas havia um peso que me paralisou.
Quando finalmente consegui me mover, segui Lara em silêncio. O som dos meus próprios passos parecia me denunciar. Atrás de mim, Damian Cavallari permaneceu imóvel. O gelo do copo derretia, e o reflexo da lua tremulava no uísque âmbar. Mas eu sabia, mesmo sem olhar, que ele ainda me observava.
E, por algum motivo que eu não compreendia, esse olhar era mais sufocante do que qualquer corrente.







