Ecos que não se Calam
O cheiro de café coado se espalhava pelo ar enquanto Ana Luísa e Rafael caminhavam pela praça principal de Vale das Rosas. O sol do fim de tarde pintava os prédios antigos com tons dourados, mas a leve brisa que cortava o ar trazia consigo um aviso de que a calmaria era apenas aparente. A conversa entre os dois, apesar da tensão inicial, havia evoluído para uma trégua silenciosa. Rafael parou diante do casarão dos Vasconcellos. A estrutura, imponente e ao mesmo tempo decadente, parecia observar a cidade de cima, como uma testemunha muda do passado. — Esse lugar carrega muitos fantasmas. Disse ele, a voz baixa, como se temesse despertar algo que dormia ali. Ana Luísa o fitou, os olhos acesos de uma determinação recém-descoberta. — E talvez esteja na hora de acordá-los. Não para atormentar ninguém, mas para enterrá-los de vez. Respondeu ela, firme. — Tem certeza de que quer mesmo mexer nisso, Ana? O que você encontrou naquele diário pode ser mais perigoso do que parece. — Não sei o que vou encontrar, Rafael. Mas estou cansada de viver entre dúvidas. Se esse lugar tem algo a dizer, eu vou ouvir. Eles entraram na propriedade, agora silenciosa e coberta por poeira e teias. Os móveis cobertos por lençóis, quadros emoldurando rostos esquecidos, o rangido do assoalho a cada passo. Ana sentia um arrepio subir-lhe pela espinha, não de medo, mas de uma ansiedade antiga, como se as paredes sussurrassem segredos só para ela. Rafael parou diante de uma estante. Seus dedos deslizaram sobre os livros até parar em um volume desgastado, com lombada trincada. — Esse livro... —Meu pai costumava falar dele. Dizia que era onde tudo começou. Ele estendeu o exemplar para Ana, que o abriu com cuidado. Dentro, entre páginas amareladas, havia uma carta escondida. A caligrafia era elegante, mas trêmula. Datada de 1987, assinada por Enrique Vasconcellos. “Se algum dia essa verdade vier à tona, peço perdão pelos pecados que carrego em meu nome. Protegi os meus, mas a que preço? Que justiça pode haver no silêncio?” As mãos de Ana tremiam. — Ele sabia. Sussurrou. — Meu tio sabia e mesmo assim se calou. Rafael a observava com um misto de compaixão e dor. — Talvez ele tenha tentado proteger você. Ou talvez só tenha tentado se proteger. Ana se afastou, encarando um retrato do tio ainda jovem. A semelhança com seu pai era assustadora. Ela se viu, por um instante, cercada por sombras de pessoas que já não estavam mais ali, mas que moldavam cada passo seu. — Eu quero ir até o antigo escritório da prefeitura. Disse de repente. Você me disse que havia algo lá, algo que seu pai tentou expor antes de desaparecer. — Sim. Mas está abandonado há anos. Ainda assim... posso levá-la. — Tenho muita coisa a descobrir Rafael, porém preciso dar um jeito na casa nos cômodos principais primeiro, sinto que vou passar muito tempo por Vale das Rosas. — É Ana, você está certa que um bom trabalho de investigação toma tempo, e você vai precisar de sua casa habitável. Quando saíram da casa, o céu já era uma manta azul-escura salpicada de estrelas. Rafael a acompanhou até a pousada, em silêncio, mas o ar entre eles estava carregado. Na porta, ela se virou para ele. — Obrigada por me acompanhar. Mesmo sem confiar totalmente em mim. Rafael hesitou. Seus olhos vagaram pelo rosto dela, se demorando mais do que gostaria. — Confiança é uma estrada com muitos buracos, Ana Luísa. Mas eu estou tentando. Ele deu um meio sorriso. — Boa noite. Ela ficou observando enquanto ele se afastava, o coração apertado por sentimentos que não sabia nomear: Medo. Curiosidade. Desejo. Mais tarde, já em seu quarto, Ana Luísa olhou novamente o diário. Passou os dedos pela capa marcada pelo tempo. Estava tudo ali ela sabia: nomes, lugares, encontros secretos, ameaças. E agora a carta. Sua cabeça girava com tantas informações. Mas no fundo, algo crescia a certeza de que sua vida jamais voltaria a ser a mesma. Uma batida à porta. Um susto! Ela se levantou, cautelosa. Abriu devagar. Viviane, com expressão cansada, segurava duas xícaras de chá. — Não consegui dormir. Achei que talvez você também não conseguisse. Ana sorriu e a convidou a entrar. Sentaram-se próximas à janela, em silêncio, por um tempo. — Esse lugar tem memórias demais. Comentou Viviane, olhando para o céu. — Seu avô, seu tio, cada canto carrega uma história. Algumas que eu preferia nunca ter escutado. — Por que ninguém nunca me contou nada? Indagou Ana, a voz embargada. — Eu me sinto enganada. Como se minha vida inteira fosse um enfeite bonito coberto de podridões que eu nem sei de que tipo. Viviane segurou sua mão. — Talvez porque você fosse nossa chance de começar de novo. De não repetir os erros. —Mas agora talvez esteja na hora de encarar tudo de frente. E recomeçar, de verdade. Ana assentiu. E enquanto o vento batia leve nas cortinas, soube que estava apenas começando a desvendar os mistérios de sua vida.