Ecos no Papel
Dois dias após a chegada tumultuada, Ana Luísa acordou com o som da chuva batendo firme contra os vidros embaçados do quarto de hóspedes da pousada de dona Zuleide, amiga de infância de sua tia Viviane. A noite havia sido mal dormida, repleta de sonhos fragmentados com vultos, palavras soltas e imagens do velório do tio-avô que se misturavam com o olhar firme de Rafael. Ela desceu as escadas de madeira antiga, cujo estalos denunciavam sua presença. A cozinha tinha cheiro de café fresco e pão assando no forno. Viviane lia um jornal local enquanto mexia o açúcar na xícara. Ana pegou uma caneca e se serviu, silenciosa, ainda envolta pela tensão da noite anterior. –Você dormiu mal. Observou Viviane, sem tirar os olhos da folha de papel. —Sonhei com ele, com o vô, com aquele lugar… Respondeu Ana, sentando-se à mesa. –Mas, acima de tudo, estou com uma sensação estranha. Como se algo estivesse à espreita. Viviane fechou o jornal. –Talvez esteja. Aqui todo mundo tem medo de mexer com o passado. —Você foi muito corajosa de vir! Antes que pudessem continuar, dona Zuleide entrou pela porta dos fundos trazendo uma pequena bandeja de correspondências. Depositou-a sobre a mesa, mas seus olhos hesitaram. —Chegou isso pra você, Ana. Não tem remetente. Curiosa, Ana pegou o envelope bege. Seu nome estava escrito em letras maiúsculas e tortuosas. Ela o abriu lentamente, sentindo um arrepio percorrer suas costas. No papel, uma única frase: "Quem cava o passado, se enterra com ele." Ela franziu o cenho, olhando o papel e depois para as tias. –É alguma brincadeira de mau gosto? Viviane tomou o papel e o leu, empalidecendo. –Isso é um aviso! Zuleide se benzeu. —Aconselho vocês a irem embora. Isso aqui pode não ter sido só sobre herança, Ana. Enquanto isso, em outro ponto da cidade, Rafael estacionava seu carro em frente à antiga sede do jornal Vale em Foco. O prédio, com sua fachada desgastada pelo tempo, parecia suspirar lembranças. Ao abrir a caixa de correio, encontrou uma carta semelhante. O envelope sem identificação e o papel com a mesma caligrafia desajeitada diziam: “Você está chegando perto demais. O silêncio é mais seguro que a verdade.” Ele ficou imóvel por alguns segundos, o coração acelerado. Aquilo não era coincidência. À tarde, Ana decidiu visitar a antiga casa herdada. Rafael, ainda intrigado com a carta, foi até lá para conversar com ela. O encontro foi mais tenso que o anterior, carregado por uma eletricidade não dita e a ameaça em comum que agora os ligava. —Aconteceu algo hoje pela manhã? Ele perguntou, logo ao vê-la na varanda. Ana hesitou, mas logo entregou-lhe o papel. —Chegou para mim. E você? Rafael assentiu, puxando de dentro do casaco seu próprio envelope. Ana arregalou os olhos! —Isso não é apenas sobre memórias. Alguém está observando. —Alguém não quer que a gente continue. Eles se encararam por um instante prolongado. Ana sentia seu peito apertado, mas sua mente fervilhava. Rafael parecia igualmente dividido entre raiva e prudência. —Quem mais teria interesse em nos calar? Ana perguntou. —Talvez alguém que ainda lucre com os antigos acordos que seu tio-avô descreveu no diário e nas cartas. —Pode ser Rafael, mas temos que juntar todo o material primeiro para depois cruzarmos os dados entre eles e suas pesquisas. Como advogada não posso acusar ninguém sem ter absoluta certeza, e para isso precisamos de muita atenção e cuidado. Ela tocou a porta pesada de madeira da antiga propriedade. O trinco gemeu, e ambos entraram. O ar estava impregnado de mofo, mas também de história. Quadros antigos, móveis cobertos com lençóis e uma estante parcialmente desabada compunham o cenário de um passado ainda vivo. Rafael caminhou até uma mesa cheia de papéis amarelados. —Você já começou a vasculhar aqui? –Não. Algo me prende. —Um medo, ou talvez uma intuição de que há algo muito maior escondido. Ele olhou para ela, com sinceridade. —Se tiver, eu vou ajudar. Mas precisamos ser cautelosos. —Essa cidade tem olhos em cada esquina. Ana assentiu, mas não resistiu ao impulso de se aproximar. Por um segundo, os rostos quase se tocaram. Havia algo magnético, urgente, carregado de tudo o que era proibido naquele momento. Mas ela se afastou. —Rafael, a gente precisa manter o foco. —Eu sei. Só me preocupo com você. acho que não esta preparada pelo que vem pela frente Ana. O dia começou a escurecer sob as nuvens carregadas, dando ao casarão uma aparência ainda mais fantasmagórica. Rafael acendeu uma lanterna e juntos começaram a explorar cômodos e gavetas esquecidas, atrás de pistas, diários, qualquer fragmento que pudesse lançar luz sobre quem os ameaçava. E, enquanto os olhos da cidade os observavam silenciosos de janelas entreabertas, um velho rádio empoeirado na sala principal se ligava sozinho, transmitindo um chiado baixo como um sussurro do passado querendo falar.