As Chaves do Passado
A manhã seguinte amanheceu com o céu carregado. Uma névoa fina encobria as colinas ao redor de Vale das Rosas, e o ar tinha o cheiro úmido de terra molhada. Ana Luísa despertou com uma mistura de ansiedade e inquietação. A conversa conturbada com Rafael na noite anterior ainda reverberava em sua mente. Ele a havia desestabilizado não apenas pela hostilidade com que a tratara, mas por aquela intensidade nos olhos que parecia atravessá-la como uma lâmina. Por qual motivo aquele homem a olhou com tanto ressentimento? Ela tinha total certeza que nunca o tinha visto antes. Ela precisava descobrir o motivo de tanta animosidade. No quarto da pequena pousada onde estava hospedada, ela ajeitou a camisa social dentro da calça jeans e prendeu o cabelo num coque prático. Apesar do desconforto da noite anterior, estava decidida a visitar o imóvel herdado. A antiga propriedade dos Vasconcellos era o ponto de partida daquilo que, sabia, mudaria sua vida para sempre. Sua tia Viviane já a esperava no saguão. Estava visivelmente abatida. O velório ainda pesava sobre ambas, mas Ana percebia algo mais nos olhos da tia: Uma hesitação que beirava o medo. — Dormiu bem? Ana perguntou, tentando quebrar o silêncio enquanto saíam da pousada. Viviane assentiu. O suficiente. Tenho pensado muito nessa casa, fazia décadas que ninguém falava nela. Seu tio evitava o assunto como se aquilo fosse um erro a ser esquecido. — E por que ele deixou justamente para mim? Ana questionou, mais para si mesma do que para a tia. Viviane parou diante do carro alugado, pensativa. — Talvez porque ele soubesse que você não fecharia os olhos para o que está enterrado ali. Ana sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha. Ainda não sabia exatamente o que procurar, mas algo lhe dizia que aquela cidade e aquela casa guardavam mais do que histórias de família. — Olha... lá está ela, como sempre imponente. Disse Viviane, apontando adiante. Dirigiram por mais alguns minutos até a entrada da antiga propriedade. Um portão enferrujado rangia ao vento, meio aberto. O casarão herdado ficava no alto de uma ladeira, envolto por árvores altas e um muro de pedra que mal escondia sua estrutura imponente. A pintura desbotada revelava décadas de abandono, e as janelas quebradas, empoeiradas, pareciam olhos fechados por luto. — É maior do que imaginei! Murmurou Ana, descendo do carro. O ar ali era diferente. Carregado. Quase como se o próprio terreno lembrasse os segredos que já abrigara. A casa da família Vasconcellos se erguia no alto de uma colina, majestosa e melancólica. Tinha três andares, janelas altas e varandas que pareciam ter sido projetadas para guardar segredos. O jardim, antes bem cuidado, estava tomado por ervas daninhas. O cheiro de madeira antiga e terra molhada invadia o ar. — Nós vamos precisar de dias para colocar isso em ordem. Disse Viviane ao estacionar o carro. Ana desceu e observou a casa como se esperasse que ela lhe desse as boas vindas A casa erguia-se em meio a um jardim tomado pelo mato alto, com heras cobrindo parte das paredes de pedras e janelas de madeira escurecida. — Parece que parou no tempo. Viviane murmurou. Ana Luísa empurrou o portão e sentiu o estalo das dobradiças, como se estivesse abrindo uma ferida antiga. Caminhou até a porta principal, forçando a fechadura com a chave recebida no escritório do advogado. A madeira rangeu quando a porta cedeu. Dentro da casa, o cheiro de mofo e madeira antiga se misturava ao perfume de hera crescendo pelas paredes. Ana percorreu o corredor principal, as tábuas rangendo sob seus pés. Parou diante de um quadro antigo do seu bisavô, que parecia observá-la com olhos severos. O interior estava escuro, impregnado pelo cheiro de mofo e lembranças. Cortinas pesadas pendiam às janelas, e uma espessa camada de poeira cobria os móveis de madeira maciça. Havia retratos antigos nas paredes: Homens engravatados, mulheres de vestidos longos, todos com a expressão solene típica de fotografias de outro século. — Meu Deus! Disse Viviane, olhando em volta. — É como se ninguém tivesse pisado aqui desde os anos 50. Ana caminhou até uma lareira apagada, onde sobre a prateleira havia um porta-retrato com uma foto de seu tio-avô jovem, ao lado de um homem que ela não conhecia. A imagem tinha algo perturbador, mas ela não soube dizer o quê. — Eu preciso de tempo aqui dentro, tia. Pode voltar para a pousada? Ana pediu suavemente. Viviane hesitou. Tem certeza? — Sim. Acho que é hora de encarar isso sozinha. Viviane assentiu, tocando-lhe o ombro antes de sair. Sozinha, Ana explorou os cômodos escurecidos, passando por uma biblioteca trancada, um escritório com papéis espalhados e até mesmo um porão lacrado com tábuas. Anotou mentalmente os lugares para investigar mais tarde, mas decidiu começar pela biblioteca. Forçou a maçaneta, mas estava travada. Frustrada, virou-se e deu de cara com Rafael, parado à porta principal. — Está me seguindo? Ela disparou, o coração disparado pelo susto. Ele ergueu as mãos, defensivo. A cidade inteira sabe que você estaria aqui hoje. E minha fonte na prefeitura me disse que essa casa esconde mais do que madeira podre e cupim. — Está se referindo ao meu avô? — Estou me referindo a tudo que seu sobrenome significou pra essa cidade. —Você não conhece Vale das Rosas como eu. — E você acha que sabe tudo? Ela desafiou, aproximando-se. Ele não recuou. Ao contrário, manteve-se firme diante dela, os olhos escuros a fitarem com intensidade. — Sei o suficiente pra entender que você está mexendo em um ninho de cobras. —E não estou aqui pra te salvar, Ana Luísa. Só não quero que me atrapalhe. Ela sentiu o sangue ferver. — Eu não pedi sua ajuda, jornalista. — Não, mas parece que vai precisar. Respondeu ele, o tom frio, mas a tensão entre eles inegável. Ana desviou o olhar, respirando fundo. Se está tão curioso assim, por que não me ajuda a abrir a biblioteca? Rafael franziu o cenho, surpreso. — Está me convidando pra violar patrimônio? Ela arqueou uma sobrancelha. — Pensei que você fosse o tipo de cara que adora um furo de reportagem. Ele sorriu de lado, e por um instante, o clima pesado entre eles cedeu a uma cumplicidade tênue. — Tudo bem, Vasconcellos. Mas se formos presos, é você quem explica pra polícia. Presa por arrombar uma porta da minha própria casa? Falou ela com ironia Ana pegou uma chave de fenda na cozinha e a entregou a Rafael. Juntos, forçaram a porta da biblioteca até que ela se abrisse com um estalo seco. O interior estava mergulhado em sombras, mas havia algo no ar, uma vibração diferente. As estantes estavam abarrotadas de livros antigos, mas o que chamou a atenção de Ana foi um painel de madeira levemente deslocado atrás da escrivaninha. — Rafael, me ajuda com isso. Ele aproximou-se e, juntos, empurraram o painel até revelar um compartimento secreto. Ali, coberto por um pano empoeirado, havia um diário encadernado em couro. Ana Luísa pegou-o com mãos trêmulas. — O que será que tem aí? Rafael sussurrou.