Capítulo 4

Peter

Hoje foi incrível. 

Tivemos nosso primeiro encontro, e já estou contando os minutos para o próximo, que será amanhã. Talvez eu leve um presente… ou a sobremesa do jantar. Meus pensamentos estão uma confusão doce no caminho de volta. Pensar nela me deixa leve, flutuando. Ela realmente parece ser tudo aquilo que eu nem sabia que procurava. 

Mas, assim que chego em casa, tudo muda. 

A sala está mergulhada numa tristeza espessa. 

Minha mãe chora, sentada no sofá como se o mundo tivesse desabado. Meu pai está na cozinha, as mãos trêmulas, o rosto duro, virando copos de uísque como quem tenta apagar a realidade a cada gole. Um atrás do outro. 

— Mãe… o que houve? — minha voz falha. 

Ela se levanta e me abraça. Seu corpo treme tanto que quase não a reconheço. Ela soluça como uma criança ferida. 

— Querido… eu… eu perdi o bebê. — As palavras escorrem junto com as lágrimas, cruas, cortantes. 

Eu a abraço com força, tentando segurá-la como se pudesse impedir que ela desmoronasse mais. 

— Tudo vai ficar bem, mãe… algum dia… a senhora terá outro filho. — Minha voz soa mais como um pedido do que uma certeza. 

Ela me aperta ainda mais, como se meu corpo fosse a última âncora que lhe resta. 

— Nenhum filho substitui o outro… meu amor… 

A dor em sua voz me atravessa. Tento ser forte. 

— Mãe… eu prometo que não vou te deixar sozinha. Eu estou aqui. Sempre estarei. 

Ela força um sorriso, me dá um beijo na testa. 

— Eu te amo tanto. 

— Eu também te amo, mãe. — Acaricio seu rosto com cuidado, como quem tenta consolar a própria alma. 

Sigo para a cozinha. 

— Pai… vai com calma. Posso fazer alguma coisa? 

Ele não me encara. Mantém os olhos fixos no copo vazio. 

— Não, filho… você não pode fazer nada. Ninguém pode. Só resta aceitar essa tragédia. 

O jantar está no micro-ondas. Coma e descanse. Eu fico com sua mãe. 

— Quero ficar com vocês… 

— O que precisamos… é saber que você está bem. Se você estiver bem, nós também ficaremos. 

— Tudo bem. Mas se precisarem de mim, me chamem. 

Eu o abraço. Ele demora, mas retribui. 

— Te amo, pai. 

— Também te amo, filho. Vai descansar… ficaremos bem. 

Mas eu sei que não estão. Nenhum de nós está. 

A comida no micro-ondas continua lá. 

Não consigo comer. Sinto o estômago fechado e o peito apertado. Vou para o quarto, tomo um banho e me deito. 

Fecho os olhos, mas o sono não vem. 

Só consigo pensar em Yuki. No jeito como ela sorria, como ouvia cada palavra com atenção. No modo como o toque da sua mão acalmava o que eu nem sabia que doía. 

Mas não posso pensar nela agora. 

Minha mãe precisa de mim. Precisa de tudo o que eu sou. 

E, por mais que doa, preciso esquecer esse sentimento… só por enquanto. 

... 

Já faz uma semana que não vejo Yuki. 

E, nessa ausência, me pergunto se ela sente minha falta… ou se me odeia por não ter dado nenhuma explicação.

A verdade é que, nessa semana inteira, estive com minha mãe, por inteiro. Ela precisava de mim. Era como se, a cada dia, uma parte dela estivesse afundando mais. Então, eu me tornei sua boia. Fiz seu café todas as manhãs, sentei-me ao seu lado nas tardes silenciosas e até aprendi a fazer tricô, só para que ela não se sentisse sozinha. Era o mínimo que eu podia fazer.

Meu pai está diferente também. Mais calado. Mais sóbrio. 

Não sei se melhorou ou se apenas está fingindo por amor à minha mãe. Os dois são pessoas maravilhosas, cheias de amor para dar. Não mereciam esse tipo de dor. Nenhuma família merece.

As aulas estão chegando. 

Nova escola, novos rostos, novos pesos no peito. Pelo menos terei Carlos e Ayumi por perto.

— Peter? Onde você está? — É a primeira vez, em dias, que escuto minha mãe me chamar por nome e não apenas com os olhos cheios de dor.

— Estou na cozinha, mãe!

Ela aparece. Os olhos ainda inchados. A voz, rouca como quem chorou a noite inteira.

— Filho… faz um favor para mim?

— Claro, mãe. O que a senhora precisa? Está tudo bem?

— Está… — mente. — Preciso que vá à farmácia e traga esses comprimidos. Aqui está o dinheiro. Vá rápido, por favor.

Beijo sua face e saio.

No caminho, olho para a casa de Yuki. Seu irmão está parado na porta, me encarando com um olhar duro. 

Desvio o olhar, pego a bicicleta e pedalo o mais rápido que posso. Não quero conversa. Não agora. 

Sei que devo uma explicação. Sei que pareci frio, ausente. 

Mas não podia deixar minha mãe. Ela precisava de mim cem por cento.

Só espero que Yuki me entenda… quando eu tiver coragem de dizer a verdade.

— Bom dia, Tony. Você tem esses remédios? São para minha mãe.

— Bom dia, Peter! Tenho sim. Ah, os seus também chegaram. Vai levar?

— Não, ainda tenho alguns. Obrigado. — Pago e saio antes que a chuva recomece.

— Que bom que chegou, filho — diz meu pai ao me ver. — Seu médico ligou. Pediu novos exames.

Sinto o estômago revirar. 

— Preciso sair. Volto mais tarde, pai.

— Peter… para onde vai? Precisamos conversar.

— Preciso de um tempo. Depois a gente conversa.

E saio.

Pedalo com toda a força que me resta até a floresta. Lá, deixo a bicicleta cair no chão e me ajoelho entre folhas e raízes, tremendo. Choro tanto que nem percebo mais o quanto. Minha cabeça gira. Meu peito aperta. Meus pensamentos me esmagam. Estou apaixonado por uma garota ruiva… e isso, por mais doce que pareça, me deixa ainda mais perdido.

Me odeio por tudo. Só queria desaparecer por um tempo. 

Não sei mais se devo me preocupar comigo… ou com meus pais… ou com Yuki. Não sei de nada.

Andando sem direção, encontro uma árvore grande, robusta, como se me esperasse. Escalo seus galhos, me deito em um tronco e adormeço. Talvez pela exaustão. Talvez pelo cansaço de sentir tanto.

Acordo com a noite me abraçando.

Volto para casa. 

Meus pais estão na sala. Olhares assustados.

Meu pai se aproxima. Um tapa forte atinge meu rosto, mas, no segundo seguinte, ele me puxa num abraço.

— Onde você estava? Estávamos desesperados!

— Eu dormi na floresta. Mas estou bem… — Tento parecer firme. É em vão.

— Na floresta?! Você enlouqueceu? Sua mãe e eu… não podemos perder mais um filho…

Ele está à beira do colapso. Anda de um lado para o outro, sem saber se grita ou chora.

— Me desculpa! Nunca mais farei isso. Juro. Só… só queria um tempo. Não queria magoar vocês.

— O que você foi fazer na floresta?

— Nada. Mãe… eu só fiquei assustado. Me desculpa…

Ela se aproxima, seus olhos ainda vermelhos. Acaricia minha cabeça.

— Não precisa se desculpar, meu amor. Eu sei… é difícil demais. Mas fugir nunca resolve.

— Eu sei…

— Vai descansar. Depois conversamos, tá?

— Boa noite, mãe. Boa noite, pai.

Subo para o quarto. Não janto. Não quero nada. Só me deitar. Só… tentar não sentir.

Ela tem razão. Fugir não adianta. 

A dor me acompanha. E vai continuar me acompanhando… para onde eu for.

...

Na sala de espera da Dra. Méndez, meus olhos repousaram sobre uma cópia do quadro Impressão, nascer do sol, de Monet. Aquela pintura sempre me trouxe paz. Tirei uma foto e, sem pensar muito, a coloquei como papel de parede no celular. Talvez assim eu me lembrasse de respirar.

— Sr. e Sra. Jones, Peter... podem entrar — chamou uma voz feminina. — Sou a Dra. Méndez e serei sua nova médica. Aqui estão seus exames antigos. Vi que teve um infarto há alguns meses, causado por estresse.

— Sim, doutora — respondeu minha mãe, sentando-se ao meu lado. — Aconteceu na escola. Recebemos uma ligação da diretoria, dizendo que ele estava sendo levado de ambulância ao hospital. Largamos tudo e corremos para lá.

— Peter, consegue me dizer o que causou todo esse estresse?

Engoli em seco. O consultório novo, a médica nova… tudo isso me fazia querer me encolher. Era mais fácil com o Dr. James — ele já sabia de tudo, cada detalhe. Recomeçar sempre me dá a sensação de estar me despindo por dentro.

— Pode falar — ela insistiu, com um tom sereno. — Não estou aqui para julgar.

Respirei fundo, segurando a ansiedade no estômago.

— Eu tenho crises de ansiedade e de pânico... A cidade grande, a agitação, as pessoas… tudo aquilo me fazia mal. Por ser diferente, acabei sofrendo muito bullying. No dia do infarto, eu estava atrás da escola tocando violão. Alguns garotos me viram e começaram a me provocar. Tentaram me puxar pelos braços... Revidei, acertei um soco. Eles tomaram o violão, me espancaram e, no fim, quebraram ele inteiro. Ali mesmo comecei a sentir uma dor no peito, falta de ar… tudo ficou turvo. Caí. Lembro deles correndo. Depois, apaguei.

— Ele precisou passar por cirurgia — completou meu pai, sério.

— O que você teve, Peter, chama-se Síndrome de Takotsubo. É um tipo de infarto causado por estresse extremo. Você mencionou que essas crises acontecem há muito tempo… desde quando, exatamente?

— Desde que começou o bullying, eu acho. As duas coisas cresceram juntas.

— Vamos repetir todos os exames para ver como está agora, tudo bem? Você ainda toma alguma medicação?

— Só para ansiedade.

— Certo. — Ela escreveu algo em sua prancheta. — Aqui estão os encaminhamentos: eletrocardiograma, ecocardiograma e dosagem de enzimas cardíacas. Quero vê-lo novamente em duas semanas, com todos os resultados.

...

Hoje é meu primeiro dia na nova escola.

Visto o uniforme com mãos trêmulas, tomo um café da manhã reforçado, dou um beijo em meus pais e saio. O céu está nublado, o ar ainda úmido da chuva da madrugada. No fundo do peito, a ansiedade dança feito uma tempestade prestes a cair.

Na entrada da escola, encontro Ayumi e Carlos. Ayumi agarra meu braço com seu jeito carinhoso de sempre e deposita um beijo no meu rosto. Gosto muito dela, é como a irmãzinha que nunca tive. Meiga, fofa, um raio de sol em forma de gente.

— Bom dia, pessoal! — Digo.

— Bom dia, Peterzinho! — Responde ela, sorrindo.

— Bom dia, maninho! — Completa Carlos, bocejando.

— Uau, Carlos! O que falta de animação em você, tem de sobra na Ayumi.

— Eu não dormi por causa dela — reclama ele. — Passou a noite inteira no celular com as amigas, gritando e eufórica. E ainda colocou em viva voz... vozinhas finas, pareciam gralhas!

Não aguentei e comecei a rir. Ayumi cruzou os braços, emburrada, e mudou de assunto.

— Peter, você precisa conhecer nossos amigos. Vem, vou te apresentar.

Foi um pesadelo. Cada nova apresentação parecia um pequeno terremoto interno. Minhas mãos suavam dentro do bolso do casaco, minha garganta apertava, e um nó crescia com a vontade de chorar. Quando o sino tocou, fugi para o banheiro. Joguei água no rosto, respirei fundo, tomei um comprimido e me esforcei para seguir em frente.

Na sala, algo me paralisou.

Yuki.

Ela estava ali.

Na mesma sala, na mesma escola.

O choque foi instantâneo. Um peso tomou meu peito. Senti a necessidade urgente de me explicar, de pedir desculpas. Antes que pudesse fazer qualquer coisa, Ayumi me arrastou até ela.

— Yuki, quero te apresentar o Peter!

Yuki me encarou por um instante. Seu olhar era uma mistura de surpresa e decepção. Sem dizer nada, virou-se e saiu andando.

Fui atrás.

— Espera! Quero pedir desculpas...

— Não precisa. Você não me deve nada — respondeu, fria. — Não somos nada. Então, não se desculpe.

As palavras cortaram como lâmina. “Não somos nada.” Meu coração pareceu despencar. Voltei para sala, atordoado, e fui direto até Carlos.

— Carlos, preciso de sua ajuda.

— Pode falar.

— Quero que você prenda a Yuki na sala ao lado comigo. Só nós dois, ok?

— Ficou louco, Peter? Ela vai surtar. No ensino fundamental ela me batia sem motivo! Não quero apanhar de novo.

— Sem motivo, Carlos? — interrompeu Ayumi, cruzando os braços. — Você a provocava o tempo todo!

— Eu sei... errei muito com ela.

— Errar é humano. — Interrompi. — Mas preciso conversar com ela. Tenho pendências a resolver.

— Certo. Eu ajudo. Mas... o que aconteceu entre vocês?

— É, vocês se viram e ficaram estranhos — disse Ayumi, desconfiada.

— Saímos uma vez. No segundo encontro... eu não fui. Depois, comecei a evitar. Foi errado.

— Não acredito! Ela é minha melhor amiga e não me contou nada.

— Eu não podia. Minha mãe perdeu o bebê naquela mesma noite. Ela precisou de mim... eu não podia deixá-la.

— Agora entendi — disse Carlos, mais calmo. — Vou te ajudar, amigo.

Mais tarde, Carlos cumpriu o combinado. Chamou Yuki na sala ao lado, conversou com ela por um tempo e depois nos deixou sozinhos.

— Oi...

— Oi. O que está fazendo aqui?

— Preciso explicar o que aconteceu naquela semana. Eu não queria sumir...

— Já disse que não precisa explicar nada.

— Preciso sim. Não quero te magoar.

— Não estou magoada. Nem com raiva.

— Está sim... sua voz te entrega. E seu olhar também.

Aproximo-me devagar. Acaricio seu rosto, minha voz falha. Há uma tensão entre nós, um silêncio cheio de tudo o que não foi dito. Nossos corpos se aproximam, quase como se pertencessem ao mesmo espaço. Encosto minha testa na dela. Sinto vontade de beijá-la. Mas não chego a fazê-lo.

Somos interrompidos.

Willian surge repentinamente, me puxa e me dá um soco.

— Sai de perto da minha irmã, seu idiota!

— Calma! Eu só queria conversar!

— Conversar? Com a boca colada na dela?

Ele me pega pela camisa, pronto para outro golpe.

— Eu não fiz por mal. Minha mãe perdeu um bebê naquela noite... eu precisava cuidar dela. Ela piorou muito, e eu não podia deixá-la.

Fico tremendo. Chateado. Irritado. Aquilo foi injusto. Eu tive meus motivos.

— Você poderia pelo menos ter avisado...

— Willian, chega. Eu já disse que ele não me deve explicação nenhuma. Solte-o — ordena Yuki.

Willian me solta. Ainda sinto o gosto metálico da raiva e do soco.

Yuki olha para mim com tristeza nos olhos. Compreensão também. Mas o corredor agora está cheio de olhares e sussurros. Todos parecem saber.

Fujo. Corro para o banheiro, tentando digerir tudo.

De volta ao corredor, vejo Yuki correndo. E Willian atrás. Ela o deixou para trás. Por quê?

Mil coisas passam pela minha cabeça.

A aula está quase no fim, e ela ainda não apareceu. Talvez tenha ido embora. Sinto um aperto estranho no peito — algo entre culpa e saudade.

Então, sem aviso, ela surge na porta da sala.

Seus olhos estão inchados, avermelhados, como se tivessem chorado por dias. Meu coração se contorce. Fui eu quem a magoou. E agora está ali, fingindo normalidade, mas é só olhar por um segundo para sentir a tristeza que transborda dela, mesmo em silêncio.

— Isso é hora de chegar na minha aula? — diz a professora com voz cortante. — História não é conto de fadas, mocinha. Isso aqui é importante. Trinta minutos de detenção. É seu primeiro aviso.

Yuki não responde. Apenas abaixa a cabeça e caminha até sua carteira. A dor dela ocupa o ambiente, densa como neblina.

No intervalo, atravesso o refeitório à sua procura. Quando a vejo, corro até ela.

— Yuki, espera... preciso falar com você.

— Peter, agora não. — A voz dela está embargada, os olhos marejados.

— Por favor, fala comigo. Sei que errei. Me perdoa. Eu posso explicar tudo.

Ela hesita. Então, sem dizer mais nada, me envolve num abraço apertado. Começa a chorar com força, como se estivesse guardando aquilo há anos.

— Calma... eu tô aqui — digo, passando os braços em volta dela.

— Por favor, não me solta — ela sussurra, a voz quase se desfazendo.

— Vamos para um lugar mais tranquilo. Só nós dois.

Seguimos para a ala de teatro. Nos sentamos no palco vazio, rodeados por fantasias antigas e instrumentos esquecidos. O silêncio dali parece respeitar a dor que ela carrega.

— Yuki... o que aconteceu? Por que está assim?

Ela tenta falar, mas as lágrimas vêm antes das palavras. Apenas chora. Então a abraço de novo, tentando ser um abrigo.

— Eles estão voltando — diz, entre soluços. — Eles não podem voltar. Eu não quero estar aqui quando eles chegarem. Eu não consigo... não quero vê-los, nem os ouvir. Nem sentir o cheiro deles. Isso é demais para mim...

— Calma... quem está voltando? Eu não estou entendendo.

— Meus pais — ela diz, com a voz partida. — Eles voltaram. E eu não quero vê-los. Eu não posso.

— Mas... eu pensei que seus pais estavam mortos.

Ela desaba outra vez, com ainda mais força.

— Eu menti.

Silêncio.

— Se... se você quiser me contar... — digo, baixinho — por que eles foram embora?

— Eles não “foram embora”, Peter. Eles me abandonaram. Eu tinha cinco anos. Me deixaram num orfanato... e levaram o Will. Me deixaram sozinha.

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