Mundo de ficçãoIniciar sessãoYuki
Acordei febril, com a cabeça latejando como se o mundo girasse num ritmo próprio, alheio ao meu. Talvez não devesse ter chorado tanto ontem. Mas quem segura o que transborda?
— Mana, acorda. Já está na hora.
— Bom dia, Will. — Respondi, a voz rouca e frágil depois de tossir.
— Bom dia! — Ele se aproximou devagar, tocando minha testa com a palma quente. — Nossa, Yuki... Você está pegando fogo.
— E com dor de cabeça também.
— Fique de repouso. Vou preparar seu café da manhã. Se piorar, te levo ao médico.
Ele saiu do quarto e me deixou ali, de olhos fechados, tentando descansar. Mas a paz não durou muito. A voz de Peter ecoou em minha memória como uma melodia insistente. Meu coração acelerou, era irracional, mas inevitável. Levantei-me da cama, empurrada por algo que nem eu entendia, e desci as escadas com passos lentos. Quando o vi, tentei não deixar escapar a ansiedade que me apertava o peito. Ele parecia preocupado. Ou talvez só curioso. Nunca sei distinguir.
Disse a ele que estava doente por causa do choque térmico do banho, mas no fundo eu sabia: era meu emocional desmoronando mais uma vez. Sempre permito que meus sentimentos me afoguem. E isso me enfraquece.
Mesmo assim, Peter se mostrou gentil, atencioso. Me olhava com cuidado. E eu, tola, me encantei. Will, por outro lado, estava desconfiado. Não gostava de estranhos em casa, e tinha razão. Ele se esforça tanto para cuidar de mim e manter tudo em ordem... obedecê-lo é o mínimo que posso fazer para que também fique em paz.
Voltei para o quarto. Deitei-me novamente, mas minha mente vagava. Não sei por que, mas queria ver Peter de novo. Meu coração batia mais forte só de lembrar seu rosto. Havia algo nos olhos dele... algo familiar.
Will entrou, interrompendo meu devaneio.
— Aqui está seu café da manhã. Preciso ir trabalhar agora, mas se quiser, posso ficar.
Ele me entregou um croissant de presunto e queijo, acompanhado de uma xícara de café forte — exatamente como gosto. Sorri com gratidão.
— Não precisa, meu irmão. Ficarei bem. Pode ir tranquilo.
— Qualquer coisa, me liga. Venho correndo. — Ele beijou minha testa e saiu.
Era sábado. E meu corpo não me dava outra opção a não ser descansar. Comi, me aconcheguei sob as cobertas e assisti a desenhos animados no celular. Dentro de mim, uma inquietação insistia. Daqui a quinze dias as aulas retornariam e eu não queria perder o primeiro dia.
Após uma hora presa entre lençóis e pensamentos, resolvi caminhar um pouco no jardim. O céu cinza dava ao mundo uma tonalidade melancólica, mas ainda assim me arrisquei. Logo o tédio me empurrou até o parque. Andando entre as árvores, vi Peter sob uma grande e robusta figueira. Ele sorria, lendo algo com expressão leve, aquele sorriso... bagunçava minha mente.
— Olá, Peter! O que está fazendo?
— Olá! Estou tentando compor uma música. E você? O que está fazendo aqui fora? Vai acabar piorando... — disse, levantando-se, visivelmente preocupado. Seu olhar era tão gentil.
— Eu sei... só queria respirar um pouco. Ficar em casa estava insuportável.
— Já que está aqui... aceita dar uma volta comigo?
Meu coração disparou. Sorri, tímida e aceitei. Caminhamos ao redor do lago, compramos pães e alimentamos os patos, peixes e pássaros. Cada passo ao lado dele parecia um trecho de algo novo, algo que ainda não sabia se era sonho ou começo.
Quando o ouvi dizer aquilo, meu coração disparou como se o mundo tivesse parado por um segundo só para ouvir sua voz. Sorri, quase sem perceber, e aceitei o convite com um leve aceno. Caminhamos juntos ao redor do lago, em silêncio por alguns instantes, como se a presença um do outro já fosse suficiente. Compramos pães e fomos alimentar os patos, os peixes e os pássaros, havia algo de poético naquele momento simples, como se a vida sussurrasse que era possível respirar com leveza, mesmo em meio ao caos.
— Gostaria de almoçar comigo? — perguntou ele, inclinando-se em uma reverência brincalhona, feito um príncipe encantado.
— Como eu poderia negar o convite de um doce cavalheiro? — respondi, sentindo o rubor aquecer meu rosto. Falar assim pareceu estranho, quase teatral, mas era impossível ser natural com ele por perto. Estava no automático, tropeçando nas palavras. Ele riu, e isso me aliviou.
Seguimos para o Ristorante Antonella Rosseti. O ambiente era acolhedor, perfumado com aromas de ervas frescas e molho de tomates recém-preparado. A luz suave entrava pelas janelas de vidro, pintando a mesa com reflexos dourados.
— O que a senhorita vai querer? Pode escolher o que quiser. — disse ele, com um sorriso gentil.
— Escolha você. Quero saber do que gosta.
— Espero que confie no meu gosto... Garçom?
— Pois não, senhor. Gostaria de fazer o pedido?
— Sim. De entrada, brusquetas com presunto de Parma, queijo e rúcula. Como prato principal, nhoque de ricota e espinafre ao molho à bolonhesa. Para sobremesa, pudim. E para beber, suco de uva.
— Perfeitamente. Em breve trago os pratos.
— Nossa... quanta classe, senhor Peter. — disse, divertida.
— Obrigado. Me acostumei desde cedo a frequentar jantares de negócios com meus pais. Peguei o jeito com eles... e com os senhores engravatados com quem fazem parceria.
— E o que eles fazem?
— São donos de cafeterias e restaurantes em Atena. Sempre cheios. As pessoas amam a comida deles. — Seus olhos brilharam com orgulho. — Recentemente compraram um prédio aqui na cidade. Vão começar as reformas logo.
— E você? Também trabalha com eles?
— Ainda não. Por enquanto estou focado nos estudos. Mas meu pai quer que eu comece logo a treinar para assumir a gerência. Eles me colocaram em todos os cursos possíveis para me preparar.
O sorriso encantador de Peter vacilou. Seu corpo ficou tenso na cadeira, e algo em sua expressão perdeu o brilho.
— Você não parece animado... Não quer isso, quer?
— Eu... — ele hesitou, depois suspirou. — Eu quero cantar. Ser músico. Amo a arte. Meu coração é de artista. Não me vejo preso em reuniões em que só se fala de números.
— Então cante. Siga seu sonho.
— Não é tão simples quanto parece... — murmurou, desviando o olhar. — Mas... não quero falar disso agora. Quero aproveitar esse momento com você. Me pergunte qualquer outra coisa.
— Então... — sorri, tentando aliviar o peso da conversa — onde você cresceu?
— Em Atena. Uma cidade sempre apressada. Carros demais, prédios demais, pessoas demais. Todos vivem correndo. Ninguém tem tempo para nada. Existe um parque lindo lá, cheio de flores de todas as cores..., mas ninguém para olhar. Todos estão sempre estressados. E o ar... é pesado, difícil de respirar.
— Você fala com tanta aflição... Você odeia Atena?
Ele encarou a mesa por alguns segundos, como se escolhesse as palavras com cuidado. E havia dor em seu silêncio.
— Odeio. Odeio me sentir como se estivesse sempre perdendo algo... como se a vida passasse ao meu lado e eu nunca tivesse tempo de tocá-la. Tudo aquilo estava me adoecendo. — Sua voz era um sussurro carregado de exaustão.
Havia algo em sua tristeza que me tocava fundo, como se suas palavras ecoassem dentro de mim.
— Essa cidade é maravilhosa... — murmurei, olhando pela janela — Eu amo a paisagem, tudo é tão verde, com montanhas que se estendem até perder de vista. Árvores enormes e majestosas, flores de todas as cores e perfumes. Animais soltos, vivendo sem interferência. Pessoas que sorriem, que respiram ar puro. Tudo aqui parece vivo... parece certo.
Fiquei surpresa com o que saía da minha boca. Nunca havia olhado para minha cidade com tamanha ternura. Era como se os olhos de Peter tivessem me emprestado uma nova forma de ver.
As entradas chegaram. O aroma era inebriante, aquecia o estômago antes mesmo da primeira garfada. Sabores intensos, acolhedores, perfeitos. Logo o prato principal e a bebida também vieram, e tudo parecia ter sido escolhido com cuidado — ele realmente tinha bom gosto.
— Me fale sobre você, Yuki. O que gosta de fazer?
— Gosto de ler, escrever, desenhar... e dançar. — Respondi, sentindo uma pontada de timidez.
— Dança para mim algum dia? — perguntou, encarando a taça que girava entre seus dedos. Por um segundo, seus olhos se desviaram para mim, e aquele gesto me desarmou.
— Claro... — respondi baixinho, sentindo minhas bochechas queimarem.
— E seus pais? Estão viajando?
A pergunta me fez prender a respiração por um instante. O nó na garganta apertou, mas engoli a dor com delicadeza.
— Não... Eu moro só com o Will. Não temos mais nossos pais.
— Ah... — ele desviou o olhar, tocado — Me desculpe. Sinto muito.
Houve um breve silêncio, até que ele respirou fundo, como quem precisa muito dizer algo.
— Yuki, posso te falar uma coisa?
— Pode.
— Você é... encantadora. Seus cabelos ruivos me lembram os fins de tarde do verão e o calor suave do outono. Seus olhos são hipnotizantes, e suas sardas... são como pequenas constelações no seu rosto. Você é linda. De verdade.
Fiquei sem palavras. Ninguém nunca havia falado assim comigo. Minha pele queimava, meu coração batia rápido demais.
— Ninguém nunca me disse algo assim... — Confessei, tentando controlar o caos dentro de mim.
— Só um louco não veria a beleza que você carrega. — Ele sorriu. — Vou exaltá-la sempre que puder, pequeno floco de neve.
“Floco de neve...” Ele sabia o significado do meu nome. Como? Pesquisou? Se interessou tanto assim por mim? Será que o Will tem razão em se preocupar? Nunca vivi algo assim. Nenhum garoto nunca me olhou assim. Talvez... isso tudo seja um alerta. Ou talvez... eu esteja começando a enlouquecer.
— Você também é muito bonito... — minha voz escapou antes que eu pudesse pensar. — Suas covinhas são encantadoras.
O que estou dizendo?
— Assim eu me apaixono. — respondeu, rindo baixo, enquanto se inclinava e segurava minhas mãos.
Senti o mundo girar.
— Oh! Já está tarde! Will vai me matar se não chegar logo... — murmurei, levantando quase que por reflexo. Ele me confunde. Tira meus pés do chão. Me faz falar sem pensar. Como se meus sentimentos tivessem voz própria e saíssem sem filtro. O que está acontecendo comigo?
— Espere. Vou pegar nossa sobremesa para levarmos.
No caminho de volta, paramos para comer algodão-doce. Não falamos muito. Mas não era um silêncio desconfortável — era um silêncio cheio. Cheio de pensamentos, de coisas que não sabíamos como dizer. Cheio de sentimento.
Quando chegamos em casa, o relógio marcava 15h.
— Foi uma honra ter sua companhia. — disse ele, pegando minha mão e a beijando com um gesto tão antigo, tão raro... quase esquecido no tempo.
— Eu também adorei. Na verdade... até minha febre passou. — Sorri tímida.
— Fico feliz em ter ajudado, agor...
— Você quer jantar aqui hoje? — perguntei, sem pensar, interrompendo-o.
Ele sorriu com doçura, mas seus olhos estavam compreensivos.
— Muito obrigado pelo convite. Mas hoje tenho uma comemoração com meus pais. E... sinceramente, acho que seu irmão ainda não confia em mim. E ele está certo em ser protetor.
— É, ele é mesmo. — Suspirei. — Bem... até outro dia, então.
Virei-me para entrar, mas ele segurou minha mão de repente. Meu coração congelou por um segundo.
— Hoje não poderei..., mas amanhã estarei livre. Você aceitaria sair comigo de novo... para um segundo encontro?
— Segundo encontro? Então esse foi...?
— Nosso primeiro. E espero que o primeiro de muitos. Gostei muito de você, Yuki.
Sorri. Não consegui evitar. Meu coração parecia dançar no peito.
— Eu adoraria.
Ele se aproximou e me deu um beijo leve no rosto. Tão simples... e tão arrebatador. Depois, se afastou devagar, deixando em mim uma vontade estranha de que o dia não tivesse fim.







