Mundo ficciónIniciar sesiónPeter
A chuva hoje não deu trégua. Estou na casa do meu amigo Carlos desde ontem, revisando os conteúdos da escola para não me perder nas matérias. Carlos, sua irmã Ayumi e eu nos conhecemos no dia em que cheguei à cidade com minha família. Desde então, eles se tornaram meu ponto de apoio nesse novo lugar.
Foxcity é pequena, mas tem uma beleza serena que encanta. As casas, todas feitas de madeira, têm jardins bem cuidados e árvores que parecem guardar segredos antigos. Ao redor, montanhas se estendem até onde a vista alcança, cercando florestas vivas e intocadas. Os animais caminham livremente, sem medo, e o ar... o ar aqui tem gosto de recomeço. É limpo, fresco, diferente do da cidade grande. Um verdadeiro refúgio. Parece um lugar onde nada de ruim pode acontecer, quase como viver dentro de um conto de fadas.
Na volta para casa, a chuva continua pesada. Esqueci meu guarda-chuva, então puxo o capuz do casaco para me proteger e corro pelas ruas encharcadas. Chegando em frente à minha casa, percebo que cometi outro erro: deixei as chaves sobre a cama. Chamo pelos meus pais, mas não tem ninguém. Eles saíram cedo para o trabalho e ainda não voltaram.
Pensei por alguns segundos. A rua estava deserta, a água escorria pelas calçadas, e o vento cortava como gelo. Decidi tentar a sorte com os vizinhos. Caminhei até uma das casas ao lado e bati à porta, torcendo para ser recebido.
Logo, uma menina abriu. Ela segurava uma lanterna, e por um instante, o mundo pareceu parar. Seu cabelo ruivo caía em ondas suaves até a cintura, e seus olhos azuis brilhavam como um céu limpo depois da tempestade. O rosto pálido era salpicado por sardas delicadas, como constelações dançando sob a pele.
Ela parecia ser uma pessoa gentil, apesar da evidente hesitação. Por um instante, cogitei voltar para a casa de Carlos e não incomoda-la mais, mas antes que eu desse meia-volta, ela abriu a porta um pouco mais e, com um gesto silencioso, me deixou entrar. Me ofereceu uma toalha e roupas secas do irmão, com aquele tipo de gentileza que parece vir acompanhada de um certo esforço — como se confiar fosse algo que ela estivesse tentando reaprender.
A casa estava sem energia. Provavelmente o bairro todo. Ela me indicou o quarto do irmão, e subi com cuidado, guiado apenas pelas sombras.
O quarto era amplo e acolhedor. Duas grandes janelas brancas iam do chão ao teto, permitindo que a luz cinzenta da tempestade iluminasse o espaço com suavidade. A cama, enorme, estava coberta por um edredom grosso com estampa de galáxia — como se o universo inteiro repousasse ali. Um tapete felpudo aos pés da cama, uma guitarra vermelha pendurada na parede, um guarda-roupa simples e, perto da cama, uma escrivaninha com um notebook fechado, algumas canetas, um caderno e uma foto: Yuki e seu irmão ainda crianças, sorrindo. Na parede acima, uma prateleira cheia de livros.
Troquei de roupa lentamente, observando os detalhes daquele cômodo. Era um reflexo silencioso de quem o habitava — alguém criativo, talvez introspectivo, mas cheio de vida. E, de alguma forma, aquela atmosfera me confortou.
Desci as escadas com cuidado, tateando cada degrau escuro. Não havia luz, apenas o som da chuva lá fora e o aroma de chocolate quente que se espalhava pela casa como um convite.
Yuki estava de pé diante do fogão, concentrada. A luz suave de uma lanterna iluminava parcialmente seus traços. Fiquei ali, em silêncio, apenas observando. Havia algo hipnotizante em sua forma de se mover — um cuidado tímido, quase ensaiado.
Ela se virou de repente e me olhou. Nossos olhos se cruzaram, e no mesmo instante ela se queimou. Um pequeno susto, uma careta de dor. E eu... ri. Não devia, mas foi involuntário. Ela desviou o olhar, claramente sem graça, e voltou-se rapidamente para o fogão.
"Talvez eu tenha sido insensível. Devia ter perguntado se ela estava bem."
Fomos para a sala com nossas canecas fumegantes nas mãos. O chocolate quente era delicioso. Denso, cremoso, com pequenos marshmallows coloridos que derretiam suavemente na boca. Tinha gosto de infância, de abrigo.
Quis conversar com ela, perguntar seu nome completo, sua cor favorita, o primeiro livro que leu. Mas percebi o quanto estava desconfortável. Talvez eu tivesse invadido seu espaço mais do que deveria. Mas a tempestade lá fora só piorava. E o silêncio, apesar de denso, era melhor que a chuva gelada.
A sala era simples e aconchegante. Uma estante branca repleta de livros ocupava a parede ao fundo, ao lado de um sofá espaçoso e duas poltronas vinho. Um tapete macio aquecia os pés. Sobre a parede principal, um quadro grande com uma árvore de cerejeira pintada com delicadeza, como se feito por mãos que amam o silêncio. Vasos com plantas estavam espalhados pelos cantos, trazendo cor e vida.
Depois de alguns minutos, tentei puxar assunto. Falei sobre livros, uma aposta segura, considerando a estante lotada. Seus olhos brilharam um pouco, e então ela falou. Sua voz era doce, leve, como o som de folhas tocando o chão. E, por um instante, desejei que ela nunca parasse de falar.
Mas o som de um carro no portão nos interrompeu. Meus pais.
Me levantei, agradeci com sinceridade. E, levado por um impulso que nem eu entendi, me aproximei e beijei sua face. Ela arregalou os olhos, surpresa. Sem dar chance para arrependimentos ou palavras, corri para fora, deixando a chuva me engolir de novo.
Cheguei em casa encharcado, fui direto cumprimentar meus pais e depois segui para o quarto. Tomei um banho demorado, tentando afastar o frio — e a lembrança. Enrolei-me no roupão, coloquei as roupas do irmão dela para lavar e, enquanto a água quente escorria por meu corpo, percebi que ela ainda estava ali. Na minha cabeça. Em cada pensamento.
Tentei afastá-la. Em vão.
Saí do banho, deitei-me e, ainda com o cheiro do chocolate quente na memória, adormeci.
...
— Peter, querido... Acorde. Já são sete da noite. Venha jantar, você não comeu nada ainda.
Abri os olhos devagar, sentindo a luz suave do abajur e a mão delicada da minha mãe repousando em meu ombro. Seu tom era calmo, cuidadoso, como se temesse me arrancar de um sonho bom.
— Boa noite, mãe... Me desculpa. Estava muito cansado.
Ela sorriu, compreensiva.
— Eu sei, meu amor. Desça e venha jantar conosco. Fiz lasanha de quatro queijos hoje.
O cheiro já começava a se espalhar pelo ar, quente e acolhedor. Em nossa casa, o jantar sempre foi um momento especial, não só pela comida, mas pelas conversas. Ríamos, desabafávamos, contávamos nossos dias com aquela intimidade que só a rotina amorosa permite.
Meu pai e eu sempre elogiávamos a comida da minha mãe — não por obrigação, mas porque ela cozinhava com paixão. Eles dois cursaram gastronomia quando jovens e hoje são donos de um restaurante e uma cafeteria em outra cidade. Ultimamente, vinham falando em expandir para cá.
— E então, como foi o seu dia, filho? — perguntou meu pai, assim que me sentei à mesa.
— Foi meio corrido. Passei o dia estudando com o Carlos e a Ayumi. Depois voltei para casa, mas... esqueci minhas chaves. Acabei indo até a casa de uma vizinha. Ela me deixou entrar, me deu uma toalha e roupas secas.
Minha mãe arregalou os olhos.
— Meu Deus, Peter! Você tomou chuva? Pode ficar doente! Tinha mais alguém na casa? Só ela?
— Fica tranquila, mãe. Vou ficar bem. Ela é da minha idade, estava sozinha. O irmão trabalha fora. O bairro todo estava sem energia. Só queria esperar vocês chegarem.
Ela assentiu com um leve suspiro, mas não escondeu o olhar preocupado.
— Tenha cuidado, querido. Ainda não conhecemos bem as pessoas dessa cidade. Evite entrar na casa de estranhos.
— Eu sei, eu sei. Eu vou me cuidar. — Sorri para tranquilizá-la. — E vocês? Como foi o dia lá no restaurante?
— Temos uma novidade. — disse meu pai, com os olhos brilhando. — Conseguimos comprar um prédio no centro da cidade. Vamos abrir nosso restaurante aqui. A vista para o mar é maravilhosa.
— Sério? Isso é incrível! — falei, animado. — Essa notícia merece uma comemoração.
— E teremos — disse minha mãe, animada. — Amanhã vamos até a cafeteria. Vamos celebrar em família.
Terminamos o jantar entre risos e planos para o futuro. O cheiro de queijo derretido ainda pairava no ar quando me levantei da mesa.
— Agora vá descansar, querido. — disse minha mãe, recolhendo os pratos. — Deixe a louça conosco.
— Boa noite. Durmam bem.
— Você também, filho. — disse meu pai, me puxando para um abraço apertado, logo seguido pelo de minha mãe.
Subi para o quarto com um sorriso leve no rosto, sentindo o calor daquela noite comum e, ainda assim, cheia de promessas.
...
Acordei às nove da manhã. O sol pálido entrava pelas frestas da cortina, e o frio parecia ter se instalado de vez no quarto. Me levantei devagar, fui até o banheiro, tomei um banho quente e escovei os dentes. Depois vesti meu moletom preferido e desci as escadas, atraído pelo aroma irresistível do café da manhã.
Na cozinha, minha família já estava reunida. Meu pai havia preparado panquecas macias, torradas com geleia de frutas vermelhas, fatias de mamão e maçã, e, claro, seu tradicional café expresso. A manhã estava gelada, e ninguém recusou uma caneca de café quente entre as mãos.
— Filho — começou meu pai, com seu tom firme, mas gentil —, em breve começará seu treinamento para gerência. Está na hora de aprender a administrar a empresa.
Suspirei discretamente e mexi no café com a colher.
— Já fiz todos os cursos de administração que vocês me colocaram... — murmurei, tentando esconder o desconforto.
— Agora é hora da prática. E, assim que o ensino médio terminar, virá a faculdade.
Assenti com um sorriso forçado, sentindo o peso da responsabilidade repousar sobre meus ombros. Às vezes, tudo o que eu queria era cantar. Apenas isso.
Antes que o silêncio se estendesse, minha mãe, que parecia inquieta desde o início do café, interrompeu com um brilho no olhar.
— Meninos, desculpem-me por interromper, mas tenho uma boa notícia.
Ela mal conseguia conter o sorriso. Os olhos brilhavam de ansiedade.
— Então... nós... vamos? — perguntou meu pai, hesitante.
— Sim, querido! — disse ela, quase saltando da cadeira.
— Vamos adotar um cachorro? Carina? — brincou, sorrindo maliciosamente.
— Oh, John! Deixe de gracinhas! — respondeu minha mãe, revirando os olhos.
Todos nós rimos. E então ela disse, com a voz trêmula de emoção:
— Eu estou grávida.
Ficamos em silêncio por um segundo, como se o tempo tivesse congelado — e então nos levantamos quase ao mesmo tempo e nos abraçamos. Ela estava radiante. Nunca a vi tão feliz.
— Então nada de cachorro? Já estava pensando em chamar de Rex... ou Brutus.
— John, nada de cachorro! — disse minha mãe, rindo. — E lembre-se: você é alérgico. Só nos resta amar um lindo bebê.
Meu pai a envolveu em um abraço apertado e sorriu como um menino.
— Estou muito feliz, querida. Mais um para nossa maravilhosa família.
— Parabéns, mãe. Eu te amo... E já amo meu irmãozinho ou irmãzinha também.
— Obrigada, meu amor. Nós também te amamos.
Foi um momento lindo. Meu pai parecia especialmente tocado. Sempre fui filho único e, embora me sentisse confortável com minha solidão, uma parte de mim se aquecia com a ideia de não estar mais sozinho. Ter alguém para dividir não apenas o afeto dos meus pais, mas também, inevitavelmente, as responsabilidades futuras.
Marcamos as comemorações para a noite, quando brindaríamos não só à chegada do novo restaurante, mas à do novo membro da família também.
Com meus pais fora cuidando dos negócios, aproveitei o silêncio da casa para dobrar cuidadosamente as roupas emprestadas. Coloquei-as em uma sacola e, sem pensar muito, fui até a casa ao lado.
Queria devolver as roupas. Queria vê-la novamente.
Toco a campainha e espero.
Quem abre a porta é um homem, provavelmente o irmão dela.— Bom dia! Meu nome é Peter. A Yuki está?
— Bom dia. Sou o irmão dela, Willian. Ela está doente. Posso ajudá-lo com alguma coisa?
— É que... ontem estive aqui, ela me emprestou roupas secas por causa da tempestade. Vim devolvê-las.
Willian cruza os braços e me encara com um olhar firme.
— Ah... então é você o garoto que ficou sozinho com minha irmã no escuro?
— Por favor — digo, já sentindo meu rosto esquentar —, não pense nada errado. Eu juro que não fiz nada, só fiquei esperando meus pais chegarem.
Ele me observa em silêncio por alguns segundos, como se estivesse tentando me decifrar. Seus traços lembram muito os de sua irmã: cabelos ruivos, sardas, olhos azuis tendendo ao verde. Diferente dela, ele tem uma barba ruiva bem cuidada, corpo atlético e veste uma camisa da banda Queen.
— Eu sei que não fez — diz por fim. — Caso contrário, estaria com sérios problemas. Entra aí, vou buscar suas roupas.
Ele se vira e sobe as escadas. Dou um passo hesitante para dentro da casa e, enquanto espero, me viro... e a vejo.
Yuki está descendo as escadas com passos lentos. Fico paralisado por um instante.
— Bom dia, Peter. Tudo bem?
Ela sorri e o mundo parece desacelerar.
— Bom dia... tudo sim, e com você?
Fico tão nervoso que começo a apertar minhas mãos atrás das costas.
— Estou um pouco doente — responde, ainda sorrindo. — O que veio fazer aqui?
— Vim devolver suas roupas. Seu irmão me deixou entrar e subiu para pegar as minhas. Mas... você está bem mesmo? Ontem parecia estar bem. Fui eu? Será que passei alguma coisa para você?
— Não, imagina! Foi culpa minha. Tomei banho gelado e logo em seguida quente. Choque térmico. Vivo esquecendo dessas coisas. — Ela ri baixinho. — Sempre fico doente por distrações.
A forma como ela fala é tranquila, quase como se estar doente fosse só mais um detalhe no dia.
— Melhor você ficar de repouso. Assim melhora mais rápido.
— Yuki... o que está fazendo fora da cama? — diz Willian, reaparecendo no topo da escada com as roupas nas mãos.
— Ouvi a voz dele e vim cumprimentá-lo — responde, com a mesma leveza de sempre.
— Você devia estar descansando — ele diz, com um tom mais gentil agora.
É claro o quanto ele se importa com ela. A expressão muda quando a olha, os olhos endurecidos se suavizam. Talvez eu tenha o julgado mal.
— Seu irmão tem razão — apoio. — Melhor você voltar a descansar.
— Tudo bem, já estou subindo. Tchau, Peter. Até mais.
— Melhoras... e fique bem.
Ela sorri novamente e sobe devagar.
— Obrigado pelas roupas, Willian.
— Só Will já está bom. Estou de saída para o trabalho. E por favor... — ele se aproxima, agora mais sério —, não volte aqui quando minha irmã estiver sozinha. Você entende, né?
— Sim, entendo... e me desculpa mesmo. Só vim por causa da tempestade. Não vai acontecer de novo.
Fico um pouco envergonhado, mas compreendo. Eu também agiria assim se estivesse no lugar dele. Não é fácil confiar sua irmã mais nova a um desconhecido.
Nos despedimos. Ao sair, sigo pelas ruas ainda pensando nela. Desejo vê-la de novo. É estranho... acabei de conhecê-la, mas sinto como se um cupido distraído tivesse me acertado bem no peito.
O dia está bonito demais para voltar direto para casa. Pego meu violão e vou até o parque. Lá, encontro uma árvore grande e acolhedora, me sento sob sua sombra e começo a tocar.







