MIA
A porta da frente cedeu com um estalo seco.
O cheiro que escapou de dentro era de coisa velha, trancada no tempo — umidade, cigarro, mofo. A casa estava mergulhada em sombras. As janelas estavam cerradas, as cortinas pesadas abafando qualquer traço de luz. Ainda assim, o ar ali dentro parecia carregar a presença dele. Do homem que me criou. Do homem que me entregou.
Do meu pai.
Entrei devagar, cada passo fazendo o chão de madeira ranger sob meus pés, como se os fantasmas do passado gemessem com a minha volta. O silêncio era estranho… denso, pesado. Como se a casa prendesse a respiração desde o dia em que eu fugi.
Tudo estava no lugar. O mesmo sofá puído, o relógio parado na parede, os quadros tortos com fotografias que agora só m
MIAA presença dele ainda ardia em mim.Não como dor física.Era pior.Era aquela lembrança incômoda que se agarra à pele, que infiltra nos ossos, que grita dentro da memória mesmo no silêncio absoluto.Aquela mão, aquele toque, o cheiro dele — couro, pólvora, e um perfume amadeirado que me lembrava noites perigosas.Ele não me bateu.Mas me feriu de um jeito mais profundo.A garagem parecia respirar com dificuldade.As paredes rangiam. A lâmpada tremia. O ar era grosso, úmi
MIAO sol da manhã invadia o quarto em lâminas douradas, impiedosas, atravessando as frestas da cortina como punhais. A luz era clara demais, viva demais — como se zombasse da escuridão que me preenchia por dentro.O mundo lá fora seguia. Mas o meu mundo... ele estava ruindo em silêncio.Não havia descanso. Não havia trégua. Só um pensamento insistente, repetido, cruel — como um tambor fúnebre batendo no meu crânio: eu preciso fazer alguma coisa.Virei o rosto devagar. Vittorio dormia ao meu lado, sereno. Seus traços, sempre tão marcados pela dureza da vida que leva, agora pareciam suaves, quase inocentes. Ele respirava fundo, os cílios longos repousando sobre a pele pálida, o braço em volta da minha cintura como se, mesmo dormindo, me quisesse
MIAO sol mal havia vencido o nevoeiro da manhã quando os passos dele rasgaram o jardim como uma tempestade súbita.A brisa era fria, cheirava a sangue e rosas murchas.— Mia! — A voz de Vittorio veio antes dele, grave, rouca, carregada de urgência e terror.Ele surgiu no pátio como uma força da natureza, os olhos arregalados ao ver o corpo de Gisela desfalecido nos meus braços.— Meu Deus... — sussurrou, como se a realidade estivesse despencando sob seus pés.Aurora apareceu logo atrás, arrastando o roupão de seda pelo chão de pedras, o rosto pálido, o cabelo solto e desgrenhado, como se tivesse sido arrancada dos s
MIAO sol do fim da manhã atravessava as cortinas como um intruso impiedoso, tingindo o chão de mármore com tons dourados que não pertenciam àquela casa. A luz dançava sobre os veios frios da pedra, alheia à dor que ainda se agarrava às paredes, como se zombasse de um luto que não sabia ser visto, mas que impregnava cada respiração.A mansão estava muda. Não era o silêncio pacífico de um lar em descanso — era o silêncio após o impacto. Um silêncio espesso, sufocante, que se arrastava pelos corredores como um fantasma recém-desperto. Desci os degraus devagar, sentindo cada um como uma sentença. Meus pés pesavam como se tivessem raízes cravadas naquele chão, e a cada passo, algo dentro de mim se despedia — mesmo sem querer.Aurora me esperava no saguão. O robe escuro envolvia seu corpo como um véu de luto não declarado, o cabelo preso de f
MIAO ar da mansão era diferente. Denso. Quase palpável, como se cada parede tivesse olhos, e cada sombra, ouvidos.Eu dei os primeiros passos como quem atravessa um campo minado, consciente de que cada gesto seria observado. Analisado. Julgado.O silêncio era cortante, mas não tanto quanto o homem que me aguardava.Tomasio.Tomasio apenas sorriu — um sorriso que fez cada parte do meu corpo se arrepiar. Cruel. Gélido. Um sorriso digno do próprio demônio.Lindamente repulsivo.Seu rosto anguloso estava banhado pela luz que entrava pelas claraboias. Os olhos, de um cinza pálido e cortante como vidro, me atravessavam. Os fios grisalhos n
MIAA casa era silenciosa demais.Mesmo com os tapetes grossos abafando os passos, havia um som que persistia — um sussurro abafado, como se as paredes respirassem. Ou vigiassem.Sentei na beirada da cama. O colchão era macio demais para alguém que cresceu pisando em estilhaços. As cortinas pesadas, o armário de madeira escura e polida, o espelho grande demais, como se quisesse me engolir. E no ar... perfume. Amadeirado, envolvente, quase masculino. Alguém tinha estado ali. Alguém que queria que eu soubesse disso.Me levantei devagar, os pés afundando no tapete felpudo. Caminhei até a janela. Fechada. Trancada. O vidro, grosso e escurecido. A vista? Um jardim milimetricamente esculpido — bonito demais para ser verdadeiro. Bonito como um túmulo.En
VITTORIOA casa parecia menor agora. Ou talvez fosse só eu, encolhido por dentro.Estávamos de volta àquele lugar. As paredes ainda guardavam o cheiro da última vez que estive ali — cigarro, medo e o gosto metálico da perda.Giuseppe empurrou a porta com força, como se pudesse afastar os fantasmas na marra. Breno veio logo atrás, em silêncio, os olhos atentos, varrendo o ambiente como quem não sabia onde pisar. Eu entrei por último. Sem pressa. O que eu procurava ali não era algo que pudesse ser achado com os pés.Fazia menos de vinte e quatro horas desde que Mia partiu.Vinte e quatro horas que me cortaram por dentro como uma lâmina cega.Ela havia dito tudo com os olhos abertos. Com uma frieza cruel.
MIAA casa dos Sartori parecia prender a respiração à medida que a noite caía. Cada sombra que se alongava nos corredores era como um sussurro não dito. Um presságio. Não era o silêncio da paz — era o tipo de silêncio que precede uma tormenta. Ou um toque. Ou um crime.Cecília me avisou do jantar com olhos que não ousavam encontrar os meus. Deixou o vestido sobre a cama como quem deixa uma oferenda a uma criatura selvagem. Era preto. De cetim. Justo, decotado e indecentemente elegante. Aquilo não era um traje — era um aviso. Um convite. Um golpe.Ele escolhera.E eu sabia disso. Como também sabia que, naquela casa, nada escapava dos dedos frios e calculados de Tomasio Sartori.Vesti o vestido como quem veste um pecado. O tecido deslizava pela pele