A dor já não era só um incômodo. Era sua existência. Max mal sentia o próprio corpo, apenas os pulsos ardendo onde as cordas mordiam sua pele e o gosto de sangue seco na boca. O olho esquerdo estava fechado por completo, inchado, latejando. Ele não sabia dizer há quanto tempo estava ali. Dias? Horas? Tudo se misturava em um borrão de escuridão e agonia. Rodolfo estava à sua frente, brincando com uma navalha. O desgraçado não tinha pressa. Gostava de saborear o sofrimento. — Você sabe qual é o seu problema, Max? — A voz dele era quase afetuosa, como se falasse com um velho amigo. — Você não sabe quando desistir. É egoísta o suficiente para não admitir que perdeu. E mesmo estando a beira da morte, ousa me desafiar! Max riu, ou pelo menos tentou. Foi mais um ruído rouco, engasgado com sangue. — E você fala demais... O golpe veio rápido, um soco direto na costela que fez tudo girar. Max gemeu, mas não cedeu. Não daria esse prazer ao filho da puta. — Ainda com essa língua afi
Cecília sentia o coração martelar no peito enquanto segurava a mão de Max. O calor fraco da pele dele a fazia se agarrar à única certeza que importava: ele estava vivo. Mas vê-lo ali, tão pálido, machucado, coberto de curativos e hematomas, era demais para ela suportar. Uma lágrima grossa caiu de seu rosto e pousou na clavícula dele. Max mexeu os dedos, um movimento fraco, quase imperceptível, mas o suficiente para fazê-la prender a respiração. — Max…? — a voz dela tremeu. Ele franziu a testa, um gemido rouco escapando de seus lábios rachados. O peito subia e descia com dificuldade, mas, pouco a pouco, os olhos dele se abriram. O olhar turvo vagou pelo ambiente antes de focar nela. Cecília sentiu um nó na garganta quando viu um brilho diferente naqueles olhos, um alívio misturado com surpresa. E então Max fez o impensável. Mesmo com o corpo claramente em agonia, sua mão se moveu, agarrou a nuca dela e a puxou para um beijo. Foi desajeitado, dolorido, a boca dele seca e o
Cecília passou os últimos dias exausta, dividindo-se entre cuidar de Max e tentar manter a própria sanidade. Seu marido finalmente estava em casa, longe dos horrores pelos quais passara, mas a recuperação dele ainda exigia atenção constante. Ela mal dormia, comia pouco e seu corpo parecia estar em guerra consigo mesmo. Naquela manhã, enquanto preparava um chá para Max, uma onda de náusea violenta subiu por sua garganta. Sem tempo para reagir, correu até o lavabo, caindo de joelhos diante da bacia e vomitando tudo o que tinha – e não tinha – no estômago. Seu corpo tremia e o suor frio descia pela nuca. Respirou fundo, tentando se acalmar. Claro, fazia sentido. O estresse, a falta de sono, a alimentação precária. Tudo aquilo cobrava um preço. Mas, ao limpar a boca e se apoiar na borda da pia para se levantar, uma inquietação começou a crescer dentro dela. Ela tentou lembrar. Quando viera sua últimas regras? O pânico apertou seu peito. Seus ciclos eram regulados como um relógio, e
Cecília caminhou até o quarto em passos apressados, o coração ainda acelerado. Assim que fechou a porta atrás de si, soltou um suspiro pesado, sentindo suas pernas fraquejarem. Sentou-se na beira da cama e passou as mãos pelo rosto, tentando organizar os próprios pensamentos. Estava grávida. A conclusão a atingia com força cada vez que tentava afastá-la. Não era só o trauma dos últimos dias, não era apenas cansaço. Seu corpo já sabia a verdade antes mesmo que sua mente aceitasse. O quarto estava silencioso, mas dentro dela um turbilhão se desenrolava. Max. Seu peito se apertou ao pensar nele. Como contaria? Como ele reagiria? Ele ainda estava fraco, sua recuperação era lenta, dolorosa. Era justo sobrecarregá-lo com essa notícia agora? Seu olhar vagou para a janela, onde a brisa suave fazia as cortinas dançarem. Tocou o próprio ventre, ainda sem mudanças perceptíveis, mas já carregando algo que mudaria suas vidas para sempre. Ela queria esse filho. Queria desesperad
O sol da manhã pintava a paisagem dourada da Fazenda Boa Esperança, refletindo nos vastos cafezais que pertenciam à família Monteiro de Alcântara havia gerações. Vicente observava a cena de sua varanda particular, os olhos semicerrados e a mente ocupada. No papel, ele tinha tudo. O sobrenome, a fortuna, o respeito. Mas havia uma lacuna que precisava preencher, uma que seu pai lhe lembrava constantemente. — Você precisa se casar, Vicente. Casamento. Uma aliança vantajosa. Um nome adequado. Descendência garantida. Não era uma questão de desejo ou romantismo. Para Vicente, o casamento precisava ser prático. Ele queria uma esposa saudável, que pudesse manter a linhagem Monteiro de Alcântara sem grandes complicações. Uma mulher que soubesse sorrir quando ele voltasse para casa com a cabeça explodindo em responsabilidades. Ele não queria mais do que isso. Se houvesse compatibilidade na cama, ótimo. Mas ele sabia que casamentos arranjados raramente ofereciam esse tipo de sorte. Cecíli
A manhã já ia alta quando Tereza saiu da pequena casa onde vivia com a tia e os primos mais novos. O cheiro de fubá e canela ainda impregnava suas mãos, mesmo depois de lavá-las às pressas. Sua cesta estava cheia de quitutes frescos—pães de mel, bolinhos de fubá, cocadas embrulhadas em papel manteiga. Tudo pronto para ser vendido antes do meio-dia. Ela atravessava as ruas de paralelepípedo com passos rápidos, desviando das carroças e dos cavalos que passavam. O centro da cidade era sempre um desafio. Homens engravatados e senhoras de vestidos volumosos a ignoravam ou lhe lançavam olhares de desprezo. Alguns sussurravam entre si, fingindo que ela não podia ouvir. "Esses aí querem mais do que têm direito." "Agora qualquer uma se acha no direito de andar por essas ruas como se fossem damas." Ela continuou andando, acostumada com aquele tipo de comentário. Mas foi obrigada a parar quando uma mulher branca e bem-vestida, acompanhada por outra de mesma estirpe, veio em sua direção.
O coração de Tereza ainda batia forte quando ela virou a esquina, os dedos crispados ao redor da alça da cesta. O cheiro doce dos bolinhos de fubá e dos quindins que restaram lhe subia ao nariz, mas tudo o que ela sentia era um gosto amargo na boca. A audácia daquele homem! Ela não precisava levantar os olhos para saber o que ele era. Um aristocrata. Um dos muitos que passeavam por ali com a arrogância de quem achava que a cidade lhes pertencia. E talvez pertencesse, para gente como ele. Mas para ela, para sua família, para aqueles que lutavam todos os dias para se manter de pé depois da Abolição, a cidade era apenas um campo de batalha onde tinham que lutar por cada migalha. E ele, com sua voz educada e o olhar que demorou um segundo a mais sobre ela — aquele olhar que os homens ricos sempre tinham quando viam uma mulher negra e jovem —, achou que podia simplesmente jogar uma moeda e resolver tudo? Tereza sentiu o estômago revirar. Ela apertou o passo. Os pés descalços to
— Vicente? — Gabriel franziu a testa diante do silêncio prolongado do irmão. — Desde quando você hesita em responder sobre suas obrigações? Vicente inclinou-se para frente, apoiando os cotovelos nos joelhos e entrelaçando os dedos, o cenho ligeiramente franzido. Ele jamais se permitia hesitar, não quando se tratava do futuro da família. Mas, maldito fosse, aquela mulher estava entalada em sua mente como um espinho que ele não conseguia arrancar. — Apenas estou considerando todas as opções. — Ele finalmente respondeu, a voz neutra, porém firme. Álvaro soltou uma risada baixa, balançando a cabeça. — Isso quer dizer que alguma das moças da lista finalmente conseguiu despertar seu interesse? Ou será que… — Ele sorriu com malícia, inclinando-se para frente. — Conheceu alguém que não está nessa bendita lista? Vicente sentiu os músculos enrijecerem, mas antes que pudesse responder, a porta do salão se abriu de supetão, e Amélia entrou com Helena ao lado. O impacto não veio exatam