05. Amélia e Helena

Os dias que se seguiram à visita dos Vieira de Sá trouxeram a Cecília Monteiro de Alcântara uma inquietação difícil de silenciar. Embora tentasse dedicar-se às obrigações domésticas e aos preparativos para o noivado, sua mente voltava sempre àquele encontro — e, sobretudo, aos dois irmãos que haviam cruzado seu caminho de forma tão distinta.

Eduardo era, sem dúvida, o noivo ideal. Educado, gentil, passou a enviar-lhe cartas formais, com palavras escolhidas com cuidado. Cecília respondia com igual cortesia, ainda que percebesse nelas uma ausência sutil — como se tudo fosse correto demais, previsível demais.

Maximiliano, em contraste, lhe despertava sentimentos que preferia não nomear. Havia nele algo indomável, quase impróprio. Pensar em seu sorriso arrogante era um pecado silencioso que a acompanhava mesmo nas missas de domingo.

E havia a flor.

Simples, colhida sabe-se lá onde, entregue com um sorriso travesso e sem explicações durante a breve despedida. Cecília guardara-a entre as páginas de um livro de poesia, como quem esconde um segredo — ou talvez um desejo.

Mas não havia espaço para sonhos no mundo em que vivia. Os Monteiro de Alcântara eram parte da elite cafeeira do Vale do Paraíba, e tradição era a base sobre a qual sua vida fora construída. Nos jantares, discutia-se política com fervor: a queda da monarquia, o avanço da República, os temores de um futuro instável. Seu pai, Joaquim, era categórico:

— Essa República desrespeita os homens de honra. Estão destruindo tudo que construímos com trabalho e nome.

Cecília ouvia em silêncio. Sabia que um novo tempo se aproximava, e com ele a possibilidade — ainda que remota — de fazer escolhas diferentes.

Na biblioteca, seu refúgio favorito, ela reencontrava a flor de vez em quando, ainda escondida entre as páginas. E, toda vez que a via, sentia o coração bater mais rápido.

Casar-se com Eduardo seria sensato.

Mas a flor continuava ali.

E Cecília começava a perceber que, talvez, não quisesse ser apenas sensata.

***

A manhã na Fazenda Boa Esperança dos Monteiro de Alcântara começava antes mesmo do sol alcançar o céu em tons dourados. O aroma do café recém-passado se espalhava pela casa, enquanto os empregados já se movimentavam pelos corredores de madeira escura, preparando o dia para a ilustre família.

No salão principal, Cecília e suas irmãs compartilhavam o desjejum sob a supervisão atenta de Constança, que, como sempre, mantinha a postura ereta e o semblante sereno. Mesmo entre paredes cobertas por tapeçarias francesas e porcelanas importadas, a mãe fazia questão de lembrar a todas as filhas da importância de seu comportamento.

— As mulheres de nossa posição devem ser exemplos de graça e discrição — dizia ela, mexendo delicadamente o chá com a colher de prata. — Lembrem-se disso. Sempre.

— Claro, mamãe — Helena respondeu, com a voz polida, mas com os olhos baixos, escondendo o leve sorriso de quem já tinha seus próprios planos.

Amélia, por outro lado, revirou os olhos de forma quase imperceptível, mas Cecília notou e mordeu o lábio para conter o riso.

— Não entendo por que precisamos sempre parecer perfeitas — resmungou Amélia em um sussurro, enquanto passava manteiga fresca no pão. — É tão cansativo...

— Porque a perfeição nos protege — Cecília respondeu baixinho. — E você sabe como papai se preocupa com a imagem da família, especialmente depois da proclamação.

— Ah, a República… — Amélia bufou, batendo os dedos contra a mesa. — Parece que desde que o Imperador foi deposto, todo mundo anda em pânico por aqui.

Helena ergueu o olhar, sempre mais ponderada.

— E com razão — disse, mantendo o tom baixo para que a mãe não ouvisse. — Muitas famílias perderam influência desde a queda do Império. Papai teme que o governo avance sobre nossas terras, ou que a abolição da escravatura ainda traga mais prejuízos.

Cecília sabia que a irmã mais velha tinha razão. Desde o fim da monarquia e a abolição, os tempos estavam mudando rápido demais para o gosto do patriarca. O Brasil republicano, ainda em seus primeiros anos, era um território incerto. Os cafeicultores, que por décadas sustentaram o país, agora enfrentavam novos desafios — a mão de obra assalariada, a chegada dos imigrantes europeus e a constante ameaça de reformas políticas.

— Não sei por que falam tanto de política — Amélia suspirou, voltando a se servir. — Eu preferia que falassem de algo mais interessante. Por exemplo… o que achou do seu noivo, Cecília?

A pergunta foi direta, e Cecília se engasgou levemente com o chá.

— Ele é… gentil — respondeu, escolhendo suas palavras com cuidado. — Parece um bom homem.

Amélia ergueu uma sobrancelha, cética.

— Gentil? Isso soa entediante.

— Nem todos os homens precisam ser cheios de charme e imprudência como você gosta — Helena pontuou, com um sorrisinho malicioso.

— Por favor, não estou dizendo que desejo um aventureiro — retrucou Amélia, inclinando-se mais perto das irmãs. — Mas… você não sentiu nada quando ele lhe deu a mão? Nenhum arrepio?

Cecília hesitou. Não, com Eduardo ela não sentira nada além de um conforto morno — seguro, mas sem faíscas. O único momento em que seu coração acelerou foi durante aquele breve e ousado encontro com Maximiliano. Mas ela não se atreveria a confessar isso.

— O casamento não precisa ser uma história de paixão avassaladora, Amélia — respondeu com firmeza. — Às vezes, a estabilidade é mais importante.

Helena assentiu em concordância, mas Amélia soltou uma risada curta.

— Fale isso daqui a cinco anos, quando estiver cansada de um marido que só sabe conversar sobre lavouras.

Antes que Cecília pudesse responder, Constança ergueu o olhar da correspondência que analisava, cortando o murmúrio animado.

— Meninas, silêncio. Não estamos em um mercado.

O tom suave de Constança escondia um comando irrefutável, e as três irmãs voltaram ao silêncio disciplinado, embora Amélia tenha lançado uma última piscadela divertida para Cecília.

***

Mais tarde, ao caminhar pelo extenso pomar da propriedade, Cecília observava a movimentação constante dos trabalhadores. Desde a abolição, seu pai investira na contratação de imigrantes italianos, mas ainda havia antigos escravizados libertos que continuavam ali por não terem para onde ir.

Ela sabia que, apesar do discurso abolicionista, muitos dos cafeicultores ainda impunham condições desumanas para os trabalhadores. O campo, que de longe parecia apenas verde e tranquilo, escondia histórias de suor, dor e sacrifício. Por sorte, seu pai apesar de rígido e controlador grande parte do tempo, pareceria disposto a promover um ambiente e condições mais dignas aos trabalhadores.

Cecília gostava de passear até a área das estufas de secagem de café. Era ali que, de vez em quando, trocava palavras discretas com Dona Ivone, uma das antigas escravizadas de uma das fazendas vizinhas, que agora trabalhava como cozinheira-chefe da fazenda.

— O café está forte hoje, menina Cecília — disse Ivone, entregando-lhe um pequeno copo de barro.

— É assim que eu gosto — respondeu Cecília com um sorriso, aquecendo as mãos com o líquido quente. — As lavouras estão indo bem?

Ivone assentiu, mas seu olhar estava longe.

— Por enquanto. Mas muita coisa mudou desde a Lei Áurea. Muita gente saiu, mas quem ficou… ainda sente o peso. Tive sorte de vir para essa fazenda, o patrão tem nos tratado como gente! Mas nao é a realidade de meus irmãos.

Cecília ficou em silêncio, refletindo sobre a verdade silenciosa das palavras de Ivone. Os Monteiro de Alcântara viviam em um mundo de privilégios dourados, mas a vida ao redor deles era muito mais dura.

— Eu queria… — começou Cecília, hesitando. — Queria que as coisas fossem diferentes.

Ivone soltou uma risada leve, cheia de uma sabedoria antiga.

— Pode querer, menina, mas o mundo muda devagar para quem tá em cima.

Essas palavras ficaram com Cecília enquanto ela retornava à casa. Por mais que tentasse focar em seu noivado, em suas responsabilidades, em cumprir o papel de filha exemplar, algo em seu coração começava a se inquietar.

Era a sensação de que sua vida, assim como o Brasil ao seu redor, estava prestes a mudar de formas que ela ainda não conseguia compreender.

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