Os dias que se seguiram à visita dos Vieira de Sá trouxeram a Cecília Monteiro de Alcântara uma inquietação difícil de silenciar. Embora tentasse dedicar-se às obrigações domésticas e aos preparativos para o noivado, sua mente voltava sempre àquele encontro — e, sobretudo, aos dois irmãos que haviam cruzado seu caminho de forma tão distinta.
Eduardo era, sem dúvida, o noivo ideal. Educado, gentil, passou a enviar-lhe cartas formais, com palavras escolhidas com cuidado. Cecília respondia com igual cortesia, ainda que percebesse nelas uma ausência sutil — como se tudo fosse correto demais, previsível demais. Maximiliano, em contraste, lhe despertava sentimentos que preferia não nomear. Havia nele algo indomável, quase impróprio. Pensar em seu sorriso arrogante era um pecado silencioso que a acompanhava mesmo nas missas de domingo. E havia a flor. Simples, colhida sabe-se lá onde, entregue com um sorriso travesso e sem explicações durante a breve despedida. Cecília guardara-a entre as páginas de um livro de poesia, como quem esconde um segredo — ou talvez um desejo. Mas não havia espaço para sonhos no mundo em que vivia. Os Monteiro de Alcântara eram parte da elite cafeeira do Vale do Paraíba, e tradição era a base sobre a qual sua vida fora construída. Nos jantares, discutia-se política com fervor: a queda da monarquia, o avanço da República, os temores de um futuro instável. Seu pai, Joaquim, era categórico: — Essa República desrespeita os homens de honra. Estão destruindo tudo que construímos com trabalho e nome. Cecília ouvia em silêncio. Sabia que um novo tempo se aproximava, e com ele a possibilidade — ainda que remota — de fazer escolhas diferentes. Na biblioteca, seu refúgio favorito, ela reencontrava a flor de vez em quando, ainda escondida entre as páginas. E, toda vez que a via, sentia o coração bater mais rápido. Casar-se com Eduardo seria sensato. Mas a flor continuava ali. E Cecília começava a perceber que, talvez, não quisesse ser apenas sensata. *** A manhã na Fazenda Boa Esperança dos Monteiro de Alcântara começava antes mesmo do sol alcançar o céu em tons dourados. O aroma do café recém-passado se espalhava pela casa, enquanto os empregados já se movimentavam pelos corredores de madeira escura, preparando o dia para a ilustre família. No salão principal, Cecília e suas irmãs compartilhavam o desjejum sob a supervisão atenta de Constança, que, como sempre, mantinha a postura ereta e o semblante sereno. Mesmo entre paredes cobertas por tapeçarias francesas e porcelanas importadas, a mãe fazia questão de lembrar a todas as filhas da importância de seu comportamento. — As mulheres de nossa posição devem ser exemplos de graça e discrição — dizia ela, mexendo delicadamente o chá com a colher de prata. — Lembrem-se disso. Sempre. — Claro, mamãe — Helena respondeu, com a voz polida, mas com os olhos baixos, escondendo o leve sorriso de quem já tinha seus próprios planos. Amélia, por outro lado, revirou os olhos de forma quase imperceptível, mas Cecília notou e mordeu o lábio para conter o riso. — Não entendo por que precisamos sempre parecer perfeitas — resmungou Amélia em um sussurro, enquanto passava manteiga fresca no pão. — É tão cansativo... — Porque a perfeição nos protege — Cecília respondeu baixinho. — E você sabe como papai se preocupa com a imagem da família, especialmente depois da proclamação. — Ah, a República… — Amélia bufou, batendo os dedos contra a mesa. — Parece que desde que o Imperador foi deposto, todo mundo anda em pânico por aqui. Helena ergueu o olhar, sempre mais ponderada. — E com razão — disse, mantendo o tom baixo para que a mãe não ouvisse. — Muitas famílias perderam influência desde a queda do Império. Papai teme que o governo avance sobre nossas terras, ou que a abolição da escravatura ainda traga mais prejuízos. Cecília sabia que a irmã mais velha tinha razão. Desde o fim da monarquia e a abolição, os tempos estavam mudando rápido demais para o gosto do patriarca. O Brasil republicano, ainda em seus primeiros anos, era um território incerto. Os cafeicultores, que por décadas sustentaram o país, agora enfrentavam novos desafios — a mão de obra assalariada, a chegada dos imigrantes europeus e a constante ameaça de reformas políticas. — Não sei por que falam tanto de política — Amélia suspirou, voltando a se servir. — Eu preferia que falassem de algo mais interessante. Por exemplo… o que achou do seu noivo, Cecília? A pergunta foi direta, e Cecília se engasgou levemente com o chá. — Ele é… gentil — respondeu, escolhendo suas palavras com cuidado. — Parece um bom homem. Amélia ergueu uma sobrancelha, cética. — Gentil? Isso soa entediante. — Nem todos os homens precisam ser cheios de charme e imprudência como você gosta — Helena pontuou, com um sorrisinho malicioso. — Por favor, não estou dizendo que desejo um aventureiro — retrucou Amélia, inclinando-se mais perto das irmãs. — Mas… você não sentiu nada quando ele lhe deu a mão? Nenhum arrepio? Cecília hesitou. Não, com Eduardo ela não sentira nada além de um conforto morno — seguro, mas sem faíscas. O único momento em que seu coração acelerou foi durante aquele breve e ousado encontro com Maximiliano. Mas ela não se atreveria a confessar isso. — O casamento não precisa ser uma história de paixão avassaladora, Amélia — respondeu com firmeza. — Às vezes, a estabilidade é mais importante. Helena assentiu em concordância, mas Amélia soltou uma risada curta. — Fale isso daqui a cinco anos, quando estiver cansada de um marido que só sabe conversar sobre lavouras. Antes que Cecília pudesse responder, Constança ergueu o olhar da correspondência que analisava, cortando o murmúrio animado. — Meninas, silêncio. Não estamos em um mercado. O tom suave de Constança escondia um comando irrefutável, e as três irmãs voltaram ao silêncio disciplinado, embora Amélia tenha lançado uma última piscadela divertida para Cecília. *** Mais tarde, ao caminhar pelo extenso pomar da propriedade, Cecília observava a movimentação constante dos trabalhadores. Desde a abolição, seu pai investira na contratação de imigrantes italianos, mas ainda havia antigos escravizados libertos que continuavam ali por não terem para onde ir. Ela sabia que, apesar do discurso abolicionista, muitos dos cafeicultores ainda impunham condições desumanas para os trabalhadores. O campo, que de longe parecia apenas verde e tranquilo, escondia histórias de suor, dor e sacrifício. Por sorte, seu pai apesar de rígido e controlador grande parte do tempo, pareceria disposto a promover um ambiente e condições mais dignas aos trabalhadores. Cecília gostava de passear até a área das estufas de secagem de café. Era ali que, de vez em quando, trocava palavras discretas com Dona Ivone, uma das antigas escravizadas de uma das fazendas vizinhas, que agora trabalhava como cozinheira-chefe da fazenda. — O café está forte hoje, menina Cecília — disse Ivone, entregando-lhe um pequeno copo de barro. — É assim que eu gosto — respondeu Cecília com um sorriso, aquecendo as mãos com o líquido quente. — As lavouras estão indo bem? Ivone assentiu, mas seu olhar estava longe. — Por enquanto. Mas muita coisa mudou desde a Lei Áurea. Muita gente saiu, mas quem ficou… ainda sente o peso. Tive sorte de vir para essa fazenda, o patrão tem nos tratado como gente! Mas nao é a realidade de meus irmãos. Cecília ficou em silêncio, refletindo sobre a verdade silenciosa das palavras de Ivone. Os Monteiro de Alcântara viviam em um mundo de privilégios dourados, mas a vida ao redor deles era muito mais dura. — Eu queria… — começou Cecília, hesitando. — Queria que as coisas fossem diferentes. Ivone soltou uma risada leve, cheia de uma sabedoria antiga. — Pode querer, menina, mas o mundo muda devagar para quem tá em cima. Essas palavras ficaram com Cecília enquanto ela retornava à casa. Por mais que tentasse focar em seu noivado, em suas responsabilidades, em cumprir o papel de filha exemplar, algo em seu coração começava a se inquietar. Era a sensação de que sua vida, assim como o Brasil ao seu redor, estava prestes a mudar de formas que ela ainda não conseguia compreender.A luz dourada do entardecer tingia as ruas com um brilho decadente, como se a cidade inteira ardesse em desejo. Para Max, era apenas o prenúncio de mais uma noite de excessos. E ele pretendia se perder nela até o último gole, até o último corpo, até o último pecado. No salão reservado do Clube do Progresso — um templo do luxo exclusivo para homens poderosos — o tilintar de taças e as risadas roucas criavam uma sinfonia de decadência. O cheiro de tabaco cubano, conhaque envelhecido e promessas ilícitas pairava no ar como uma cortina invisível de permissividade. Era um ambiente feito sob medida para homens como Max. Ele estava recostado em uma poltrona de couro, com as pernas relaxadas, o olhar afiado percorrendo o salão como um predador entediado. Seus cabelos castanhos estavam levemente desalinhados, o maxilar coberto por uma barba por fazer, e os olhos, escuros como pecado, brilhavam com uma confiança perigosa. Max era o tipo de homem que exalava charme sem precisar tentar — e ele s
O relógio da imponente residência dos Vieira de Sá já marcava mais de duas horas da madrugada quando Max atravessou a porta principal, arrastando os passos preguiçosos pelo saguão silencioso. O cheiro amadeirado do charuto ainda pairava em suas roupas, misturado ao aroma doce de perfume feminino. A gravata estava frouxa, o colarinho aberto, e o cabelo negro desgrenhado, como se mãos delicadas tivessem acabado de se perder nele. Ele cambaleou ligeiramente ao subir os primeiros degraus da escadaria, murmurando para si mesmo um palavrão baixinho quando o mundo girou por um instante. Mas não estava tão embriagado assim. Apenas o suficiente para não se importar com o fato de que, mais uma vez, voltava para casa sozinho. — Finalmente — a voz firme de Eduardo o deteve antes que alcançasse seu quarto. Max ergueu os olhos, piscando ao vê-lo sentado em uma poltrona no corredor, os cotovelos apoiados nos joelhos e um olhar severo no rosto sempre impecável. — Ora, ora… Ficou com saudades,
A casa-grande pulsava com uma energia rara, como se pressentisse um acontecimento fora do comum. Criados iam e vinham em um ritmo quase coreografado, ajeitando arranjos florais, polindo talheres e finalizando a preparação de um jantar que exalava riqueza. O ar era tomado por aromas sedutores — carne assada, frutas frescas, pão recém-saído do forno — tudo misturado ao perfume doce das flores de laranjeira, recém-colhidas para enfeitar os salões. Cecília observava o movimento do alto da escadaria, com um aperto no estômago que insistia em não passar. O vestido azul celeste que usava, escolhido pela mãe, realçava sua figura esguia e o tom de sua pele clara, mas ela se sentia como uma boneca vestida para encenação. Havia algo naquele dia — algo que não sabia nomear — que lhe dava a sensação de que sua vida estava prestes a mudar. — Parece que vão receber o imperador e eu não fui avisada — murmurou, ajeitando uma mecha solta atrás da orelha. Helena e Amélia sumiram no meio dos preparativ
A copa estava mais fresca do que o salão principal, com o aroma doce de canela e baunilha pairando no ar. A luz das lamparinas era mais suave ali, lançando sombras quentes nas prateleiras repletas de louças e potes de compotas caseiras. Cecília inspirou fundo, tentando acalmar os nervos enquanto Dona Ivone organizava pratos para a sobremesa. A cozinheira-chefe, uma mulher robusta e de feições gentis, observou-a de soslaio antes de se aproximar. — Menina, você está mais pálida do que um fantasma — murmurou em tom baixo, pegando a sua mão com delicadeza. — O que foi? Cecília hesitou. Não sabia como colocar em palavras aquele tumulto de emoções. A presença de Max a desestabilizava de um jeito que ela não queria — não podia — admitir. — Estou bem — mentiu, desviando o olhar para o avental imaculado de Dona Ivone. — Apenas cansada. — Ah, não me engana, Cecília. Conheço você desde que usava laços no cabelo. Tem algo lhe incomodando, e não é só cansaço. O calor subiu ao seu rosto.
A noite avançava, e a música suave de um quarteto de cordas preenchia o ar, enquanto casais deslizavam pela pista de dança improvisada. O vinho continuava a ser servido, afrouxando a rigidez habitual dos Monteiro de Alcântara e a formalidade calculada dos Vieira de Sá. Cecília permanecia ao lado de Eduardo, recebendo cumprimentos e elogios pela união iminente. Sorria, agradecia, mantinha a postura irrepreensível que lhe haviam ensinado desde menina – mas, por dentro, estava em chamas. Cada vez que olhava para Max, a tensão em seu corpo aumentava como um fio prestes a se partir. — Está se divertindo? — Eduardo perguntou, puxando-a para a pista de dança assim que os músicos começaram uma valsa mais lenta. — Sim — ela mentiu, permitindo que ele a guiasse. Eduardo dançava com precisão. Seus passos eram calculados, impecáveis, exatamente como a vida que planejava ao lado dela. Cecília tentou se concentrar no rosto dele – nas linhas simétricas, na segurança tranquila que oferecia –, mas
A boca de Max continuava explorando a dela com um desespero contido, como se ele estivesse tentando provar um ponto – ou talvez apenas se perder nela. As mãos dele deslizavam por suas costas, pressionando-a ainda mais contra seu corpo quente e sólido, e Cecília sentiu o mundo girar ao redor deles. — Você não deveria… — Ela tentou protestar entre os beijos, mas sua própria voz soava fraca, quase um gemido. — Eu nunca faço o que deveria, bela Cecília — Max respondeu contra seus lábios, o tom rouco e carregado de desejo. Os dedos dele subiram lentamente pelo corpete delicado de seu vestido, traçando um caminho torturante pela curva de sua cintura até a linha de suas costelas. O toque era firme, possessivo – e, ainda assim, parecia que ele estava se segurando para não ir além. Cecília estava em chamas. Cada parte de seu corpo parecia viva sob o toque dele, e a forma como Max a beijava – profunda, intensa, como se não houvesse mais nada no mundo – a fazia esquecer do noivado, das ob
Max encostou-se preguiçosamente ao arco da porta, a taça de vinho pendendo entre os dedos longos. Para qualquer observador desatento, ele parecia relaxado – quase entediado com a comoção ao redor. Mas, por dentro, cada músculo do seu corpo estava tenso, como uma corda prestes a se partir. Seus olhos não deixavam Cecília. Não conseguiam. Ele ainda sentia o gosto dela nos lábios – doce, quente, proibido. Sentia a pressão delicada do corpo dela contra o seu, o tremor leve de seus dedos quando, por um instante, ela correspondeu ao beijo. E, mesmo agora, enquanto Eduardo se ajoelhava diante dela com aquele maldito anel, Max podia jurar que o desejo ainda queimava em sua pele como um pecado que não podia – não queria – esquecer. A plateia suspirava em uníssono, alguns convidados murmuravam entre si sobre como eles formavam um casal perfeito. Um casal perfeito. Max quase riu – um riso amargo que ficou preso em sua garganta. Porque ele sabia a verdade. Sabia que, minutos antes, Cecíl
Álvaro girava o copo de uísque entre os dedos, a mente vagando enquanto o som abafado da música e das risadas ecoava pelos corredores. Ele não gostava de festas como essa – formais demais, previsíveis demais – mas, em uma família como a sua, recusar um evento social era um luxo que nem mesmo ele podia se permitir. Mas ele felizmente já estava de saída. Afinal, Cecília tinha pedido. Não com palavras diretas, é claro. Sua irmã era boa demais para pedir algo tão… mesquinho. Mas Álvaro a conhecia melhor do que ninguém. Percebera a tensão em seu sorriso quando lhe perguntou, mais cedo, se poderia “manter Max muito bem entretido e longe de problemas”. Problemas. Ele quase riu. Cecília nunca usava palavras casuais por acaso. E a julgar pelo modo como Max saíra do salão – rígido, sombrio e com a expressão de um homem à beira do limite – Álvaro tinha uma boa ideia de que tipo de problema sua irmã queria evitar. Foi fácil encontrá-lo. Homens como Max não se afastavam muito quando est