CHRISTINE CONWAY
DIAS ATUAIS
— Crianças andem logo. — Grito pela terceira vez nessa manhã. Termino de colocar o café da manhã deles na bancada e quando ia verificar os materiais deles eu piso em algo pontudo e gemo de dor como se estivessem arrancando minha alma de dentro de mim — Christian quantas vezes tenho que falar para você não deixar essas peças de Lego espalhadas pela casa porque podem machucar alguém?
Eu que me machuquei nesse caso. Nunca vi um brinquedo que apesar de tão inofensivo pode ser fatal se o pisar com o pé descalço. Xingando silenciosamente eu recolho todos os brinquedos e os coloco num balde.
Essa casa precisa urgentemente de uma boa faxina. Por causa dos meus turnos no trabalho é impossível fazer a faxina toda amanhã, porque eu acordo ainda moída e tenho que atender esses dois furacões. Então por mais que eu queira dormir até tarde não posso me dar esse luxo, não é dormindo que vou pagar as contas da casa.
— Mãe o Christian está puxando meu cabelo — apenas suspiro, essa é a vida que escolhi.
— É mentira mãe. A Celine que é uma chata — eles entram na sala que faz divisória com a cozinha ainda se matando.
— Chega vocês dois. Sentem aí e tomem o café da manhã sem mais discussão. Não quero nem ouvir mais um pio, caso contrário não levo vocês no shopping — essa estratégia sempre funciona. Meu salário já vai entrar e eles sabem que todo mês levo eles pra passear no único shopping da cidade que cobre o meu orçamento, porque o outro shopping foi feito pensando na elite da cidade e nos turistas ricos. Não temos dinheiro pra fazer compras feito loucos, mas consigo comprar pelo menos duas peças de roupa para cada um ou dois brinquedos.
Fico por mais alguns segundo esperando ouvir a briga retomar mas como os dois estão em silêncio começo recolhendo todas as roupas sujas espalhadas pela casa.
Quem poderia imaginar que dez anos depois eu estaria aqui, vestida numa calça moletom, uma camisa duas vezes maior que eu, descalça e com o cabelo preso num coque frouxo todo sujo e ainda recolhendo roupas sujas enquanto escuto duas crianças de nove anos resmungando.
Segundo os meus planos de a dez anos atrás quando eu era só uma adolescente sonhadora, hoje em dia ou nesse exato momento eu estaria acordando no meu lindo e grande apartamento em Nova Iorque com vista para o central Park. Estaria tomando alguma vitamina de frutas e indo para alguma academia caríssima. Teria um corpo malhado e teria uma assistente que faria tudo para mim, até mesmo agendar o salão.
Em suma eu seria uma das chef ' s de cozinha mais bem pagas e mais bem avaliadas que esse país já viu. Eu teria formação universitária em gastronomia e também seria mestrada em alguma especialidade do mundo da culinária. Estaria frequentando os lugares mais badalados e seria citada pelo menos uma vez por dia em jornais ou revistas e os restaurantes lutariam para competir com a grandiosidade do meu sucesso.
Pelos berros que ouço logo de manhã já ficou bem claro que definitivamente nada do que sonhei se realizou, na verdade pelo menos algo em tudo isso aconteceu. O fato de eu trabalhar num restaurante bem chique, mas não como chef, se engana quem pensou isso. Eu trabalho lá como garçonete, e o máximo de contanto que tenho com a cozinha é no momento de entregar os pedidos ou pegar os pratos ou quando resolvo fazer umas horas extras lavando a louça.
A cobertura tão sonhada em Nova Iorque nada mais é do que uma casa simples de dois quartos, uma sala de estar conjugada com a cozinha, um banheiro e uma pequena área de serviço onde estou colocando as roupas para lavar na máquina, enquanto espero meus filhos terminarem seu café da manhã.
Pelo menos a casa não é alugada. Mas também ainda não é definitivamente minha pois não terminei de pagar ela ainda. Mensalmente vejo boa parte do meu salário indo embora para pagar essa casa. Mas em alguns meses esse martírio finalmente vai acabar e assim posso me concentrar em reformar ela, colocar uma pintura nova, mudar alguns móveis. Deixar ela mais moderna.
Acho que daqui não saio mais, pra onde eu iria com meu nível de estudo? Sem contar que tenho dois filhos e só sei servir mesas e fazer algumas comidas, por mais que eu queira fazer algumas economias para abrir uma lanchonete ou alguma coisa assim não teria como. Daqui a pouco tenho que começar as economias para garantir a faculdade dos meus filhos no futuro.
Pelo menos me conformo que meus filhos tenham boa educação e frequentem uma universidade.
Eu tive uma oportunidade a anos atrás e não pude aproveitar.
— Já terminaram? — Grito o suficiente para que o bairro todo me ouça.
— Tá quase mãe — eu só queria dormir mais dez minutos depois de ter voltado para casa quase de madrugada. Ontem eu estava trabalhando no turno da noite.
E quando é assim eu tenho que deixar eles na casa dos meus pais, que obviamente me olharam de mau jeito quando entrei na casa deles quase meia noite pra buscar meus filhos. Na cabeça deles eu estava com algum homem abrindo as pernas.
Nessa cidade eu fui reduzida a isso. Como a filha dos Conway que engravidou aos dezessete anos e se quer fez uma faculdade. Ou seja, eu sou aquele assunto que sempre está na boca da cidade, qualquer coisa desde a minha gravidez é motivo para meus pais questionarem se eu estava com algum homem ou não.
Se eles soubessem que já tem dez anos que eu não beijo nem uma boca.
Mas também que homem ia querer sair comigo? Primeiro que tenho a reputação completamente manchada por ter engravidado e não estar casada e meus filhos não terem um pai, segundo, a minha aparência depois da gestação não é a mesma de antes, meus quadris estão enormes, e da minha barriga já nem falo, ela já não é a mesma barriga lisa que eu exibia quando era líder de torcida e terceiro e não mais importante as roupas, ser mãe de um casal de gêmeos é tão difícil que não tenho o luxo de colocar um vestido mais adulto, do que adianta se tenho que ficar o dia todo de uniforme de garçonete e em casa sempre tem alguma coisa pra fazer, como lavar, passar e cozinhar. E coisas assim só se fazem com roupas confortáveis como moletons e camisetas.
Pelo menos isso funciona para mim.
Quando a roupa está limpa desligo a máquina, eu seco quando voltar.
Pego a chave da minha lata velha e a minha bolsa.
— Quem chegar por último no carro é a esposa do Tanos — eles passam por mim correndo feito dois furacões lutando para ver quem entra no carro em primeiro lugar.
Pelo menos eles colocaram o que sujaram na pia. Apesar de bem bagunceiros eu sei colocar limites nos meus filhos.
Seguimos até a escola no mesmo clima animado de todos os dias, eles adoram ir pra escola e são muito inteligentes, eu nunca fui.
Eles não herdaram meu cérebro e muito menos minha aparência. Ambos são loiros e tem olhos azuis, bem longe da minha realidade.
Olho para eles pelo espelho retrovisor e sorrio ao me deparar com eles cantando e sorrindo. Tudo o que passei e todos os sacrifícios que fiz sempre valem a pena quando olho para esses sorrisos iluminados.
Sim, tudo valeu a pena.
— Tchau mãe te amo — Celine sai correndo do carro indo até suas amigas que também acabam de chegar a escola.
— Mãe eu posso ir pra casa de um amigo hoje quando sair da escola? — Droga, vou ter que ligar para o meu pai. E sei que antes de aceitar o pedido do neto ele vai me dar um sermão. Mas eu já estou acostumada. Estou a dez anos ouvindo sempre a mesma coisa.
— Claro. Eu vou falar com seu avô pra deixar você lá quando ele pegar vocês na escola — meu pai continua trabalhando no jornal da cidade, por isso sempre no horário do almoço ele pega as crianças e vai deixá-las na casa deles até a hora que posso buscá-los. Já minha mãe continua lá no hospital como chefe da enfermaria.
Dirigindo moderadamente pelas ruas de Sutter Creek eu pego no celular velho e ligo para o meu pai.
— Oi pai
— Oi Christine — desde a descoberta da minha gravidez meus pais me tratam com certa distância. Talvez porque eu tenha os decepcionado como filha única. Nunca vou saber já que eles nunca querem tocar no assunto.
— Eu acabei de deixar as crianças na escola. O Christian quer passar o dia na casa de um amiguinho. O senhor poderia deixá-lo lá quando vier os pegar? — Pergunto olhando atentamente para o movimento da estrada. Não posso me dar ao luxo de bater no carro de ninguém.
— Vai trabalhar a noite hoje ?
— Não pai. Vou trabalhar no turno da noite e pouco antes das sete eu estarei saindo — para além do restaurante, no meu trabalho também existe um bar onde sou obrigada a ouvir um monte de endinheirados me propor dormir com eles em troca de valores. Não nego que algumas vezes quando as coisas estavam apertadas eu cogitei aceitar certas propostas. — Não se preocupem hoje eu pego eles na hora certa.
— Certo — e então desliga. Chego no supermercado e pego um carrinho pra colocar minhas compras. Nos primeiros anos eu até levava uma lista, mas hoje em dia já consigo gravar tudo o que precisamos sem precisar me desesperar. Foi muito difícil me adaptar a vida de mãe solo e dona de casa, porque estava acostumada a ver minha mãe fazer tudo.
Pego algumas frutas, ovos, cereal e leite pra casa. O resto compro quando o salário cair. Círculo com o carrinho procurando alguns ingredientes que preciso para preparar alguns doces que uma cliente pediu.
Não estou exercendo a profissão que eu tanto sonhei, mas faço algumas encomendas de doces, salgadinhos, bolos e até algumas comidas para quem quiser. Obviamente que são poucos os clientes que tenho, e são todos uns assalariados como eu. A elite da cidade jamais se sujeitaria a encomendar essas coisas de uma pobre como eu. Para isso existem lugares chiques como o restaurante onde trabalho.
Os clientes que tenho já são de confiança. Alguns consegui graças a minha melhor amiga que trabalha na prefeitura da cidade. A Emma é uma benção na minha vida.
Quando chego em casa arrumo todas as compras em seus devidos lugares, termino de secar a roupa e lavo alguns lençóis. Limpo pelo menos o banheiro e a cozinha.
Eu se quer tomei meu café da manhã direito. Não tenho mais tempo. Passo a ferro quente o meu uniforme que consiste numa calça social preta e uma camisa branca formal com botões. Dou um jeito no meu cabelo e saio de casa torcendo para o meu carro não me deixar na mão no meio do caminho, pela enésima vez.
Chego no Orizon faltando dez minutos para o início do meu turno. Sendo uma cidade pequena as coisas ficam perto uma das outras. Só que para pessoas como eu que vivem na periferia nem sempre tudo está por perto.
Entro pelos fundo já sentindo o cheiro da comida maravilhosa do chef e proprietário do restaurante, um presente dos pais após ele regressar da universidade.
Dylan é um chefe legal. Só não posso dizer a mesma coisa da gerente do lugar, Stella. Que fica o tempo todo esfregando na cara de todo mundo sua graduação em gestão de empresas. Nem parece que erámos amigas anos atrás.
— Dê um jeito no seu cabelo. Dá pra ver a sujeita a quilómetros de distância — nem foi necessário pensar muito nela para aparecer já tirando defeito. — E comece já limpando as mesas.
Assinto sem falar nada, afinal de contas é esse emprego que paga as minhas contas, as dos meus filhos e garante o nosso teto. Coloco o avental e começo a trabalhar.
E passo a tarde andando entre as mesas recolhendo pedidos, entregando os pratos que nunca na vida meu salário pagaria. Na verdade pagaria, só não sei se restaria alguma coisa pra pagar as contas.
Ouvir reclamações de clientes já virou rotina. O bom é que eu entendo muito sobre comida e a composição dos pratos então fica muito fácil me livrar de clientes reclamões apesar de existir sempre um e outro insatisfeito.
E acho que o fato de eu entender de culinária é uma das coisas que faz a Stella me odiar ainda mais porque o Dylan, nosso chefe e dono de tudo, deixou bem claro que meus conhecimentos são muito necessários caso surja uma vaga de ajudante na cozinha.
Já no final do dia os homens de negócios da cidade aparecem para tomar umas bebidas e é nessa hora que trabalho com o barman. Apesar de Sutter ser uma cidade pequena aqui tem de tudo, por isso é comum ver homens engravatados, a maioria proprietários de firmas de advocacia, imobiliárias e hotéis. Ouvi até que vão abrir uma construtora aqui em alguns meses.
Quando dou meu dia de trabalho por encerrado vou pra casa mais tranquila porque minha melhor amiga já buscou meus filhos na casa dos meus pais.
Chego em casa toda moída e apenas querendo um banho quente e me livrar desses sapatos, o salto não é exagerado, mas para alguém como eu qualquer coisa que não me deixe no modo mãe confortável me incomoda.
— Já preparamos todos os ingredientes para você fazer aquela lasanha de dar água na boca amiga — minha amiga fala olhando os cúmplices. Apesar de cansada tive que fazer a tal lasanha porque todos eles armaram tudo isso para comer a bendita lasanha. Um prato que eu prefiro fazer aos domingos, meu único dia de folga.
Jantamos ouvindo meus filhos narrarem o dia legal que tiveram na escola. Eu ouço sempre tudo com atenção. Apesar da minha rotina maluca quero saber de tudo que eles andam fazendo. Sentamos todos no único sofá da sala com espaço para quatro pessoas e ajudo meus pequenos com o dever de casa enquanto comem seus sorvetes.
A Emma trouxe, eles sabem que sorvete é para ocasiões especiais e se eles se comportarem direito.
— Já soube da nova amiga? — Faço que não olhando a página do livro do Christian. — A nossa antiga escola está organizando um encontro de ex alunos.
Agora ela chamou minha atenção.
— Como assim?
— Se passaram dez anos Cris. O que significa que todos os alunos da formatura do ano em que saímos do colégio vão se reencontrar. Já imaginou que máximo? O encontro vai acontecer daqui a um mês. Então já podemos começar a procurar nossos vestidos. — Ela diz toda animada.
— Eu não vou. — Minha boca foi mais rápida que eu.
A última coisa que quero é reviver os acontecimentos de dez anos trás e muito menos rever meu passado.