O som da reunião explodiu como estilhaços invisíveis na mente de Isadora Mancini.
— É oficial. Se não houver aporte em até trinta dias, a empresa da sua família entra em recuperação judicial. — O tom frio do advogado soou como sentença de morte. Ela não respondeu. Apenas continuou encarando o espelho fosco da sala de reuniões. Cabelos presos em um coque impecável. Lábios fechados num vermelho sóbrio. Olhos… vazios. Por dentro, ela estava em ruínas. Por fora, era puro gelo. A Mancini Design, construída ao longo de três gerações, estava desmoronando. E tudo começou no dia em que ela foi deixada no altar. O ex-noivo, Marcelo Ventura, havia prometido amor eterno e parceria nos negócios. Mas o que entregou foi traição, humilhação pública e a quebra de contratos milionários que culminaram na derrocada. Desde então, Isadora aprendeu a sobreviver com a alma fechada em punhos de aço. Ela agradeceu com um aceno seco, recolheu os papéis e saiu da sala sem dizer mais uma palavra. *** Na rua, a chuva fina escorria pelas janelas escuras do carro. A cidade parecia zombar da sua queda. Buzinas, pressa, e ninguém realmente se importando com o fato de que uma mulher estava perdendo tudo o que tinha. Inclusive a si mesma. O celular vibrou. Número oculto. Ela quase ignorou, mas atendeu com irritação. — “Alô?” Silêncio. E então, uma voz. — “Isadora Mancini. Ainda soa com orgulho, mesmo à beira do colapso.” Ela congelou. A voz era grave, elegante… e perigosamente familiar. — “Quem está falando?” — “Não reconhece mais quem já teve o mundo aos seus pés?” Ela não respondeu. O coração acelerou. As palavras vieram secas: — “O que você quer, Lorenzo?” Lorenzo Salvatori. Magnata. Ceo de uma das maiores holdings da Europa. E homem que, cinco anos atrás, tentou comprar parte da Mancini Design, e foi recusado com elegância e frieza por ela. Na época, ele sorriu e disse: — “Orgulho é bom. Até ser tudo o que resta.” Agora, ele estava de volta. — “Estou em São Paulo.” — disse ele — “E quero conversar. Hoje. A sós.” Ela apertou o celular com força. — “Se você acha que vou me ajoelhar e pedir ajuda…” — “Você não vai pedir. Eu vou oferecer. E depois, você vai aceitar. Porque, dessa vez, o orgulho não vai pagar as contas.” O sangue dela ferveu. — “Vá para o inferno, Salvatori.” — “Estarei esperando às 20h, no Mirador Hotel. Suíte presidencial. E não se atrase. A queda de uma rainha sempre atrai abutres… e eu prefiro vê-la de perto.” A ligação caiu. Isadora jogou o celular no banco ao lado. Tinha vontade de gritar. De chorar. De desaparecer. Mas ao invés disso, ajeitou o batom. Ela iria. Mas não para aceitar. Para dizer a Lorenzo Salvatori que nem falida ela se vendia. *** Às 19h59, ela atravessou o lobby do hotel de cabeça erguida. Vestia preto. Alfaiataria impecável. Salto firme. Postura de quem já perdeu, mas ainda luta de salto alto. A suíte era ampla, silenciosa, iluminada por luzes quentes. E lá estava ele. De pé diante da lareira, terno escuro impecável, mãos nos bolsos, olhar de lobo domesticado. Lorenzo Salvatori parecia mais perigoso do que na última vez que ela o viu. — Pontual. Isso sempre me excitou. — Ele sorriu com um canto dos lábios. — Me diga logo o que quer. Não tenho tempo a perder. — Você tem todo o tempo do mundo. Afinal, não tem mais uma empresa para gerenciar. Ela avançou um passo, olhos faiscando. — Me respeita, Salvatori. Ele se aproximou. Sem pressa. Sem ameaça. Mas com uma presença que invadia o ar. — Respeito? Eu te ofereci sociedade há cinco anos. Você recusou com sarcasmo e nojo. Agora, é você quem precisa... de mim. Ela o encarou. — E vai usar isso para me humilhar? — Não! Para te oferecer um contrato. — Que tipo de contrato? Ele sorriu. — Um que resolverá seus problemas financeiros... e os meus institucionais. Você será minha noiva de fachada por três meses. Salvamos sua empresa. Preservo minha reputação. Ganhamos. Mas ninguém precisa saber... que estamos em lados opostos da cama. Isadora sentiu o sangue sumir do rosto. — Você está louco se acha que eu... — Ainda tem tempo. E escolha. — Ele se inclinou — Mas quando não tiver mais nenhuma opção... vai voltar. Ela deu um passo atrás. Ele observou, sem disfarçar. — Lembre-se, Mancini. Não é orgulho o que te mantém de pé. É teimosia. E ela cobra caro. Ela girou nos calcanhares e saiu, sem responder. Mas por dentro… ela já sentia as grades se fechando. O elevador mal havia se fechado, e Isadora já sentia o corpo ceder. As pernas queriam vacilar. As mãos tremiam, embora ela mantivesse os dedos firmes, cravados na bolsa como se segurar alguma coisa fosse impedir o resto de desmoronar. A proposta de Lorenzo ecoava em sua mente como um insulto calculado. Noiva de fachada. Ela, que foi abandonada no altar diante de duzentos convidados, e do mundo inteiro que acompanhava o escândalo pelas redes sociais. Marcelo Ventura. O nome ainda era um sussurro ácido que queimava por dentro. O que mais doía não era o abandono. Era o fato de que ela o amava. Com toda a força da mulher que acreditava no amor, no casamento, no “para sempre”. Eles se conheceram na faculdade de administração, em uma palestra sobre sucessão empresarial. Marcelo era carismático, ousado, e fazia com que ela se sentisse segura. Bonito, inteligente, filho de uma família tradicional. Parecia o tipo certo de homem para dividir uma vida. Ele não apenas conquistou Isadora, conquistou também a confiança do pai dela, entrou como sócio da empresa, levou ideias modernas para dentro da Mancini Design, e aos poucos… tomou espaço. Ela, cega pela paixão, permitiu. — “O que é meu, é seu.” — ela costumava dizer, com os olhos brilhando, quando ele pedia acesso a alguma nova pasta, uma nova conta, uma nova negociação. Ela dividia tudo. Inclusive o coração. O casamento seria no campo. Um evento discreto, elegante, mas com convidados influentes e cobertura de revistas de negócios. Era a união de duas linhagens empresariais. A celebração do amor e do poder. Mas na manhã do grande dia, Marcelo simplesmente... desapareceu. Sem carta. Sem mensagem. Sem desculpa. Ela entrou na igreja sozinha, apenas para descobrir que ele havia viajado naquela madrugada. Horas depois, a bomba: fotos dele em um iate na Grécia ao lado de uma influenciadora com quem, segundo a legenda, “estava redescobrindo o verdadeiro amor”. Isadora não chorou no altar. Não gritou. Apenas saiu. Em silêncio. Mas por dentro, ela morreu naquele dia. Os meses seguintes foram um massacre. A imprensa devorava cada detalhe. As ações da empresa despencaram. Clientes romperam contratos por “falta de confiança”. Marcelo, além de sócio, havia deixado rastros, vazou documentos internos, expôs finanças em podcasts e entrevistas, e destruiu o que restava da imagem pública dos Mancini. Ela passou a ser chamada de “a noiva abandonada”, “a mulher fria”, “a herdeira em queda”. E tudo que construiu com esforço… virou poeira. De volta ao carro, naquela noite chuvosa, Isadora soltou um riso rouco e sem humor. Lorenzo. Justo ele. O homem que ela recusou com veemência quando tudo ainda era estável. O predador elegante que agora se apresentava como solução. Ela apertou os olhos, encostou a cabeça no banco e lembrou da última coisa que disse a si mesma naquela noite em que saiu da igreja com o vestido manchado de vergonha: — “Nunca mais.” Nunca mais entregaria seu coração. Nunca mais acreditaria em promessas. Nunca mais baixaria a guarda para homem algum. — Amor é uma moeda perigosa. — murmurou para si mesma — E eu estou falida. Na tela do celular, ainda com gotas de chuva, a notificação de uma nova matéria: — “Ex-noiva de Marcelo Ventura será despejada da sede da Mancini Design. Fontes indicam que Lorenzo Salvatori pode estar envolvido.” Ela encarou a manchete por um longo tempo. Na tela, sua foto. Séria. Fria. A mulher que ela foi forçada a se tornar. Lorenzo era um mestre em manipular narrativas. E agora ele estava controlando o enredo. Pressionando aos poucos. Expondo sua vulnerabilidade. Dando a ela tempo suficiente… para escolher ceder. Mas ela não cederia. Ainda não. Ela olhou seu reflexo no vidro da janela. A maquiagem intacta, o olhar impenetrável. — Você me quebrou, Marcelo… mas eu me reconstruí com aço. E quanto a Lorenzo? Ela ainda não sabia se ele seria a lâmina ou a cura. Mas sabia de uma coisa com absoluta certeza: Se algum dia ela aceitasse aquele contrato, não seria por amor. Seria por guerra.