Aurora
Acordei com uma sensação estranha no peito, como se algo tivesse mudado. E, de certo modo, tinha mesmo. Durante a madrugada, ouvi barulhos no andar de cima. Passos firmes, uma porta se abrindo, um som abafado de conversa. Acho que quem chegou é mesmo o filho da madame. Não fui conferir. Respeito os espaços da casa como se fossem sagrados. Mas no fundo eu sabia. O filho mais velho tinha chegado. E por algum motivo, meu coração bateu mais forte só de imaginar. Ao longo do dia, ouvi as funcionárias comentando que ele chegou tarde, depois do jantar, que mal falou com a mãe e se trancou no antigo quarto de hóspedes, o único que não estava em uso. — Um homem misterioso. — disse a cozinheira, rindo. — Arrogante, se for igual ao irmão. — rebateu a arrumadeira. Preferi não opinar. Nunca tinha visto sequer uma foto de Vicenzo. Madame Glória guardava os retratos dos filhos longe das áreas comuns da casa. E mesmo com Henrique por perto, nunca comentei sobre o irmão ausente. Talvez fosse melhor assim. A ausência de rostos preserva a liberdade da imaginação. Naquela noite, minha mente estava longe. A festa da faculdade se aproximava e, mesmo com o vestido presenteado por madame, eu ainda hesitava. Não era meu mundo. Não me sentia parte dele. Mas havia algo em mim. Um desejo adormecido de pertencer. De viver. Vesti o vestido preto de alças finas, a echarpe rosa delicadamente jogada sobre os ombros. Prendi os cabelos como madame sugeriu, e encarei meu reflexo no espelho. Por um instante, não me reconheci. Aurora, a empregada? Não. Naquela noite, eu era só Aurora. A mulher. A festa acontecia em um espaço elegante, alugado por um grupo de alunos veteranos. Música ambiente, luzes suaves, gente bonita por todos os lados. Por um tempo, me mantive próxima das minhas colegas, segurando um copo com vinho branco. Foi quando o vi. Do outro lado do salão, encostado perto do bar, um homem alto, terno preto aberto, a camisa parcialmente desabotoada, sem gravata. Cabelos escuros, barba por fazer e um olhar penetrante que me arrepiou. Ele também me olhava. Senti meu rosto esquentar, o coração disparar. Fingi desviar, mas quando voltei a olhar ele ainda estava lá. Me encarando. Algo em mim cedeu. Talvez fosse o vinho. Talvez o mar daquela manhã. Talvez o fato de eu não suportar mais viver sempre como coadjuvante. Caminhei até o bar, tentando parecer confiante. — Vinho branco — pedi. Ele chegou mais perto. — Não combina com você — disse, sua voz rouca e grave. — Aposto que é mais intensa do que parece. Sorri de lado, sem encará-lo diretamente. — E você não me parece bom em apostas. Ele riu baixo. — Quer tentar a sorte? A tensão era quase palpável e meu coração estava acelerado. Não trocamos nomes. Não falamos de onde viemos, nem o que fazíamos da vida. Éramos apenas dois estranhos, livres do mundo. A música mudou, desacelerando o ritmo. Agora era algo mais denso, com batida marcada e sensual. Meus pés já doíam pelo salto, mas meu corpo estava aquecido, talvez pelo vinho, talvez pelo olhar dele que me acompanhava a cada passo que eu dava. Estava encostada próxima à pista quando senti a aproximação. Um perfume amadeirado e marcante envolveu o ar, e antes que eu virasse, a voz dele soou baixa perto do meu ouvido. — Vai me deixar te olhar a noite toda ou vai me deixar tocar? Arrepiei. Virei lentamente, e ele já estava ali, firme, com um meio sorriso que dizia tudo e ao mesmo tempo nada. Seus olhos escuros percorreram meu corpo com calma, mas não com vulgaridade era fome misturada com admiração. — E se eu disser que gosto de ser olhada? — desafiei, a voz mais baixa do que eu queria. Ele se aproximou um pouco mais, sem me encostar, mas perto o suficiente para que eu sentisse o calor do corpo dele. — Acredite, se eu te tocar, vai gostar ainda mais. Sorri, nervosa. E foi nesse instante que ele estendeu a mão. — Dança comigo? Assenti. A mão dele segurou a minha com firmeza e cuidado ao mesmo tempo. Ele me puxou para a pista, e nossos corpos se alinharam como se já se conhecessem há anos. A mão grande dele pousou na minha cintura, e a outra segurava a minha com firmeza. A ponta de seus dedos encostou em minha pele descoberta, e meu corpo respondeu com um arrepio involuntário. — Está tremendo — ele sussurrou, com um sorriso enviesado. — Não estou acostumada com isso. — — Com o quê? — — Com homens como você. Ele riu, rouco, aproximando o rosto do meu. — E como são os homens como eu? Engoli em seco. — Perigosos. — E você gosta de perigo? — Hoje eu acho que sim. Nossos rostos estavam tão próximos que senti o calor da respiração dele. Seu perfume era algo entre madeira e especiarias, uma fragrância que grudou na minha memória como tatuagem. E então ele me beijou. Foi diferente de tudo o que eu imaginei. Sua boca era firme, quente e suave ao mesmo tempo. Ele beijava com fome, mas também com precisão, como se quisesse explorar cada centímetro da minha boca. O mundo ao redor desapareceu. Meus joelhos enfraqueceram, e meus dedos se apertaram contra a camisa dele. Ele me segurou com força pela cintura, colando nossos corpos, fazendo questão de me fazer sentir cada parte dele. Meu coração batia tão rápido que pensei que ele pudesse ouvir. O calor subiu pelas minhas pernas, pela barriga, pelo peito e explodiu em cada canto do meu corpo. Era só um beijo. Mas não era só um beijo. — Você está me deixando louco — ele sussurrou contra minha boca, os olhos escuros fixos nos meus. — Diz que vem comigo. — Não sei nem seu nome — falei, com a respiração entrecortada. — Hoje à noite, isso não importa. O que importa é o que você está sentindo agora. E eu sentia. Sentia desejo. Curiosidade. Um fogo incontrolável nas veias. Aquela não era a Aurora empregada, discreta, tímida e obediente. Era uma Aurora que eu nem sabia que existia livre, desejada mulher. Por isso, eu fui. Fui com ele. Sem nome. Sem passado. Só com a certeza de que depois daquela noite eu nunca mais seria a mesma.