Clara passou o restante do dia como se estivesse vivendo um sonho lúgubre. Após a conversa com Enrico, voltou para casa com o mesmo motorista, mas não conseguiu sequer apreciar o trajeto. A cidade parecia mais distante, mais cinza. Sua casa, antes pequena e acolhedora, agora lhe dava a sensação de confinamento.
Assim que entrou, encontrou a mãe preparando o almoço, os irmãos rindo no sofá da sala, e o pai... ausente. De novo. Aquilo parecia se tornar padrão.
— Clara? — perguntou a mãe, sorrindo, com o rosto cansado e olhos sublinhados por olheiras. — Onde esteve, querida?
— Eu... fui resolver umas coisas — respondeu, hesitante. — Com o papai.
A mãe não questionou. Talvez já estivesse acostumada com os segredos que circulavam por aquela casa como fantasmas. Clara subiu para o quarto, sentindo-se mais só do que nunca.
Naquela noite, não dormiu. E no dia seguinte, como prometido, o contrato chegou.
Foi entregue por um mensageiro formal, dentro de uma pasta de couro preta, com uma carta educada anexada, redigida com a frieza típica de alguém que transforma vidas em cláusulas. Clara passou horas encarando aquele papel como se esperasse que ele desaparecesse. Não desapareceu.
O contrato previa todos os termos que Enrico havia mencionado. O casamento seria oficializado em cartório, seguido de uma cerimônia simbólica e privada em uma das propriedades da família Hernandez. Clara teria direito a uma conta bancária própria, residência independente caso desejasse, e nenhuma obrigação íntima sem consentimento. Em troca, o nome dela apareceria ao lado de Enrico em eventos, jornais, reuniões. Uma esposa moldada para o papel que o empresário precisava desempenhar.
Mas havia também uma cláusula que arrepiou sua pele: confidencialidade. Nada daquilo poderia ser revelado publicamente. Qualquer quebra do contrato implicaria multa milionária e um processo por difamação e quebra de acordo civil.
No rodapé da última página, dois espaços aguardavam assinaturas: Enrico A. Hernandez e Clara E. Almeida.
Ela leu aquele trecho várias vezes. Seu nome, frio e solitário, gravado como se fosse apenas parte de uma peça jurídica.
Quando o pai chegou em casa à noite, encontrando-a sentada à mesa com o contrato à frente, ele parecia mais sóbrio e abatido do que nunca.
— Eu não esperava que isso chegasse tão longe, filha... — disse ele, se aproximando. — Mas é nossa única chance.
— Nossa? Ou sua? — Clara levantou os olhos, desafiadora. — Não me envolva nisso como se fosse por todos. Você apostou tudo. E agora quer que eu pague o preço com a minha vida.
O pai abaixou a cabeça.
— Eu errei. Sei disso. Mas se você não fizer isso... não sei como vamos sair dessa.
Ela riu, amarga.
— E você acha que eu sei?
Houve um silêncio denso entre os dois. Ele colocou uma mão sobre a dela.
— Só... pense com carinho. Eu juro que, se aceitar, eu nunca mais toco num jogo. Eu mudo. Por você. Por todos nós.
Clara não respondeu. Subiu para o quarto levando o contrato consigo, mas sem uma decisão tomada.
Nos dias seguintes, passou a viver em função daquela dúvida. Evitou os amigos. Parou de ir à faculdade. Sua mãe começou a notar seu silêncio, mas preferiu não perguntar. Apenas observava, com aquele olhar de mãe que sabe mais do que demonstra.
Foi numa tarde cinzenta de terça-feira que Clara enfim decidiu.
Colocou o contrato sobre a escrivaninha, pegou a caneta com dedos trêmulos e assinou. Não porque acreditasse na promessa de redenção do pai. Nem por confiar em Enrico. Mas porque não via mais como continuar vivendo numa casa onde tudo parecia se desmanchar.
No dia seguinte, uma mensagem discreta chegou ao seu celular.
“Contrato recebido. Preparativos para o casamento em andamento. Sua nova vida começa em breve. — E.”
Clara leu aquela frase repetidamente. “Sua nova vida”. Como se fosse um recomeço. Para ela, parecia o fim de tudo o que havia sonhado.
Dois dias depois, uma mulher chamada Daniela bateu à sua porta. Era uma assistente de Enrico, com roupas sóbrias, cabelos curtos e modos eficientes.
— Estou aqui para ajudá-la com os ajustes necessários para a cerimônia — disse ela, sem rodeios. — Vestido, documentos, plano de viagem, escolha de residência. O Sr. Hernandez já deixou tudo encaminhado.
Clara se sentiu uma peça sendo encaixada em um tabuleiro que não escolhera jogar. Ainda assim, seguiu Daniela até o carro, como quem cumpre uma sentença.
Foram a três lojas diferentes. Clara experimentou vestidos caríssimos, todos lindos, todos impessoais. Optou por um modelo simples, de cetim branco com mangas de renda. Daniela aprovou com um sorriso profissional.
— Discreto e elegante. Exatamente como o senhor Hernandez imaginou.
Clara não respondeu.
Nos bastidores daquele “acordo”, tudo acontecia com uma precisão assustadora. Convites foram enviados apenas para alguns empresários e familiares próximos. A cerimônia seria restrita, sem grande exposição. Clara escolheu não convidar ninguém além da mãe, que aceitou ir com os olhos marejados e um aperto silencioso de mãos. Os irmãos sequer foram informados da gravidade da situação. Para eles, tudo parecia mais um capricho da irmã mais velha que sumia por dias e voltava com cara triste.
Na véspera do casamento, Clara olhou pela última vez seu quarto, seu espelho antigo, os livros empilhados, as fotos de infância com os irmãos. Guardou tudo em uma mala pequena — uma vida inteira reduzida a roupas dobradas e memórias apertadas num zíper.
Na manhã do casamento, o céu estava limpo. Clara acordou cedo, tomou um banho demorado e encarou seu reflexo no espelho. Não chorou. Não sorriu. Apenas respirou fundo.
E caminhou para um destino que não havia escolhido... mas que, agora, era o único que tinha.
A manhã do casamento chegou com uma suavidade desconcertante, como se o mundo quisesse ignorar o peso do que estava prestes a acontecer. O céu estava limpo, sem uma nuvem à vista, e o ar fresco da primavera invadia a casa com uma suavidade que parecia irônica diante da tensão que Clara sentia. O dia deveria ser especial, mas, para ela, parecia apenas um rito de passagem forçado. Clara se olhou no espelho do quarto que agora dividia com Enrico, o rosto pálido, com a maquiagem impecável que Daniela, assistente de Enrico, fizera questão de aplicar. O vestido de noiva, que ela escolheu sem muita emoção, parecia mais uma armadura do que um traje de celebração. O tecido branco e a renda delicada contrastavam com a frieza de seus pensamentos. O espelho refletia a imagem de uma mulher que estava prestes a dar um passo irreversível em sua vida, mas que não sabia se ainda conseguia se reconhecer no reflexo. A casa estava calma. Sua mãe havia ficado na cozinha, preparando um café que ninguém b
A primeira noite no grande casarão foi silenciosa, tão silenciosa que Clara sentiu como se estivesse em um outro mundo, isolada de tudo o que um dia conheceu. O lugar, imenso e imponente, estava longe de ser acolhedor. Ela se mexia na cama, tentando se ajustar ao novo ambiente, mas a cama enorme parecia fria e distante, e a quietude da casa fazia com que ela sentisse um peso no coração. Nada sobre aquele lugar parecia familiar. Quando Clara olhou ao redor, a decoração luxuosa e impessoal não fazia sentido para ela. Cada objeto, cada móvel, parecia ter sido colocado ali com o único propósito de impressionar, e não de trazer aconchego. A grande janela do quarto, que dava para o jardim, permitia que ela visse as luzes da cidade distante, mas não oferecia a sensação de conforto que ela desejava. Ela fechou os olhos, tentando bloquear os pensamentos que invadiam sua mente, mas não conseguia. As imagens do casamento, a assinatura do contrato, a promessa de Enrico de cuidar dela... Tudo par
A vida na casa de Enrico começou a se moldar em uma rotina. Embora Clara ainda estivesse tentando se adaptar, o novo ambiente parecia ser mais uma prisão do que um lar. Todos os dias, ela acordava cedo, enfrentava o silêncio da casa e passava os momentos mais desconfortáveis tentando entender seu lugar ali. Enrico, por sua vez, se mostrava distante, imerso nos seus próprios pensamentos e tarefas, como se já tivesse se acostumado com a presença dela, mas sem nunca realmente estar presente. Clara sentia falta da liberdade que tinha antes. Mesmo com a obrigação do casamento, ela não podia negar a saudade que sentia de sua antiga vida, da simplicidade das manhãs na casa de seus pais. Mas, com o passar dos dias, as coisas começaram a mudar — para pior. A rotina de Clara era marcada por longos períodos de solidão. Enrico saia cedo para trabalhar e só voltava à noite, deixando-a sozinha com a casa, os empregados e a imensidão daquele lugar. Embora ela tivesse total acesso aos luxos do casa
Os dias começaram a se arrastar de maneira monótona, mas Clara não conseguia afastar da cabeça as palavras que ouvira naquela noite. Enrico estava escondendo algo, algo que poderia mudar tudo. Ela não sabia o que era, mas a sensação de desconforto só aumentava. Toda vez que ele a olhava com aqueles olhos frios, Clara sentia que ele sabia mais do que dizia. Algo no comportamento dele estava fora do lugar, mas o que exatamente? Era como se ela estivesse cercada por um jogo de sombras, onde as regras estavam sendo constantemente mudadas, e ela era a única que não sabia as respostas. Enrico, por sua vez, não parecia nem um pouco abalado. A cada dia, ele se tornava mais distante, mais centrado no trabalho. Suas interações com Clara estavam limitadas a momentos formais, como se ela fosse uma estranha, uma convidada em sua casa e não sua esposa. Embora fosse óbvio que ele tinha outros interesses além dela, Clara se sentia pressionada a manter as aparências, a continuar com o papel que lhe f
Clara acordou com uma sensação de desconforto. O vento frio que entrava pelas janelas abertas sussurrava uma música melancólica. A casa parecia imensa, mas ao mesmo tempo opressora, como se as paredes estivessem se fechando sobre ela a cada dia. Ela levantou da cama lentamente, os pensamentos turvos e entrelaçados, mas a imagem de Gabriel e a reação de Enrico ainda estavam frescas em sua mente. Ela tentou racionalizar tudo. Enrico sempre fora tão reservado, sempre tão controlador. Mas algo nela, talvez a intuição, lhe dizia que o marido estava escondendo algo muito maior. Clara não conseguia ignorar o fato de que, quando Gabriel apareceu, Enrico mudou completamente. O comportamento rígido e autoritário de Enrico não era apenas com ela, mas também com os outros ao seu redor. Gabriel, um homem aparentemente comum, parecia ter algum tipo de importância para Enrico. Isso, por si só, já era suficiente para que Clara se sentisse inquieta. Enquanto tomava seu café na grande cozinha da mans
A tensão no ar era palpável. Clara ficou ali, na biblioteca, encarando Enrico com uma mistura de confusão e raiva. Ele sabia que algo estava acontecendo, e ela também sabia que ele estava escondendo mais do que podia imaginar. Gabriel se afastou discretamente, permitindo que Clara tivesse a atenção total de Enrico. A sala parecia ainda maior agora, as sombras projetadas pelas luzes suaves do lustre criando uma atmosfera carregada de mistério. Enrico entrou na biblioteca, fechando a porta atrás de si com um estalo seco. Ele não disse nada por um longo momento, apenas observando Clara, como se estivesse esperando que ela falasse. Mas Clara não podia mais esperar. Ela precisava saber a verdade. — O que você está escondendo de mim, Enrico? — Clara perguntou, sua voz firme, apesar da apreensão que sentia. Ela não podia mais fingir que tudo estava bem. Enrico deu um passo à frente, seu olhar cortante como uma lâmina afiada. Ele parecia pesar suas palavras, mas, em vez de responder direta
A manhã seguinte chegou mais lenta do que Clara imaginava. O som suave dos passarinhos que cantavam do lado de fora da janela parecia uma ironia diante da tempestade interna que se formava em seu peito. Ela acordou cedo, muito antes de Enrico ou qualquer outra pessoa. O silêncio da casa era opressor, como se todos estivessem aguardando algo que, embora inevitável, ninguém queria enfrentar. Clara se levantou da cama com um suspiro, seus pensamentos ainda girando em torno do que Enrico lhe dissera na noite anterior. Ele havia se afastado, fugido de suas perguntas, e isso apenas a fez sentir que estava lidando com algo muito maior do que imaginava. Algo que ela não estava pronta para enfrentar, mas que agora parecia ser seu único caminho. Ela sabia que precisava seguir em frente, descobrir a verdade que ele tentava esconder, não importa o custo. Quando entrou no banheiro, olhou seu reflexo no espelho. Seus olhos estavam marcados pelo cansaço, e seu rosto pálido refletia a tensão que el
Clara estava sem palavras. A revelação de Enrico ainda ecoava em sua mente, mas, antes que pudesse digerir completamente o que ele acabara de dizer, ele a interrompeu, seu olhar grave refletindo a seriedade do momento. — Eu sei que você está confusa, Clara. E eu não espero que você me perdoe agora. Mas você precisa entender uma coisa — ele fez uma pausa, como se ponderasse as palavras que viriam a seguir. — Gabriel não é apenas meu irmão. Ele tem mais envolvimento com nossa família do que você imagina. Clara sentiu um calafrio percorrer sua espinha. Gabriel. Tudo o que ela soubera até então parecia desmoronar diante dessa nova informação. Como ele estava envolvido? O que isso significava para ela? A dúvida a corroía, mas ela sabia que, se quisesse realmente entender a teia de mentiras em que estava enredada, precisava ouvir Enrico até o fim. — Eu preciso que você me explique, Enrico — Clara disse, sua voz tremendo levemente, mas sua postura ainda firme. Ela estava determinada a ent