Na manhã seguinte, ela despertou com a luz invadindo o quarto pelas frestas da cortina. O rosto inchado, a garganta seca. Levantou-se como quem carrega o peso do mundo nos ombros. Ao sair do quarto, encontrou a casa vazia. Um bilhete preso com ímã à geladeira indicava que a mãe havia levado os irmãos à escola e o pai tinha uma reunião importante. A caligrafia era apressada, quase ilegível. Clara não se deu ao trabalho de respondê-los. Serviu-se de café, o mesmo de ontem, requentado, e tentou acalmar a mente. Mas era impossível. A proposta absurda do pai ainda martelava em sua cabeça.
Casar-se com um homem que não conhecia?
O pensamento a fazia estremecer. E mais do que isso: como podia o pai simplesmente decidir entregar sua filha como pagamento de dívidas?
Mais tarde, por volta das 11h, o interfone tocou. Clara, ainda descalça e com a caneca de café na mão, atendeu com desconfiança.
— Senhorita Clara? — disse uma voz masculina, firme. — O senhor Enrico está aguardando você. Motorista particular.
Ela hesitou.
— Meu pai não está.
— Eu sei. Fui orientado a buscá-la. O senhor Enrico gostaria de encontrá-la pessoalmente.
Clara sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha. Ela não sabia o que era pior: o fato de o pai ter combinado um encontro sem sua autorização ou o nome daquele homem ser agora parte de sua realidade.
Enrico.
O nome soava frio. Distante.
Tomada por um impulso que nem ela mesma compreendia, Clara trocou de roupa rapidamente — um vestido azul claro simples e uma jaqueta jeans —, amarrou o cabelo em um rabo de cavalo e desceu.
O carro preto estacionado em frente à casa era um sedã de luxo, com vidros escurecidos e interior impecável. O motorista abriu a porta para ela com um leve aceno de cabeça, e ela entrou em silêncio. Durante o trajeto, observou a cidade passar pela janela como se estivesse em um filme. As ruas conhecidas, o caminho habitual até o centro — tudo parecia banal diante do destino desconhecido que a aguardava.
Quinze minutos depois, o carro entrou em um condomínio empresarial de alto padrão. Portões automáticos, seguranças uniformizados, câmeras por todos os lados. Clara ficou ainda mais tensa. O carro parou diante de um prédio de fachada espelhada, moderno, elegante. A placa na entrada dizia: “Hernandez Group – Sede Administrativa”.
Ao descer, foi recebida por uma recepcionista de terno escuro e coque apertado.
— Senhorita Clara? Por favor, me acompanhe.
Subiram por um elevador panorâmico até o 24º andar. O silêncio era cortante. Quando as portas se abriram, a recepcionista conduziu-a até uma sala ampla, toda envidraçada, com uma vista deslumbrante da cidade. No centro, uma mesa de madeira escura e, atrás dela, o homem.
Enrico Hernandez.
Ele se levantou lentamente, um sorriso educado no rosto. Alto, postura impecável, cabelos escuros penteados para trás, barba bem feita, e olhos intensos — um castanho escuro quase preto que transmitia autoridade. Vestia um terno sob medida, de tom grafite, com abotoaduras prateadas. Sua presença preenchia o ambiente de maneira quase opressora.
— Clara — disse ele, com a voz grave e segura. — É um prazer finalmente conhecê-la.
Ela sentiu um nó na garganta, mas manteve a cabeça erguida.
— Queria poder dizer o mesmo — respondeu, firme.
Ele sorriu de canto, como se já esperasse aquilo.
— Compreendo que esta situação é, no mínimo, desconfortável. E lamento sinceramente por isso. Mas preciso ser direto. Seu pai está em uma situação... desesperadora. E eu ofereci uma solução que beneficiaria ambas as partes.
— Casar comigo? Como se eu fosse uma transação? — Clara rebateu, sentindo o sangue ferver.
— Não é uma transação — disse ele, se aproximando. — É um acordo. Um contrato. Eu tenho interesses familiares e empresariais. Uma esposa jovem, elegante, com o seu perfil, traria estabilidade à minha imagem. Em troca, sua família é salva da ruína. Você teria conforto, segurança, liberdade. E claro, tudo devidamente acordado entre nós.
— Liberdade? Em um casamento forçado?
Enrico suspirou e caminhou até a janela, olhando a cidade.
— Não sou um monstro, Clara. Não vou obrigá-la a nada. Você é livre para recusar. Mas, se recusar, saiba que não haverá renegociação com seu pai. Eu pagarei todas as dívidas apenas com esse compromisso firmado. Uma vez assinado, tudo será quitado. Em 48 horas.
Clara se sentou, sentindo o corpo ceder.
— E se eu aceitar... o que você espera de mim?
Enrico virou-se para ela.
— Respeito mútuo. Companheirismo público. Presença em eventos. Nenhuma exigência íntima, a menos que você deseje. Podemos tratar isso como uma aliança conveniente. Sem pressões.
A proposta era surreal. Um casamento sem amor, sem desejo... apenas uma encenação bem arquitetada?
Clara estava dividida entre o impulso de gritar e o desespero de aceitar.
— E se eu disser sim? — perguntou, quase sussurrando.
Enrico se aproximou, mais sério.
— Então, amanhã enviarei o contrato. E no prazo de uma semana, seremos oficialmente marido e mulher.
Ela assentiu, mas sem convicção. Apenas porque, pela primeira vez em muito tempo, não via saída.
Clara passou o restante do dia como se estivesse vivendo um sonho lúgubre. Após a conversa com Enrico, voltou para casa com o mesmo motorista, mas não conseguiu sequer apreciar o trajeto. A cidade parecia mais distante, mais cinza. Sua casa, antes pequena e acolhedora, agora lhe dava a sensação de confinamento. Assim que entrou, encontrou a mãe preparando o almoço, os irmãos rindo no sofá da sala, e o pai... ausente. De novo. Aquilo parecia se tornar padrão. — Clara? — perguntou a mãe, sorrindo, com o rosto cansado e olhos sublinhados por olheiras. — Onde esteve, querida? — Eu... fui resolver umas coisas — respondeu, hesitante. — Com o papai. A mãe não questionou. Talvez já estivesse acostumada com os segredos que circulavam por aquela casa como fantasmas. Clara subiu para o quarto, sentindo-se mais só do que nunca. Naquela noite, não dormiu. E no dia seguinte, como prometido, o contrato chegou. Foi entregue por um mensageiro formal, dentro de uma pasta de couro preta, com uma c
A manhã do casamento chegou com uma suavidade desconcertante, como se o mundo quisesse ignorar o peso do que estava prestes a acontecer. O céu estava limpo, sem uma nuvem à vista, e o ar fresco da primavera invadia a casa com uma suavidade que parecia irônica diante da tensão que Clara sentia. O dia deveria ser especial, mas, para ela, parecia apenas um rito de passagem forçado. Clara se olhou no espelho do quarto que agora dividia com Enrico, o rosto pálido, com a maquiagem impecável que Daniela, assistente de Enrico, fizera questão de aplicar. O vestido de noiva, que ela escolheu sem muita emoção, parecia mais uma armadura do que um traje de celebração. O tecido branco e a renda delicada contrastavam com a frieza de seus pensamentos. O espelho refletia a imagem de uma mulher que estava prestes a dar um passo irreversível em sua vida, mas que não sabia se ainda conseguia se reconhecer no reflexo. A casa estava calma. Sua mãe havia ficado na cozinha, preparando um café que ninguém b
A primeira noite no grande casarão foi silenciosa, tão silenciosa que Clara sentiu como se estivesse em um outro mundo, isolada de tudo o que um dia conheceu. O lugar, imenso e imponente, estava longe de ser acolhedor. Ela se mexia na cama, tentando se ajustar ao novo ambiente, mas a cama enorme parecia fria e distante, e a quietude da casa fazia com que ela sentisse um peso no coração. Nada sobre aquele lugar parecia familiar. Quando Clara olhou ao redor, a decoração luxuosa e impessoal não fazia sentido para ela. Cada objeto, cada móvel, parecia ter sido colocado ali com o único propósito de impressionar, e não de trazer aconchego. A grande janela do quarto, que dava para o jardim, permitia que ela visse as luzes da cidade distante, mas não oferecia a sensação de conforto que ela desejava. Ela fechou os olhos, tentando bloquear os pensamentos que invadiam sua mente, mas não conseguia. As imagens do casamento, a assinatura do contrato, a promessa de Enrico de cuidar dela... Tudo par
A vida na casa de Enrico começou a se moldar em uma rotina. Embora Clara ainda estivesse tentando se adaptar, o novo ambiente parecia ser mais uma prisão do que um lar. Todos os dias, ela acordava cedo, enfrentava o silêncio da casa e passava os momentos mais desconfortáveis tentando entender seu lugar ali. Enrico, por sua vez, se mostrava distante, imerso nos seus próprios pensamentos e tarefas, como se já tivesse se acostumado com a presença dela, mas sem nunca realmente estar presente. Clara sentia falta da liberdade que tinha antes. Mesmo com a obrigação do casamento, ela não podia negar a saudade que sentia de sua antiga vida, da simplicidade das manhãs na casa de seus pais. Mas, com o passar dos dias, as coisas começaram a mudar — para pior. A rotina de Clara era marcada por longos períodos de solidão. Enrico saia cedo para trabalhar e só voltava à noite, deixando-a sozinha com a casa, os empregados e a imensidão daquele lugar. Embora ela tivesse total acesso aos luxos do casa
Os dias começaram a se arrastar de maneira monótona, mas Clara não conseguia afastar da cabeça as palavras que ouvira naquela noite. Enrico estava escondendo algo, algo que poderia mudar tudo. Ela não sabia o que era, mas a sensação de desconforto só aumentava. Toda vez que ele a olhava com aqueles olhos frios, Clara sentia que ele sabia mais do que dizia. Algo no comportamento dele estava fora do lugar, mas o que exatamente? Era como se ela estivesse cercada por um jogo de sombras, onde as regras estavam sendo constantemente mudadas, e ela era a única que não sabia as respostas. Enrico, por sua vez, não parecia nem um pouco abalado. A cada dia, ele se tornava mais distante, mais centrado no trabalho. Suas interações com Clara estavam limitadas a momentos formais, como se ela fosse uma estranha, uma convidada em sua casa e não sua esposa. Embora fosse óbvio que ele tinha outros interesses além dela, Clara se sentia pressionada a manter as aparências, a continuar com o papel que lhe f
Clara acordou com uma sensação de desconforto. O vento frio que entrava pelas janelas abertas sussurrava uma música melancólica. A casa parecia imensa, mas ao mesmo tempo opressora, como se as paredes estivessem se fechando sobre ela a cada dia. Ela levantou da cama lentamente, os pensamentos turvos e entrelaçados, mas a imagem de Gabriel e a reação de Enrico ainda estavam frescas em sua mente. Ela tentou racionalizar tudo. Enrico sempre fora tão reservado, sempre tão controlador. Mas algo nela, talvez a intuição, lhe dizia que o marido estava escondendo algo muito maior. Clara não conseguia ignorar o fato de que, quando Gabriel apareceu, Enrico mudou completamente. O comportamento rígido e autoritário de Enrico não era apenas com ela, mas também com os outros ao seu redor. Gabriel, um homem aparentemente comum, parecia ter algum tipo de importância para Enrico. Isso, por si só, já era suficiente para que Clara se sentisse inquieta. Enquanto tomava seu café na grande cozinha da mans
A tensão no ar era palpável. Clara ficou ali, na biblioteca, encarando Enrico com uma mistura de confusão e raiva. Ele sabia que algo estava acontecendo, e ela também sabia que ele estava escondendo mais do que podia imaginar. Gabriel se afastou discretamente, permitindo que Clara tivesse a atenção total de Enrico. A sala parecia ainda maior agora, as sombras projetadas pelas luzes suaves do lustre criando uma atmosfera carregada de mistério. Enrico entrou na biblioteca, fechando a porta atrás de si com um estalo seco. Ele não disse nada por um longo momento, apenas observando Clara, como se estivesse esperando que ela falasse. Mas Clara não podia mais esperar. Ela precisava saber a verdade. — O que você está escondendo de mim, Enrico? — Clara perguntou, sua voz firme, apesar da apreensão que sentia. Ela não podia mais fingir que tudo estava bem. Enrico deu um passo à frente, seu olhar cortante como uma lâmina afiada. Ele parecia pesar suas palavras, mas, em vez de responder direta
A manhã seguinte chegou mais lenta do que Clara imaginava. O som suave dos passarinhos que cantavam do lado de fora da janela parecia uma ironia diante da tempestade interna que se formava em seu peito. Ela acordou cedo, muito antes de Enrico ou qualquer outra pessoa. O silêncio da casa era opressor, como se todos estivessem aguardando algo que, embora inevitável, ninguém queria enfrentar. Clara se levantou da cama com um suspiro, seus pensamentos ainda girando em torno do que Enrico lhe dissera na noite anterior. Ele havia se afastado, fugido de suas perguntas, e isso apenas a fez sentir que estava lidando com algo muito maior do que imaginava. Algo que ela não estava pronta para enfrentar, mas que agora parecia ser seu único caminho. Ela sabia que precisava seguir em frente, descobrir a verdade que ele tentava esconder, não importa o custo. Quando entrou no banheiro, olhou seu reflexo no espelho. Seus olhos estavam marcados pelo cansaço, e seu rosto pálido refletia a tensão que el