CAÇADOR
Um ano após o aparecimento de Flor...
Essa cama está mole demais, macia demais. Impossível dormir aqui.
Esse é o meu primeiro pensamento ao acordar.
Abro os olhos e engulo o grito de raiva. Maldita Flor! Ela destruiu o quarto do Florian. O nosso quarto.
Forço os olhos para enxergar a data.
Maldição. Tempo demais se passou desde que despertei. Tempo demais.
— Pra que tanto rosa? — reclamo sentando na cama.
Isso parece um quarto de bonecas... E era. Uma boneca de um metro e noventa.
Levanto jogando o edredom no chão e sinto meu estômago revirar ao notar a porra do pijama com desenhos de unicórnios.
— Que caralho!
Tiro e jogo junto com o edredom.
Pelo menos a cueca é verde escuro. Só faltava ser neon.
A porra do cabelo está batendo no meu ombro e quando abaixo cai na minha cara. A vontade que sinto é de arrancar essa porra. Pego um elástico e amarro. Depois resolvo.
Agarro essas coisas e desço as escadas de cueca mesmo. Vou queimar essa porcaria colorida.
Levo para o quintal e jogo em um canto. Volto até a cozinha e pego um isqueiro. Flor gosta de show, darei um show.
As chamas começam a subir. É bonito de se ver.
Volto até a casa e pego as roupas coloridas. O guarda-roupa parece um arco-íris.
Quando chego na fogueira vejo Henry e Felipe olhando, assim como alguns empregados. Estão horrorizados. O idiota do Felipe está cobrindo os olhos do cão em seu colo como se ele não pudesse ver algo assim.
— Estão atrapalhando, curiosos. Tem vida não? Aff!
Me aproximo e jogo as coisas nas chamas.
— Por que está queimando, Flor? — Henry pergunta.
— E por que está pelado? — Felipe completa.
Olho para Henry com a minha melhor cara de raiva.
— Se me chamar de Flor mais uma vez vai precisar de dentes novos, babaca.
— Ora, mas foi você que exigiu que chamasse assim toda vez que possuía o Florian. Como quer que chame dessa vez? — ele retruca.
— Prefiro que nem me chame. Duvido que tenha algo importante para dizer.
— Nossa! Chato.
— Nossa! Chato. — O imito. — E esse bicho estranho ai? Será que queima? — Sorrio para o animal em seus braços. É um Dálmata.
— Se afasta do Lucky! Paii! — ele grita e corre para a direção do nosso pai que se aproxima, provavelmente curioso pelas chamas em sua propriedade.
— O que está acontecendo aqui?
— Essa Flor quer queimar meu cãozinho. — Felipe acusa.
Vou pra cima dele. Flor é a puta que pariu.
Meu pai nos segura e separa. Enquanto Henry só ri. Babaca!
— Parem com isso!
— Falei pra ele não me chamar assim.
— Filho, o que está acontecendo? Por que está queimando suas coisas?
— Não são minhas coisas. São coisas dela.
— Como assim?
— Paciência. Preciso de uma dose disso pra suportar tanta lerdeza.
— Filho...
— Vamos lá. Vou desenhar. Não sou Flor, não sou Florian. Sou alguém sem paciência pra bobagens.
— E como devemos te chamar agora? — Henry se mete.
Dou de ombros, mas sorrio ao olhar para o cão feio no colo do meu irmão..
— Sou um caçador. Aquele que vai caçar essa coisa feia e queimá-la viva.
— Paiii! — Felipe segura a camisa dele.
Só faço rir. Esses imbecis são engraçados.
AMAYMON SEVEN
Nos últimos doze meses, Florian e Flor revezavam aparecendo vez ou outra. Mas eu já sabia que havia mais. As sessões de terapia deixou isso claro, que talvez as mudanças dele fossem ocasionadas por personalidades. Foi tolice minha pensar que tinha restado apenas a Flor depois de todas as sessões.
Um ano após se tornar um maluco que vivia de mal humor e querendo matar animais como se fossem caça e agredir pessoas também como se fossem caça, Florian acordou como “SF” um garoto que quase me matou do coração indo atrás de surfar, escalar, acampar, andar de skate, tudo que indicasse aventura para alguém da sua idade. Toda vez que ele saia eu ficasse com o peito apertado, preocupado se voltaria inteiro.
Ai um ano depois apareceu um que nem se deu ao trabalho de se nomear, passava grande parte do tempo no quarto com preguiça. Mandou até colocarem uma tv no quarto. Chegou a engordar por não fazer atividade física e suas notas caíram na escola.
Mas pelo jeito esse era tão preguiçoso que nem durou. Ficou sós dois meses. E qual não é nossa surpresa quando ele despertou falando sobre salvação somente se seguíssemos os ensinamentos de Jesus e andando com uma bíblia para todo lado. Participava de cultos em igreja, ajudava a comunidade e andava de terno e gravata independente do nível de calor do Rio.
Esse durou quase seis meses.
E se eu soubesse o que aconteceria após sua partida, teria o mantido.
Naquele dia Florian demorou a levantar. Cheguei a pensar que o preguiçoso estava de volta. Subi até o quarto e estava tudo escuro. Ele não abriu as cortinas. Quando abri notei que ele estava na cama ainda.
— Filho? — chamei.
— Acho que estou doente. — Foi sua resposta.
— O que está sentindo? — perguntei sentando perto da cama, de onde ele nem se deu ao trabalho de levantar.
— Ninguém é como eu. Eu sei que eles estão na minha cabeça. E sei que isso não é normal. Meus irmãos não são assim. O senhor não é assim. Isso é uma doença sem cura. Eu sou uma aberração que não deveria nem existir.
— Você não é aberração. É especial, único.
— Tão único que preciso conversar com um psiquiatra pelo menos uma vez por semana. Eu sei de tudo, sinto a dor mesmo estando adormecido. Só não posso fazer nada. Como o inútil que sou.
— Só queremos entender sua situação. Esse é o motivo dos médicos. Só querem te ajudar.
— A situação é que existe seis pessoas dentro do seu filho, sem contar ele. Talvez eu seja maluco. Ele seja maluco... sei lá.
Faço as contas de todos que conheci.
— São seis?
— Sim. Eu não sou Florian. Sou aquele que todos evitam. Nenhum deles quer a minha presença.
— Por que?
Ele se levanta e vai até o banheiro.
— Vou tomar banho e desço para o café — diz simplesmente.
Saio e vou até a cozinha buscar algo para ele comer. Ele já perdeu a hora do café. É quase uma da tarde, os outros meninos já estão por ai cuidando dos seus afazeres.
Quando volto para o quarto, o barulho do chuveiro chama a minha atenção. Coloco a bandeja sobre a cômoda. Agora o quarto está todo preto, da decoração aos objetos. O preguiçoso não quis se dar ao trabalho de mexer, o aventureiro não ligava, pois mal parava em casa e o evangélico achava a vaidade um pecado e por isso deixou assim ao gosto do Caçador.
Cinco minutos e nada do chuveiro parar.
— Florian? — sem resposta. — Filho, está tudo bem? — Nada de resposta.
Bato na porta e chamo algumas vezes. Está trancada.
Tem algo errado.
Não penso duas vezes antes de arrombar.
O que encontro faz meu coração parar de bater. Florian está na banheira vazia. O chuveiro ligado e seus pequenos braços jogados para fora da banheira, sangrando pelos cortes em seus pulsos.
O meu grito reverbera pelo castelo enquanto me apresso para salvá-lo.