O relógio marcava quase seis horas da tarde, o horário que Nymerra havia frisado com firmeza. Por incrível que pareça, tudo estava em seu devido lugar.
O ar estava carregado de gelo e expectativa.
Ao final dos preparativos, parei no centro da vila Ômega. Meus pulmões ardiam com o frio e o esforço. Meus olhos tentavam absorver o que ajudei a construir.
A paisagem, antes apagada pela neve, agora brilhava em tons de prata e fogo.
Cordões de peles trançadas, tingidas com pigmentos naturais em cinza, âmbar e azul-lunar, pendiam entre os telhados baixos. Cada um carregava pequenos amuletos rústicos: dentes, garras esculpidas em madeira, luas crescentes gravadas em pedra.
Oferendas simbólicas à deusa da Lua. Promessas ancestrais penduradas como se esperassem resposta.
No centro da rua principal, uma espiral de tochas circundava um círculo de pedra. As chamas azuladas queimavam misturadas a ervas que exalavam um perfume seco e terroso — evocando florestas esquecidas.
A luz não apenas iluminava. Ela tremia, como se uivasse baixinho com cada rajada de vento.
Nos muros das casas, marcas lunares haviam sido pintadas com carvão e cinzas misturadas à seiva de pinheiro. Desenhos de lobos dançantes, matilhas em formação e luas cheias em ascensão pareciam respirar sobre as pedras geladas.
Como se as ruas estivessem vivas.
Acima de tudo, o céu começava a se abrir. A Super Lua ainda não havia surgido por completo, mas sua luz já escorria pelos montes como leite prateado. Tocava cada decoração com reverência.
Observei em silêncio. A vila estava pronta.
Pronta para correr. Para dançar. Para uivar como se o passado não tivesse sido esquecido.
Nunca havia sentido esse chamado ancestral como agora. Evocando raízes que imaginei estarem perdidas há muito tempo.
— Todos fizeram um bom trabalho. As ruas estão prontas para receber a matilha. — Nymerra anuncia, aproximando-se devagar para contemplar nosso esforço.
— Vocês podem descansar um pouco agora e trocar suas vestes. Deixei algumas opções disponíveis no dormitório. Encontro todos em meia hora para designar suas funções no festival.
Ainda me sinto um pouco desnorteada com o tratamento que estamos recebendo aqui. Viemos como prisioneiros. Teoricamente, eu cometi um crime terrível na minha alcatéia anterior.
Mas tudo isso parece ter sido varrido pelo vento.
Em Umbra, é como se tivéssemos acabado de nascer.
Confesso que a impressão que estou tendo daqui é muito mais positiva do que esperava. Ainda me irrita toda essa tradição, sinceramente, aqui está repleto de simbolismo e das regras que sempre critiquei.
Mas sou capaz de ignorar essa parte. Só para aproveitar uma boa festa de recomeço. A primeira que participo em anos.
Eu fiquei responsável por abastecer as tendas de comida quando necessário, é uma tarefa simples e que não exige muito do meu tempo, pois a comida era tão abundante que raramente necessitava de reposição, isso me permitiu poder explorar bastante o festival.
A multidão se move com alegria contida, como se tentasse respeitar o silêncio da neve sem sufocar a vibração da celebração. Crianças correm entre as tendas coloridas, com fitas amarradas nas costas para simular caudas de lobo.
Cada barraca exala um cheiro único, carne defumada, vapor de ervas quentes, especiarias doces que aquecem só pelo aroma. Ao passar por uma de amuletos artesanais, sinto o olhar do artesão se deter em mim por tempo demais. A curiosidade é compreensível, os daqui parecem reconhecer os seus com facilidade, talvez por nosso histórico forasteiro.
Ofereço um sorriso leve e um aceno de cabeça. Ele retribui com timidez contida.
A noite continua a pulsar. Com cada passo sobre a neve marcada, me afasto da multidão. Sigo pelo lado menos iluminado do festival, onde os segredos costumam se esconder.
A verdade é que preciso respirar. Minha vida mudou rápido demais. Um turbilhão de acontecimentos que ainda estou tentando processar.
Ao longe, vejo Aiden interagindo com outros lobos Ômegas da sua idade. Ele parece mais relaxado, quase alegre. Sorri e conversa como nunca o vi fazer antes.
Isso tira um peso do meu coração.
De repente, uma mão pesada pousa sobre meu ombro. Me viro instintivamente.
Os olhos verdes e afiados de Nymerra me encaram. Mas não demonstram nada além de condescendência.
— Seu turno acabou. Pode ficar livre para explorar mais. — ela anuncia, retirando a mão do meu ombro e voltando para seu posto na guarda.
“Você já se divertiu demais, não acha? Poderia me ceder um pouco de tempo para correr na floresta?” a voz de Freya surge na minha mente.
De fato, ela merecia um tempo para si. Depois de percorrer todo o caminho exaustivo de Garra Dourada até aqui, era justo.
Eu permito que ela assuma.
Quando assumo a forma de Freya, uma loba enorme cor de ônix, de um preto tão denso que parece engolir o cenário ao redor, me sinto primitiva. Como se pudesse deixar de lado todas as nuances e problemas da parte humana.
Só ser lobo. Correr. Uivar. Sentir o vento açoitar meus pelos.
Freya corre por um bom tempo pela extensa floresta de pinheiros. O som do festival fica abafado. As luzes tremeluzem ao longe, dando espaço apenas para a luz azul intensa da Super Lua.
Na neve densa, nos destacamos bastante. Uma sombra correndo sobre um mundo pintado de branco.
De repente, Freya para bruscamente. Ela parece prestar atenção em algo.
“O que houve, Freya? Por que está tão tensa?”, pergunto, tentando compreender.
“Estou farejando algo, um cheiro doce e ao mesmo tempo amadeirado, um perfume sútil que parece me atrair até ele…” ela me responde, atônita, sua voz soa como um cãozinho adestrado.
Aos poucos, Freya retoma os passos. Anda devagar, farejando o cheiro que mencionou.
Eu começo a perceber também. É um perfume extremamente agradável, quase hipnotizante.
Seguimos o rastro até uma clareira iluminada pela luz lunar. No centro dela, uma silhueta enorme se camufla com a neve. É tão branca quanto ela.
É um lobo. Surpreendentemente grande.
Sua pelagem branca é algo que vejo pela primeira vez. Não é comum existirem lobos dessa cor, muito menos desse tamanho.
Ele está deitado sobre a neve, banhado pela luz da lua. Mas ao ouvir o estalar dos galhos sob nossas patas, se levanta bruscamente.
Nos encara.
Seus olhos são de um vermelho tão vivo quanto o sangue. Mais uma característica rara para a lista de coisas nunca vistas antes.
Mas seu olhar… Não é nada amigável.
Ele expressa fúria. Ódio primitivo. Tão intenso que faz minha respiração parar.
“Companheiro!! Artê, ele é nosso companheiro predestinado!” Freya exclama, com certa felicidade e êxtase na voz.
“Não quero ser uma estraga prazeres, mas acho que nosso companheiro quer nos matar” eu respondo, tensa com o olhar feroz que paira sobre nós.
Meus ossos me pedem para fugir imediatamente, mas Freya se aproxima mais.
“Freya, enlouqueceu? Quer nos matar? Não chegue perto dele!” eu grito mentalmente para que ela pare de se aproximar.
“Ele não vai nos machucar. Eu posso sentir o nosso laço.” ela parece hipnotizada pelo laço de parceria, ainda ousando chegar mais perto.
O lobo de olhos vermelhos entra em estado de alerta. Seus pelos se eriçam, e ele rosna alto à medida que nos aproximamos.
Freya ignora minhas súplicas para recuar. Ela se coloca a um palmo de distância daquela criatura.
Em menos de um segundo, enormes garras cortam o vento em nossa direção. Nos acertam direto no focinho.
O lobo misterioso acaba de nos atacar. Um golpe direto. Clara demonstração de que não quer aproximação, muito menos amizade.
Ele rosna mais uma vez. E só então Freya entende: é hora de correr.
Corremos por nossas vidas. O vento corta e arde na ferida aberta no focinho. Mas isso é o de menos agora.
Estamos numa caçada. E somos a presa.