Umbra parecia bem menos assustadora do que diziam os boatos. Era uma Alcatéia como as outras, só que coberta de neve e gelo.
O frio era extremo, típico do inverno. Mas, por algum resquício de misericórdia, nos disponibilizaram trajes quentes durante a organização dos documentos e papelada.
Eu e Freya estávamos ansiosas. Não sabíamos qual destino nos aguardava aqui. Até agora, os guardas não deram muitas informações.
Após um bom tempo resolvendo a parte burocrática, o oficial Beta reaparece. Dessa vez, com orientações mais claras.
— Olá, eu me chamo Serys. Sou o oficial Beta responsável pelo exército e segurança, além de ser a mão direita do Alfa Líder Lioran.
Vocês foram renegados em Garra Dourada. Mas aqui, não queremos saber os motivos.
Nós oferecemos um recomeço. Serão aceitos como membros comuns da matilha e seguirão as funções referentes às suas classificações.
Como todos vocês são Ômegas, participarão dos cargos de serviços. Esses serão designados no Centro Ômega, onde ficarão instalados.
Apenas assentimos em silêncio. Desconfiados.
Confesso: isso é bem melhor do que eu esperava. Basicamente, só mudamos de território e recomeçaremos nossas vidas por aqui.
E até onde vi, Umbra não é o bicho de sete cabeças que pintam mundo afora. Para nossa sorte.
Em poucos minutos, somos levados ao tal Centro Ômega. Uma pequena vila habitada exclusivamente por Ômegas.
As pessoas vestem trajes simples, mas robustos, próprios para o inverno. Com exceção dos soldados fazendo ronda, todos ali são Ômegas.
É algo novo para mim. Em Garra Dourada, não havia territórios separados por classificação. Apesar das residências dos Ômegas serem mais simples, era comum Betas e Ômegas viverem misturados.
Isso me irrita um pouco. Indica que Umbra provavelmente é mais rígida quanto à diferenciação de classes. E isso… eu particularmente odeio.
Nos afastamos um pouco do centro, em direção à pequena montanha próxima. Após uma subida não muito íngreme, nos deparamos com uma grande residência.
— Como vocês são forasteiros em exílio e não possuem propriedades em Umbra, nós os deixaremos aqui. — Serys indica a casa diante de nós. — Este é o Abrigo Lua de Cristal, gerenciado pela oficial Beta Nymerra. O novo lar de vocês.
O Abrigo Lua de Cristal se erguia à nossa frente, incrustado na encosta da montanha como uma cicatriz cinzenta num corpo congelado. Era menor do que eu havia reparado inicialmente, mas havia algo solene em sua silhueta.
Paredes de pedra bruta, negras e irregulares, com marcas ancestrais entalhadas nos blocos como promessas esquecidas. No topo do telhado inclinado, o peso da neve criava formas quase orgânicas, como se o abrigo estivesse sendo devorado pelo próprio inverno.
Algumas janelas circulares davam um ar de fortaleza. Uma torre baixa, quase imperceptível, se erguia num dos cantos, adornada com estandartes desbotados pela neve. Havia um símbolo prateado de lua cheia ainda visível, envolto por traços que lembravam garras… ou raízes.
Senti o frio alcançar meus ossos. Mas também uma estranha sensação de estar à beira de algo maior.
Este abrigo não promete conforto. Promete permanência.
Ainda era dia. A tarde estava apenas começando. Nosso grupo estava exausto e faminto. Eu daria tudo agora por um prato de qualquer coisa comestível.
A porta de madeira maciça se abre. Uma nova figura aparece.
Sua silhueta era firme, feita de pedra e músculo, como se tivesse sido esculpida pelas próprias guerras que viveu. Os cabelos ruivos, curtos e desalinhados, pareciam arder sob a luz do sol da tarde. Os olhos verdes, afiados como lâminas, nos observavam com uma calma que não admitia fraqueza.
Nymerra.
Não precisei ouvir seu nome para saber que era ela. Havia algo ancestral em sua presença, como se Umbra tivesse moldado essa mulher para suportar sua própria crueldade.
Vestia uma armadura de couro escuro, marcada por rasgos e arranhões. Cada cicatriz parecia contar uma história que ela não precisava repetir.
O manto de pele sobre os ombros ainda carregava neve derretendo. Mas o frio… parecia evitá-la. Até o vento se calava quando ela se movia.
Ela não sorria. Não oferecia consolo. Mas seus olhos, por um momento, encontraram os meus. E ali, atrás da dureza impenetrável, algo brilhou: reconhecimento, talvez… ou desafio.
— Sejam bem-vindos ao Abrigo Lua de Cristal. Meu nome é Nymerra. Entrem sem demora. O almoço já foi servido. Após comerem, será concedido três horas de descanso da viagem, até iniciarmos as tarefas de hoje. — ela nos recebe com a voz firme, como uma militar ditando ordens a seus soldados.
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Meu estômago estava genuinamente feliz por comer algo decente pela primeira vez em dez dias. A comida do abrigo não era nem um pouco ruim — diria até que estou comendo melhor do que em Garra Dourada.
Minha mãe e Aiden também pareciam aliviados por finalmente comerem algo bom. Mas nenhum de nós ousou conversar sobre o começo da nossa estadia permanente.
Aproveitei as três horas de descanso da melhor forma possível: dormindo como uma pedra. Até que o som brusco da porta do dormitório batendo acordou todos nós.
— Acordem! A hora do descanso acabou. Agora vamos ao trabalho. Hoje é dia de Super Lua, então preciso da mão de obra de vocês para ajudar com os preparativos do festival lunar. — Nymerra anuncia, firme.
Em suas mãos, há uma grande caixa contendo roupas.
— Aqui estão seus trajes para o festival. Além de ajudar nos preparativos, vocês devem trabalhar nas barracas e servir a comida. Vou designar cada tarefa no fim da tarde. Temos até às seis para preparar tudo.
Nós a ouvimos com semblantes confusos. Entendemos a base da ideia, mas não tudo.
Tive que ser a primeira a quebrar o silêncio entre nós desde que chegamos.
— Com licença, mas o que você quer dizer com festival? Seria a reunião na residência Alfa para celebrar a Super Lua?
Em Garra Dourada, havia uma grande reunião no jantar para celebração nos dias de Super Lua — com banquete, música e bebidas. Mas, claro, era restrito aos Betas e Alfas. Nós, Ômegas, só íamos para servir.
Pelo visto, essa parte se mantém.
— Acho que há uma diferença cultural entre sua terra natal e Umbra. Aqui não nos reunimos na residência Alfa — sequer somos autorizados a chegar perto dela.
O festival lunar acontece nas ruas, por todo o território de Umbra, sendo livre para todos os públicos. O Alfa Líder Lioran não participa das festividades, por questões pessoais.
— Com “livre para todos os públicos” você inclui os Ômegas também? — rebati.
— Sim. Todos os membros da matilha podem desfrutar do festival e celebrar a Super Lua. Claro que teremos Betas trabalhando na guarda do festival e Ômegas nas barracas de comida e jogos — porém em turnos, para que todos possam aproveitar.
Inclusive, discutiremos os turnos ao acabar os preparativos.
— Nós também vamos poder aproveitar o festival? Sem trabalhar a noite toda? — dessa vez, Aiden perguntou, perplexo.
Todos estávamos um pouco surpresos. Em Garra Dourada, só podíamos servir. Nós, Ômegas, costumávamos celebrar a lua apenas no fim do expediente, em uma celebração pequena e pacata em nossas casas.
— Claro que sim. Não me faça repetir, garoto. Eu já disse que todos participam.
Em Umbra, valorizamos nossas raízes de lobo e celebramos a Lua como nossos ancestrais sempre fizeram — a matilha toda como um só.
Nossos lobos podem correr e uivar livremente. Podemos dançar para a lua, comer doces e bebidas lunares… tudo isso. — Nymerra complementa, um pouco impaciente.
— Todos menos o Alfa, você disse? — eu me meto novamente. Talvez uma pergunta audaciosa para uma recém-chegada. Mas fiquei curiosa sobre o Alfa Líder não participar de uma celebração tão importante.
— Sim. O Alfa Líder celebra da forma dele, em sua residência. Ele nos deixa livres para fazer as comemorações e administra tudo por cima. Mas, por motivos pessoais, prefere não ir às ruas.
— Por causa da maldição? — Aiden solta.
Nymerra se transforma.
— Cuidado com sua insolência ao falar do Alfa Líder, garoto. — ela alerta, com ferocidade no olhar.
Aiden tocou num assunto delicado.
— Nunca mais ouse insinuar que o nosso Alfa Líder é amaldiçoado. Ele é diferente porque a deusa da Lua quis assim. Isso não é uma maldição.
Nós não temos o direito de nos metermos em seus assuntos.
Enfim, chega de conversa. Se arrumem, rápido. Temos um festival para organizar. — ela finaliza, saindo do dormitório.
— Toma cuidado com o que diz aqui, Aiden. — minha mãe alerta.
Aiden apenas assente, sério. Ficou com medo real ao se dar conta do que perguntou.
— Já passou, mãe. Vamos nos arrumar. Confesso que estou curiosa para ver esse festival com meus próprios olhos. Faz tempo que não vamos a uma festa, não? — digo, quebrando o clima tenso.
Todos se animam e começam a se arrumar para sair.