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Capítulo 2 - A Porta do Quarto Trancado

Desde o dia do beijo da morte, Miguel passou a viver em constante alerta. Cada som, cada sombra, carregava um significado oculto. A casa onde morava - antes apenas silenciosa - agora sussurrava. Os cantos pareciam respirar, e às vezes, durante a noite, ele via vultos passando pela fresta da porta do quarto.

Uma noite, algo diferente aconteceu.

Miguel estava deitado, ouvindo o tique-taque quebrado do relógio da parede, quando a maçaneta da porta começou a girar lentamente. Trancada. Sempre trancada desde a morte de Clara. Mas naquele instante, mesmo sem se mover, ele soube: alguém estava ali.

Levantou devagar. As luzes do corredor estavam apagadas, mas o brilho da lua que atravessava a janela desenhava uma silhueta do outro lado da porta. Pequena. Curvada.

Era uma criança.

"Você pode me ajudar?", disse a voz fraca, quase um sussurro. Miguel não respondeu. Sabia que era um espírito. Mas não sentia maldade ali, apenas medo.

Com a mão trêmula, abriu a porta. Nada. Apenas o corredor vazio. Mas quando olhou para o chão, viu pegadas pequenas e úmidas, como se a criança tivesse saído de um rio. Seguiu-as até a escada do prédio, onde a temperatura caiu drasticamente.

Lá, ao pé da escada, sentada como quem esperava alguém buscá-la, estava uma garotinha de uns seis anos. Olhos fundos, cabelo molhado, vestido florido rasgado. "Eles me afogaram", disse, sem encarar Miguel. "Eles disseram que eu era um erro."

Miguel sentiu o peso do mundo cair sobre seus ombros. Sentou ao lado dela, tentando entender o que fazer. Era a primeira vez que um espírito vinha até ele pedindo ajuda.

"Qual seu nome?", perguntou.

"Camila", respondeu. "Mas ninguém me chama assim há muito tempo."

Naquela noite, Miguel conheceu a sua primeira missão real: ajudar uma alma inocente a encontrar paz. Ajudar Camila a seguir seu caminho. Mas para isso, ele teria que descobrir quem a havia afogado... e por quê.

O mundo dos vivos nem sempre é mais justo que o dos mortos. E Miguel aprenderia, pouco a pouco, que para libertar uma alma, às vezes é preciso enfrentar os vivos também.

Camila desapareceu da escada como névoa ao amanhecer. Mas suas palavras — “eles me afogaram” — ficaram gravadas como cicatriz em Miguel. Na manhã seguinte, ele acordou com uma sensação de urgência. Como se o tempo estivesse correndo contra ele. Como se o espírito de Camila só pudesse descansar se ele descobrisse a verdade.

Começou vasculhando arquivos da cidade, usando o computador antigo de Clara. Depois de horas de busca, encontrou uma notícia esquecida, datada de 2003:

“Criança de 6 anos é encontrada morta em represa. Polícia suspeita de afogamento acidental. Pais alegam que a menina desapareceu durante um piquenique.”

A imagem anexada ao artigo confirmou: Camila. Mesmo sorriso apagado, mesmo vestido florido.

Miguel sabia que não havia sido um acidente. Ela mesma havia contado. Alguém a havia matado — alguém que deveria protegê-la. E agora, seu espírito estava preso entre mundos.

Naquela noite, Miguel decidiu visitar a represa.

O lugar era isolado, envolto por árvores antigas e um silêncio denso. O espelho d’água refletia a lua, mas ao se aproximar, ele viu algo flutuar à beira do lago. Uma boneca. Encharcada, rasgada — a mesma da foto do jornal.

Ao tocá-la, uma onda de energia atravessou Miguel. A água começou a borbulhar e, emergindo da superfície como fumaça, Camila apareceu. Seu olhar agora estava firme, como se esperasse algo.

“Foi aqui”, disse ela. “Mamãe me empurrou. Disse que eu chorava demais. Disse que não aguentava mais.”

Miguel sentiu o estômago revirar. O mundo ficou escuro ao redor. E então, uma nova presença surgiu. Sombria, densa, pesada. Uma sombra de mulher, olhos apagados, rosto distorcido pelo ódio.

Era o espírito da mãe de Camila.

“Ela me fez cair. Agora ela vai cair também!”, gritou a sombra.

Miguel não sabia como enfrentá-la. A raiva da mulher era tão intensa que distorcia o ar ao redor. Mas Camila o segurou pela mão e sussurrou:

“Se você acreditar... pode me proteger.”

Miguel fechou os olhos. Pensou em Clara, pensou em Camila, pensou na dor de ser abandonado por quem deveria amar. Não era justo. E então, pela primeira vez, sentiu algo novo: poder.

Luz emergiu de suas mãos. Uma aura cálida envolveu Camila. A sombra da mãe gritou, e aos poucos se desfez no ar como fumaça ao vento.

Camila olhou para Miguel, com os olhos agora serenos.

“Obrigada. Agora posso ir.”

Ela sorriu. E então, desapareceu — mas dessa vez, em paz.

Miguel ficou à beira da represa, olhando a lua se refletir nas águas agora calmas. Sentia-se exausto, mas leve. Entendia melhor agora: seu dom era uma maldição, sim, mas também um propósito. Ele era o último abraço daqueles que nunca foram abraçados.

E essa missão... estava apenas começando.

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