4

19 de dezembro, 2004

            Já posso escutar os galos cantando. A tonalidade do céu modifica calma e rapidamente, sem que meus olhos possam acompanhar essa mudança. Ainda me sinto acesa, elétrica por causa da noite passada. E, por não conseguir dormir, tento registrar os agradáveis momentos, almejando ser atingida pelo sono.

            O motivo para ter aceitado acompanhar Quartzo naquela saída era bem óbvio: música. Também porque há tempos não saía com meu irmão, acho que isso serviu para aproveitar o pouco tempo que ainda resta para nós dois. Mesmo sabendo que, provavelmente, ficaria um pouco deslocada – já que ele me trocaria pelos amigos, arrisquei. Acreditei que seria proveitoso e não me enganei, tampouco me arrependi.

            Como qualquer festival, bebidas e drogas não faltaram. Porém, em nada isso me afetou. Não estava lá por qualquer divertimento ilícito, apenas pela música, pelo desejo de conhecer o local e os músicos que, como eu, procuravam conhecer outras pessoas do ramo. Conheci gente realmente agradável, que sabia de muitas coisas – o que tornou bastante proveitosa a troca de conhecimentos –, e extremamente talentosa. Como disse, não foi um passeio em vão.

            Mais pelo final da noite, perto da hora em que iríamos embora, conheci um garoto também bastante interessante. Para ser franca, não o conheci, apenas tive a oportunidade de, pela primeira vez, conversar com ele – o tal rapaz costumava, às vezes, assistir, escondido, às minhas aulas de piano, sempre muito discreto e calado. Pelo que pude perceber, não estava lá pelos mesmos motivos que os meus, parecia apenas querer espairecer. De início, andava meio acanhado, tímido, mal se pronunciava. Mas, com algumas doses de cerveja que um amigo de Quartzo lhe deu, soltou-se mais – e não ficou bêbado.

            Pude vê-lo com perfeição de detalhes. Os cabelos eram longos, castanhos médios, bagunçados, algumas pontinhas enrolavam. Ele era alvo, tinha alguns sinais pelo rosto e pelo pescoço; lábios finos, bem desenhados e pequenos; olhos castanhos; nariz longo e também fino. Seu rosto era oval e extremamente charmoso – sua mandíbula era larga e o maxilar, triangular. Tinha um porte físico mediano – era magro, mas não tanto –, e três vezes mais alto que eu. Não era um garoto feio, embora se vestisse muito mal. Tinha uma beleza agradável aos olhos – e uma ingenuidade perceptível em seu olhar. Além de tudo, pelo pouco que conversamos, gostei do modo com o qual desenrolou o assunto. Um rapaz demasiadamente... Fofo?

            Pena que não trocamos muitas informações um sobre o outro, gostei bastante da sua companhia. Há possibilidades de nos encontrarmos – ou não. Quem vai saber?

            Sinto o sono chegando.

*

            Por aquela semana, sentiu-se mais aliviado, o suficiente para conseguir suportar a ausência de Cecília, o semblante cansado e frustrado da mãe, as cobranças que começavam a pairar em sua cabeça, as dúvidas, a recuperação escolar, as indiretas diretas, o lugar vazio da casa. Nada estava bem, mas ele estava calmo, descansado, em transe. Aposentou as músicas pesadas, aderiu às tranquilas – About a Girl, do Nirvana, era a faixa mais escutada daqueles sete dias –, tentou manter-se imerso nas boas lembranças do Encontro da Música.

            Tudo nela era encantador. O barulho da sua risada baixa; os olhos pequenos e em formato de elipses; as íris azuis; os cabelos longos e extremamente lisos, negros e brilhosos, presos no rabo de cavalo bem-feito; os lábios finos, a maneira como os repuxava quando sorria; a postura elegante que tinha ao sentar-se; o andar; a voz grave e melodiosa; o perfume que a curvatura do seu pescoço exalava; o seu talento para a música. Praticamente tudo na composição de Jade o seduzia, atraía-o. Queria poder conversar com ela, encontrá-la, sentir seu aroma e seu olhar mais vezes. Nunca ansiou tanto pelo início das aulas propriamente ditas.

            Pensar nela deu-lhe forças para aguentar as últimas semanas de dezembro. Para suportar ver a mesa de Natal com a família quase completa e aquela cadeira deserta; para receber as ligações de Cecília e não se sentir mal – e não sofrer de saudades; para tolerar as piadinhas sobre suas roupas, ou as repreensões quanto às suas notas; para resistir aos últimos e conturbados dias daquele ano.

            Não tinha a esperança de que as coisas fossem melhorar. Mas tentava acreditar nisso. Esforçava-se. E, para tal, usava a imagem de Jade.

            Aquele sorriso lindo parecia o ajudar.

*

            Podia escutar aqueles fogos infelizes mesmo se colocasse o volume máximo no som. Não adiantava o barulho da bateria pesada, das guitarras estridentes, de alguns guturais, nada emplacaria o estrondo ensurdecedor dos fogos malditos. Precisava acostumar-se a eles antes que ficasse louco.

            Batiam nove horas. A mãe surgiu no vão da porta do quarto. A camisa branca e a calça bege a davam um ar mais jovial, porém nostálgico.

            — Tem certeza de que não quer ir comigo? — ela perguntou com a voz deprimida.

            — Absoluta — respondeu ainda deitado na cama, o som alto.

            — Ele precisa de nós hoje.

            — Ele tem você. Isso é tudo.

            Ouviu a mãe suspirar, derrotada.

            — Vai ficar sozinho aí?

            — Talvez. Depois vejo o que faço.

            Ela sorriu tristemente. Entrou no quarto bagunçado do filho, driblou os papéis com desenhos e protótipos de poesia, os encartes de CDs, sentando-se na cama, debruçou-se sobre o corpo de Fergus, dando-lhe um beijo na fronte.

            — Feliz ano novo, querido.

            Fergus abriu os olhos, mas não se moveu. Viu a mãe sair do seu aposento, fechando a porta. Levantou-se da cama, baixou o som, visualizou-a, pela janela, pegando o táxi. Sabia para onde ela iria e não tinha a menor coragem de acompanhá-la.

            Também não queria ficar em casa.

            Desligou todos os eletrodomésticos, apagou as luzes, fechou as janelas, jogou o celular no bolso – ainda tinha esperanças de falar com Cecília naquela noite – trancou a porta principal da casa. Ao sair para a rua, sentiu o ar gélido sair de seus lábios. Suspirou, enfiando as mãos nos bolsos da calça. Não tinha rumo, não tinha empolgação para comemorar viradas de ano. Não sabia nem o que desejava naquelas horas.

            Sem destino certo, pôs-se a andar pelas ruas quase vazias, iluminadas pelas luminárias natalinas. Algumas casas estavam barulhentas, música alta, moradores saindo para a varanda, sorridentes, comemorando, bebendo. Outras residências, porém, estavam silenciosas, mas tinham refletido em suas janelas, o brilho típico de uma televisão ligada – aquilo era ainda mais nostálgico e solitário do que a sua caminhada silenciosa.

            Parou em um parque. Sentando-se no primeiro banco que vira, retirou o celular do bolso. Ficou a observar o aparelho por algum tempo, incerto. Deslizou o polegar pelo teclado gasto, ainda pensativo. Não faria muita diferença. O que era uma inocente ligação?

            Escutou a chamada telefônica com ânsia, porém sem ânimo. Enquanto isso, procurava observar o parque pouco iluminado e praticamente sem presença humana. Viu os brinquedos solitários, úmidos, sem criança alguma para dar-lhes a vida que pareciam ter – pura mentira. O vento fazia as folhas balançarem, levava algumas para o chão, outras para os diversos bancos. Ainda observando o balançar delas, acompanhou a trajetória de uma, insistentemente, relutava em abandonar a sua árvore. Contudo, sua batalha fora em vão – a massa de ar arrancou-a com força do galho que tentava prendê-la, carregando-a impiedosamente, fazendo-a flutuar por alguns segundos, até abandoná-la sobre aquelas pernas de brim negro cruzadas.

            Quando o olhar pousou ali, a chamada caiu em caixa postal e seu coração disparou com mais força dentro do peito.

            Ela pegou a folha, passou alguns segundos olhando-a. Contudo, como se pressentisse aquela intensa observação, voltou o olhar para ele. Pego desprevenido, Fergus tentou desviar o seu foco, perdendo o jeito e deixando o celular cair no chão. Pronunciou um baixo “merda” enquanto sentia suas faces arderem. Pegando o aparelho, limpava-o com a barra da blusa.

            — Olá, garoto.

            Todos os músculos do seu corpo travaram. Lentamente, subiu o olhar. Fitou a bota preta, a calça de brim negra, o sobretudo bege, que estava sobre a blusa de gola escura, os cabelos organizados no coque elegante, as inscrições no rótulo da garrafa. Seus olhos fixaram-se, porém, nos orbes azuis intensos.

            — Lembra-se de mim?

            Jade sorria. Sorria para ele.

            — O que faz aqui? — foi a única coisa que saiu de sua boca.

            Ela riu, sentando-se ao seu lado.

            — Faço a mesma pergunta — disse, apenas.

            — Digamos que não tenho muitos motivos para comemorar. — respondeu, tentando parecer animado — E você?

            — A mesma coisa — estendeu a garrafa para Fergus.

            O rapaz franziu o cenho.

            — Vinho — ela informou antes que ele formulasse a pergunta — Cerveja eu sei que você bebe, e vinho?

            — Posso começar hoje — tomou a garrafa das mãos da professorinha, levando-a à boca e dando um gole — Não sabia que você bebia. Pelo menos, no Encontro, não te vi tomando nada desse tipo.

            — Quartzo estava lá. Ele não gosta muito de me ver bebendo.

            — Cuidados de irmão mais velho?

            — Isso aí.

            Fergus riu, entregando a garrafa. Até para beber vinho em um gargalo, Jade era fina.

            — Seu celular está tocando.

            Ele deu um pequeno sobressalto. Não percebeu a vibração do aparelho, tampouco a chamada telefônica – um instrumental polifônico de Come As You Are.

            — Oi, Ceci.

            Trocou poucas palavras com Cecília – não tinha muita vontade de conversar com ela quando Jade estava ao seu lado, observando-o enquanto bebia o vinho. Disse o básico, desejou um feliz ano novo, falou um eu te amo sem muita vida. Quando encerrou a ligação, a pergunta fora feita:

            — Sua namorada?

            — É, é — mantinha o olhar preso ao aparelho — Ela apresentou uma poesia no sarau da escola, você lembra?

            A professorinha franziu o cenho.

            — Acho que sim. Cecília, né?

            — Isso.

            Ela riu.

            — Lembro, lembro — disse, antes de dar mais um gole no vinho e ofertá-lo a Fergus — Desculpa, garoto, mas foi a pior poesia daquele sarau. Não sei nem como conseguiu passar pela avaliação.

            Não foi muito fácil escutar aquilo.

            — É, talvez. — riu, desconsertado — Não entendo muito dessas coisas.

            Ficaram alguns segundos calados, apenas compartilhando a bebida que parecia acabar. O clima continuava frio e os fogos, a queimar no céu.

            — Não ficou magoado com o que falei, né? — ela perguntou, quebrando o silêncio.

            — Lógico que não. Você tem a sua opinião, isso é algo que não posso mudar.

            A moça riu. Após breves instantes de silêncio, chamou:

            — Ei, garoto.

            Fergus voltou o olhar para a professorinha. Agora, porém, ela não o encarava – fitava as árvores que estavam acima deles.

            — Você sabe o porquê das folhas caírem durante o outono?

            Ele franziu o cenho.

            — Seria isso um questionário sobre botânica?

            Ela deu um sorriso torto.

            — Responda a seu modo.

            — Bom... Fiquei para a recuperação de biologia, mas, pelo que lembro, porque... — fechou os olhos, sorrindo, enquanto forçava a memória — Porque as árvores precisam economizar energia durante o inverno, e as folhas têm um alto gasto energético?

            Ela riu novamente.

            — Estou errado? — Fergus perguntou, em dúvida e tentando entender a charada.

            — Não. Mas não era essa a resposta que eu esperava.

            — Então qual é a resposta correta?

            — Algum dia, eu te conto.

            Calaram-se, novamente.

            — Sua família não vai ficar preocupada com você?— o rapaz perguntou mais uma vez.

            — Não — ela depositou a garrafa no chão — Sabem onde estou, é assim todos os anos.

            — E eles não se opõem por você virar o ano só?

            — Também não. Não gosto dessas datas.

            — Então você não tem perspectivas e nem desejos para o ano-novo?

            — Exato. — Jade voltou os olhos para seu acompanhante — Não acha que é melhor as coisas acontecerem naturalmente para evitar frustrações?

            — Talvez.

            — E quanto a você?

            — Não tenho muitos planos. Para ser sincero, não tenho plano nenhum. É uma merda não saber o que vai acontecer daqui a um ano, como vou estar no dia 31 de dezembro de 2005. Às vezes, prefiro não pensar nisso.

            — Eu sei como irei estar. Já está premeditado para mim.

            — Mas você não disse que não tem perspectivas e desejos?

            — Isso é bem diferente do que ter certeza sobre algo.

            Ela o encarou, os olhos azuis, penetrantes, fixos nele. Fergus pôde sentir os pelos se eriçarem.

            — A invejo por isso — ele concluiu incerto.

            — Não o faça. Acredite, vai ser bem doloroso pra mim. A certeza de ter apenas mais um ano.

            Ele não entendeu aquelas palavras. Até preferia não compreendê-las – havia um sentido de despedida ali.

            Os fogos continuavam a queimar no céu.

            — Quanto falta para o próximo ano?— ela perguntou.

            Ele olhou o visor do celular.

            — Não muito. —respondeu, guardando o aparelho no bolso da calça — Essa é a primeira virada que passa ao lado de um desconhecido?

            — Você não é desconhecido. Seu nome é Fergus, assiste às minhas aulas de piano às vezes, sabe algo de gaita, bateria e algo do violão — Jade sorriu ao vê-lo rir — Viu como sei sobre você?

            — Dava para tirar uma boa nota se fosse uma prova.

            O espetáculo colorido no céu tornou-se mais intenso, vários gritos eram escutados das casas vizinhas.

            — Ano novo? — Jade perguntou.

            — Acho que sim — virou-se para fitá-la — Feliz ano novo, professora.

            — Feliz, garoto.

            E ficaram a observar os fogos.

2 de Outubro de 2013, algumas horas depois.

Chegou em casa em estado de graça.

            Luke, sentindo a sua presença, latiu e foi correndo recepcioná-lo, animado, carregando sua típica bolinha verde – uma visível demonstração de que queria brincar. A imagem alegre do pastor o fez sorrir. Deslizou a mão por entre o pelo branco do cão, acariciando-o. Sentia-se em conexão com o animal – compartilhavam aquele mesmo sentimento de felicidade.

            — Olá, seu grandalhão! — cumprimentou — Está querendo brincar, é?

            O animal voltou seus olhos escuros para o dono, uma confirmação silenciosa para a pergunta que lhe foi feita. Adriano riu e, pegando a bolinha que estava no chão, lançou-a a uma distância considerável. O ato fez Luke se virar de imediato e começar a correr desenfreadamente, esbarrando nos móveis de maneira desastrada, tudo na tentativa alucinante de pegar a bola. O dono do cão sorriu mais uma vez e dirigiu-se ao quarto.

            Jogou-se na cama, cruzando os braços por debaixo da cabeça. Seus pensamentos vagavam, levavam-no aos momentos da tarde. Sorrir era uma ação deveras simples para exprimir a felicidade que parecia explodir em seu peito. Sentia-se como há muito não se sentia – bem, pleno, completo, realizado.

            Ainda lhe parecia inacreditável. O perfume dela lhe invadia as narinas de maneira intensa, sôfrega e intrusiva, como se quisesse aliviar a saudade que seu olfato sentia daquela agradável fragrância. Fechava os olhos e conseguia vê-la ali, parada à sua frente, mostrando-lhe que o tempo não fizera severas modificações em sua face de boneca e que ela se mantivera similar àquela garota de oito anos atrás. Àquela garota a quem dedicou o coração, o corpo, a alma.

            Virou-se de lado, deparando-se com o focinho de Luke. O cão o observava, pedinte, os olhos pequeninos implorando silenciosamente para que seu dono continuasse lhe dando atenção – a mesma que, tão raramente, estava recebendo naqueles dias. Adriano sorriu e sentou-se, voltando a acariciar o pelo do animal. Seus pensamentos, porém, ainda estavam voltados à Jade, e suas vontades se resumiam a rememorar aqueles curtos e preciosos instantes – míseros minutos para duas pessoas separadas há oito anos. Fechou os olhos, relembrando-a. Ela lhe fazia falta. Uma imensa carência que o tempo não carregou consigo e que ainda perdurava – e, talvez, permanecesse até o fim dos seus dias.

            Nunca superou a partida dela.

            Foi surpreendido por uma constatação maldosa. Há quanto tempo estava sozinho, sem namorada ou casos momentâneos? Tentou recordar-se de seus relacionamentos anteriores. Teve entre quatro e cinco, mas nada que fosse duradouro e intenso o suficiente. Términos sem sentido, brigas constantes, personalidades contrárias, a existência de uma verdade incontestável em sua vida: nunca Adriano deixara de procurar alguma mulher que se assemelhasse à Jade.

            Por isso, continuava só. Porque só havia uma única mulher para ele.

            Jade Morgan.

Capítulos gratis disponibles en la App >

Capítulos relacionados

Último capítulo